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Diário Liberdade
Segunda, 10 Dezembro 2018 10:13 Última modificação em Quarta, 19 Dezembro 2018 01:29

O regime internacional que emerge

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/ Direitos nacionais e imperialismo / Fonte: Resistir

[Prabhat Patnaik] As economias do terceiro mundo estão agora a enfrentar uma procura reduzida para a exportação dos seus bens e serviços devido a duas razões distintas.

Uma é a crise capitalista mundial, a qual implica uma procura agregada reduzida na economia do mundo e portanto exportações agregadas reduzidas para todos os países tomados em conjunto. A outra é o proteccionismo dos EUA, o qual, reservando para aquele país uma fatia maior do que teria normalmente deste mercado mundial reduzido, deixa consequentemente menos para os outros.

Uma vez que as importações de vários destes países do terceiro são de mudança mais morosa, estes países enfrentam um défice comercial ampliado e, portanto, défices em conta corrente nos seus balanços de pagamentos, o que é um resultado combinado da crise capitalista mundial e do proteccionismo estado-unidense. Como na nova situação os fluxos financeiros para o terceiro mundo seriam menores do que anteriormente (devido à incerteza acerca do futuro do regime neoliberal que foi introduzida pelo proteccionismo estado-unidense e devido também às perspectivas de uma ascensão na taxas de juro dos EUA), estes países do terceiro mundo, do qual a Índia é um exemplo primário, terão de adoptar as suas próprias medidas para ultrapassar estes défices.

A medida óbvia, e também a mais saudável, para ultrapassar o défice em conta corrente é a protecção contra importações através de tarifas e restrições quantitativas. A protecção é saudável porque ela não precisa ser inflacionária. Enquanto a imposição de uma tarifa sobre importações de petróleo eleva o preço em rupias do petróleo importado e, se "transmitido", pode causar uma ascensão geral nos preços, pois o petróleo é um input essencial que entra directa ou indirectamente em todas as actividades produtivas, a imposição de uma tarifa semelhante sobre carros importados ou ouro não tem tal impacto inflacionário geral. Nem carros importados nem ouro são inputs essenciais para a produção na maior parte dos sectores. Assim, uma ascensão dos seus preços não tem impacto inflacionário geral.

Mas se houver um tal impacto inflacionário geral devido a uma tarifa, então ele afecta o padrão de vida real de um vasto número de trabalhadores cujos salários monetários estão fixados. Portanto uma tarifa sobre o petróleo pode afectar adversamente o padrão de vida dos trabalhadores de um modo que uma tarifa sobre carros importados ou ouro não o faz, uma vez que estas últimas não entram no cabaz salarial nem como inputs nem directamente como bens salariais. As tarifas portanto podem ser concebidas de modo a que reduzam importações e melhorem a balança comercial sem um esmagamento inflacionário sobre o povo.

Não se passa o mesmo com outros instrumentos para a melhoria da balança comercial, razão pela a protecção das importações é o meio mais saudável de efectuar uma tal melhoria. Uma depreciação da taxa de câmbio, por exemplo, eleva o preço de todas as importações, não apenas de algumas específicas como no caso da protecção tarifária e, portanto, tem necessariamente um impacto inflacionário geral que afecta adversamente os trabalhadores. Naturalmente, uma tarifa, como vimos no exemplo acima do petróleo, pode ser inflacionária mas não precisa obrigatoriamente de ser. Isto não é intrínseco à natureza da tarifa do modo como é intrínseco à depreciação da taxa de câmbio.

Mas muito embora os próprios Estados Unidos tenham introduzido protecção tarifária contra várias importações da China e anteriormente tenham mesmo introduzido medidas fiscais punitivas contra corporações que deslocalizam actividades de serviços na Índia, nem os próprios EUA nem o capital financeiro internacional aprovarão medidas proteccionistas serem adoptadas por outros países, especialmente por um dos países do terceiro mundo, uma vez que a própria natureza discriminatória do proteccionismo, que é sua virtude, também mostra o vazio da ideologia de "deixar as coisas para o mercado". Discriminação significa intervenção discricionária no funcionamento do mercado e, portanto, sublinha a superioridade da mão visível sobre a "mão invisível". Estamos portanto a movimentar-nos rumo a um regime de comércio internacional em que os EUA e uns poucos países avançados empenhar-se-ão na protecção tarifária, ao passo que a maior parte das economias do terceiro mundo (excepto aquelas como a China que têm excedentes de exportação) terão comércio relativamente mais livre, com ajustamentos da balança de pagamentos sendo tentados através de depreciações da taxa de câmbio ou dos salários internos e da deflação de preços.

Isto é muito semelhante ao que prevaleceu no regime colonial no século XIX. A colónias como a Índia não era permitido impor tarifas sobre bens importados da metrópole, basicamente a Grã-Bretanha, ao passo que a Grã-Bretanha impunha tarifas pesadas sobre bens indianos até 1846 e mesmo depois de a Grã-Bretanha ter ido para um regime de livre comércio, economias continentais como a Grã-Bretanha, e os EUA, continuaram a ter altas tarifas sobre as suas importações. Em suma, a economia internacional parece pronta a mover-se de volta a um regime comercial de estilo colonial, onde um comércio livre de mão única é imposto aos países do terceiro mundo.

Deve-se notar uma importante implicação disto. Os mecanismos de ajustamento não-proteccionista para a balança de pagamentos, como observámos, são necessariamente, intrinsecamente, anti-povo. Considere-se uma depreciação da taxa de câmbio. Já vimos que ela tem um impacto inflacionário generalizado. Agora, se os trabalhadores tiverem êxito em proteger seus padrões de vida reais contra esta inflação pela obtenção de salários monetários mais altos (ou rendimentos monetários), então não há depreciação real e efectiva da taxa de câmbio. Uma depreciação de 10 por cento da taxa de câmbio poderia resultar num aumento do nível de preços de menos de 10 por cento e, portanto, provocar uma depreciação real efectiva da taxa de câmbio, de modo que as importações se tornassem mais caras no mercado interno em comparação com o período anterior à depreciação, e as exportações mais baratas no mercado internacional, só se os salários monetários não ascendessem de todo, ou não ascendessem tão rápido quanto os preços, isto é, só se os salários reais caíssem.

Exactamente o mesmo se passa, num sentido óbvio, quanto ao outro instrumento que pode ser utilizado para a melhoria da balança comercial, o qual é cortar salários monetários enquanto se mantém a taxa de câmbio constante. A qualquer taxa de câmbio constante, uma queda de 10 por cento nos salários monetários provocará uma queda de menos de 10 por cento no nível de preços (uma vez que um componente dos custos, nomeadamente o dos inputs importados, teriam permanecido inalterado). Isto significa uma queda nos salários reais mas uma redução de preços de bens produzidos internamente quando comparados com bens estrangeiros, tanto no mercado interno como nos mercados internacionais.

Uma deflação do salário monetário a uma dada taxa de câmbio, por outras palavras, tem exactamente o mesmo efeito de uma depreciação da taxa de câmbio a dados salários monetários. Ambos reduzem salários reais como um meio de melhorar a competitividade de bens produzidos internamente em relação a bens estrangeiros. Portanto estas ambas medidas não-proteccionistas para a melhoria da balança comercial, ao contrário do proteccionismo, exigem necessariamente uma redução dos salários reais.

Exactamente o mesmo se pode dizer da outra possível medida para melhorar a balança comercial que é a deflação da procura interna, onde a ideia é comprimir a procura interna como um meio de reduzir a factura da importação. Os meios típicos pelos quais esta deflação é executada é reduzir a despesa do governo com subsídios e transferir pagamentos para os pobres, mantendo baixos os salários de empregados do governo, e medidas como estas, todas as quais mais uma vez reduzem os rendimentos reais dos trabalhadores.

Portanto o novo regime de comércio internacional é provável que institucionalize um ataque aos trabalhadores como o meio de melhorar a balança comercial em países do terceiro mundo. Devido a isto é provável que testemunhemos ainda maiores esforços para minar organizações de trabalhadores como sindicatos através da introdução da chamada "flexibilidade do mercado de trabalho" ou a completa liberdade para o patronato contratar e despedir trabalhadores à vontade.

Mas este regime comercial não terá êxito no alívio da crise do capital mundial, nem tão pouco uma adopção geral do proteccionismo o fará, apesar das importantes diferenças entre os dois que observámos acima. Uma tal adopção generalizada do proteccionismo, ao mesmo tempo em que anula a vantagem que pode ter dado aos EUA ser o primeiro a adoptar o proteccionismo, criará mais incerteza entre os capitalistas, amortecendo seu incentivo para investir e, assim, agravando a crise. Exactamente o mesmo acontecerá se, ao invés de uma política de "roubar meu vizinho" ("beggar my neighbour") ser seguida por todos os países proteccionistas, uma política de "roubar meu vizinho" for seguida através de algumas medidas proteccionistas e de outras adoptando deflação salarial ou depreciação da taxa de câmbio. Da mesma forma, a compressão da procura através de cortes nas despesas internas também agravaria a crise, reduzindo ainda mais o nível da procura agregada na economia mundial.

A superação da crise económica mundial exige um aumento da procura agregada mundial; Cada país a lutar por uma fatia maior de um dado mercado mundial, não importa que instrumento seja utilizado nesse combate, não pode aliviar a crise. Na verdade, pode agravá-la por amortecer o incentivo para investir.

Quanto ao terceiro mundo, o proteccionismo pode ser um instrumento melhor a ser seguido para a melhoria da balança comercial. Mas para uma melhoria duradoura no emprego, deve ser acompanhado de medidas para expandir o mercado interno.

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