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Diário Liberdade
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Sexta, 11 Mai 2018 14:10 Última modificação em Quarta, 16 Mai 2018 20:23

A farsa do Comissário – identitarismo juvenil e empirismo vulgar

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País: Brasil / Batalha de ideias / Fonte: Diário Liberdade

[Alex Agra] A realidade material por vezes nos surpreende de forma que se torna imprescindível recorrer à literatura para poder descrevê-la da melhor forma possível. É assim que Machado de Assis, em Ao acaso, pôde nos proporcionar a melhor declaração possível sobre o artigo “A fraude dos especialistas em Segurança Pública”, publicado por Aurílio Nascimento no Extra:

“Um dos defeitos mais gerais, entre nós, é achar sério o que é ridículo, e ridículo o que é sério, pois o tato para acertar nestas coisas é também uma virtude do povo.”

Como qualquer leitor atento pode constatar, não há nesse texto um constrangimento em citar nomes. Isso porque o fundamento da política é essencialmente a relação amigo-inimigo, e precisamos ter muito claro de que lado nós estamos e quem são nossos inimigos se desejamos entrar na disputa política. Nosso inimigo Aurílio Nascimento, infelizmente, não nos deu a honra de declarar nominalmente quem são seus inimigos. Não sabemos ainda se trata-se de falta de conhecimento ou de covardia, mas talvez seja um misto de ambos os aspectos. Quando o “especialista” Aurílio declara:

“Não é recente o aparecimento de dezenas de especialistas, consultores e estudiosos em segurança privada e pública opinando, sugerindo, ganhado os holofotes e muito dinheiro.”

Ora, quem são esses especialistas? Quem produz ciência de verdade em Segurança Pública também tem interesse em saber. Quando me refiro a quem produz ciência, falo de Daniel Cerqueira, no Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (IPEA), dos diversos pesquisadores que compõe hoje o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), de Sergio Adorno e seus pares no Núcleo de Estudos da Violência (NEV), do José Luiz Ratton no Núcleo de Pesquisas em Criminalidade, Violência e Políticas Públicas de Segurança (NEPS) e de tantos outros excelentes espaços compostos por pesquisadores no Brasil. É certo que para uma corrente da filosofia da ciência, corrente que nós defendemos, a verdade é uma característica das ideias quando estas correspondem com a realidade. O critério de verdade, no entanto, é a prática. Sabemos que os indivíduos são racionais, isto é, capazes de apreender a realidade – e consideramos a racionalidade uma característica de todos os seres humanos (ainda temos alguma dúvida sobre o Aurílio depois da leitura do artigo). Em nossa perspectiva, a história se apresenta então como uma ferramenta inexorável para a ciência porque é nela que vamos buscar a origem e o desenvolvimento do objeto que pretendemos investigar. Observar a polícia, por exemplo, significa observar o processo histórico de constituição da polícia, bem como seu desenvolvimento, mas também significa entrar em um aspecto mais amplo: observar a formação do Estado brasileiro, do Estado moderno e assim por diante. Essa constatação é importante porque entendemos que, nas palavras de certo alemão que fez aniversário recentemente:

“Os homens fazem a sua própria história, mas não a fazem segundo a sua livre vontade; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado. A tradição de todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos.”

Falamos disso porque como diz o nosso mestre Ivo Tonet:

“Todo tratamento de qualquer fenômeno social e, por conseguinte, também da problemática do conhecimento, tem como pressuposto uma determinada ontologia, isto é, uma concepção prévia do que seja a realidade.”

Mas o trecho que mais nos interessa pra a discussão que pretendemos é:

“Ponto de vista ontológico é, por sua vez, a abordagem de qualquer objeto tendo como eixo o próprio objeto. Lembrando, porém, que ontologia é apenas a captura das determinações mais gerais e essenciais do ser (geral ou particular) e não, ainda, da sua concretude integral. Deste modo, a captura do próprio objeto implica o pressuposto de que ele não se resume aos elementos empíricos, mas também, e principalmente, àqueles que constituem a sua essência(grifo nosso)

Ora, o que pretendemos aqui? Apontar que existe uma universalidade do real e da racionalidade. Uma vez que afirmamos nossa abordagem ontológica como uma ontologia histórico-social, em que os indivíduos são capazes de apreender a realidade, partiremos para nosso ponto de vista específico sobre a produção de conhecimento na Segurança Pública. Como nosso objetivo é produzir uma crítica ao artigo do “especialista” Aurílio, nosso posicionamento sempre aparecerá aqui como um confronto ao posicionamento. Em um momento fundamental do texto do “especialista”, ele defende a ideia de que, a partir de um conjunto de pré-requisitos que o nosso iluminado articulador estabelece, é possível classificar um “especialista” em Segurança Pública como uma farsa. Vamos observar quais são esses pré-requisitos:

1 - Exerceu por pouco tempo algum cargo na segurança pública ou militar sem nenhum destaque.

2 - Nunca investigou um crime ou prendeu um criminoso.

3 - Nunca compareceu a um tribunal para auxiliar o Ministério Público na acusação de marginais.

4 - Nunca participou efetivamente de operações policiais.

5 - Todo o seu conhecimento tem origem na leitura de relatórios.

6 - Jamais interrogou um acusado.

7 - Leu três livros sobre o assunto.
8 - Tem raciocínio rápido para enrolar nas respostas.

9 - Nunca portou armas.

10 - Fala demais.


E ele segue com:

“Além dos dez pontos acima elencados, outros fatores criam uma aura de conhecimento infinito nos autoproclamados "especialistas, consultores e estudiosos". Sempre falar o óbvio, criticar a parte mais fraca, apontar erros em condutas sabendo apenas de poucos detalhes. É essencial na farsa um bom conhecimento da natureza humana, falando sempre o que as pessoas querem ouvir.”

De imediato o leitor compreende que para o “especialista”, o problema dos especialistas está condicionado à prática da atividade policial, como se a afirmação da prática como critério de verdade pudesse vir acompanhada de um condicionamento da apreensão de realidade do sujeito à essa prática. Isto é, somente o policial é capaz de apreender a realidade efetiva da Segurança Pública. É claro que na visão imediatista e limitada do nosso especialista, todos os policiais surgem como uma unidade, não existe o antagonismo entre delegados e investigadores, não surge o antagonismo entre oficiais e praças, tampouco existe o processo de decisão política e suas etapas. Os interesses dos policiais surgem como um “bem comum” para a Segurança Pública, desaparecem os interesses privados de oficiais e delegados, a influência dessas categorias no processo de formulação de políticas públicas na área, bem como desaparecem os exemplos desastrosos de secretários de Segurança Pública que são delegados de polícia, como foi Fernando Francischini com Beto Richa e como é atualmente Maurício Barbosa com Rui Costa. Desaparecem, por óbvio, os candidatos e políticos que são policiais com propostas absolutamente surreais e que não contribuem em absolutamente nada para a Segurança Pública no país, como projetos de lei para serem tratados por vossa excelência, para serem reconhecidos como carreira jurídico-policial, para receber 95% do subsídio mensal fixado para membros do Supremo Tribunal Federal. Isso sem contar os projetos de mesma natureza que são propostos por meio de acordos de natureza no mínimo duvidosa entre associações como a Associação Nacional de Delegados da Polícia Federal (ADPF) e políticos de todo tipo. O senador Humberto Costa que o diga.

Lembremos portanto, das cinco etapas da decisão política estabelecidas por Charles Lindblom:

1 – Agendamento
2 – Formulação
3 – Implementação
4 – Avaliação
5 – Finalização

Sabemos que é na primeira etapa, isto é, na constituição da agenda, que determinados pontos são considerados problemas públicos. Sabemos que os burocratas exercem forte pressão nessa área e que são responsáveis pela implementação, sobretudo os chamados “burocratas de rua” (onde se enquadram os policiais). Isso serve como base para analisarmos a seguinte declaração do “especialista”:

“Se a existência dos autoproclamados "especialistas, consultores e estudiosos" da segurança fosse positiva, agregando soluções mínimas, estaríamos muito bem, não iríamos perder nem para o Jardim do Éden, onde não havia controle de acesso e alguém entrou disfarçado, estragando tudo.”

O que faz o nosso “especialista” é reduzir o processo de decisão política apenas à livre vontade dos que ele qualifica como “especialistas, consultores e estudiosos”. Na cabeça do “especialista”, mas só dentro dela, existe uma relação orgânica entre os pesquisadores da área de Segurança Pública e a formulação de políticas públicas. Mas isso acontece porque o nosso “especialista” segue a cartilha daqueles que ele diz criticar no ponto fundamental: não sabe nada de coisa alguma. Reproduz em seu discurso uma distorção da realidade conforme lhe convém, excluindo e acrescentando elementos conforme lhe interessa. O leitor menos atento poderia dizer que há no discurso do “especialista” Aurílio uma diferenciação entre o pesquisador sério e a farsa, evidenciada pelo exemplo que ele utiliza no primeiro parágrafo sobre os falsos negociadores. Mas é evidente, nos pontos em que apresenta, sobretudo nos pontos 1, 2, 3, 4, 6 e 9 que o “especialista” visa construir uma identidade, cujo portador teria critério de verdade para se posicionar diante do tema da segurança. Essa identidade, por óbvio, é a identidade do policial. Nenhum pesquisador sério reduz seu conhecimento a relatórios (embora observe a importância deles), lê apenas três livros sobre o assunto e enrola nas respostas. Na verdade, esse tipo de pesquisador é atropelado em debates de diversos níveis por pesquisadores sérios, como evidenciam vários confrontos em todo tipo de espaço entre a brilhante Jacqueline Muniz e, esses sim, “especialistas” de todo tipo, como nosso inimigo Aurílio. Há em Aurílio ainda a defesa de uma natureza humana nunca confirmada sob a ótica da antropologia, diretamente relacionada à sua incapacidade de enxergar as relações entre sujeito e objeto, sujeito e realidade e mais que isso, as relações que os sujeitos estabelecem entre si. Como diria o nosso amigo alemão supracitado:

“Este indivíduo do século XVIII é produto, por um lado, da decomposição das formas de sociedade feudais, e por outro, das novas forças produtivas desenvolvidas a partir do século XVI. E, aos profetas do século XVIII, (sobre cujos ombros se apoiam ainda totalmente Smith e Ricardo), este indivíduo aparece como um ideal cuja existência situavam no passado; não o veem como um resultado histórico, mas sim como ponto de partida da história. E que, segundo a concepção que tinham da natureza humana, o indivíduo não aparece como produto histórico, mas sim como um dado da natureza pois, assim, está de acordo com a sua concepção da natureza humana. Até hoje, esta mistificação tem sido própria de todas as épocas novas. Stuart, que se opôs em muitos aspectos ao século XVIII e que, dada a sua condição de aristocrata, se ateve mais ao terreno histórico, evitou esta puerilidade.”

Por fim, o que defendemos efetivamente é a construção de um projeto nacional de Segurança Pública que integre os conhecimentos de diferentes setores da sociedade. Integração é fundamental porque os policiais têm conhecimentos profundos e de altíssima relevância sob o trabalho que realizam que não só podem como devem servir de fundamento para a construção de propostas de políticas de Segurança Pública, amplamente fundamentadas em pesquisas sérias e um rigor técnico primoroso, como são as pesquisas de Dillon Soares em “Não matarás” e “Por que cresce a violência no Brasil?”, esse último em parceria com o excelente Luís Flávio Sapori. Consideramos que esse identitarismo juvenil misturado com um empirismo vulgar do “especialista” tende, na verdade, a agravar os problemas da Segurança Pública porque parte de um princípio de negação de uma forma de produção de conhecimento socialmente relevante. Parte do princípio de que os fenômenos apreendidos pelos indivíduos são suficientes para fundamentar a produção de políticas públicas. O nosso especialista substitui o governo de filósofos de Platão pelo governo de policiais, os iluminados que trarão o conhecimento a todos nós. Defendemos como fundamento necessário para a construção do projeto nacional de Segurança Pública a participação dos policiais, defendemos que tragam seus conhecimentos, que se tornem também pesquisadores, que enriqueçam seu conhecimento com as produções de pesquisadores de Segurança Pública assim como enriquecem o conhecimento desses mesmos pesquisadores. As maravilhas que um pesquisador pode aprender sobre Segurança Pública estabelecendo um diálogo constante com policiais são quase de natureza poética, mas se configuram como um conhecimento fundamental para a atividade de pesquisa. O que não podemos, no entanto, é recusar o conhecimento científico como faz o “especialista”, confundir o pesquisador sério com a farsa, e afirmar um empirismo vulgar como critério de verdade, porque:

“... toda ciência seria supérflua se houvesse coincidência entre a essência e a aparência das coisas.”.

Mas não defendemos a participação de quaisquer policiais. Sabemos e fazemos questão de denunciar aqui o antagonismo entre delegados e investigadores e o antagonismo entre oficiais e praças. Defendemos a participação dos praças e dos investigadores contra os interesses dos oficiais e delegados, porque sabemos que nesse momento os interesses dos praças e dos investigadores são interesses universais porque suas consequências resultam em ganhos universais. Carreira única (ou ingresso único, se quiser chamar), ciclo completo de polícia, fim do inquérito policial e outras pautas produzem resultados públicos positivos para a segurança e portanto, representam um interesse social universal que entra em confronto com os interesses privados de oficiais e delegados anteriormente denunciados no nosso texto. Convidamos esses policiais a se integrarem para a construção do projeto nacional de Segurança Pública. Mas convidamos também o nosso “especialista” a citar nomes da próxima vez. Se assim o for, e a depender dos nomes, pelo menos podemos confirmar que não se trata de covardia e sim de falta de conhecimento.

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