Tom Thomas, um marxista francês, responde (num pequeno livro com o título 2015, Situação & Perspectivas) que estão reunidas duas condições necessárias ao sucesso de um processo revolucionário comunista. Por um lado, o esgotamento histórico do crescimento capitalista, evidenciado na crise, que corrói as bases da ideologia burguesa reformista que domina os movimentos sociais. Por outro lado, o imenso desenvolvimento material proporcionado pelo capitalismo nas últimas décadas, facto que permite à humanidade desfrutar de abundância de bens e libertar-se do trabalho escravo.
Nesta situação histórica nova, diz Tom Thomas, falta construir a força necessária para pôr em marcha este processo, ou seja, erguer um novo movimento comunista.
Publicamos, de forma resumida, os dois primeiros capítulos do livro, e divulgaremos proximamente o capítulo em que o autor aborda o declínio e desaparecimento das bases materiais do reformismo social-democrata.
I. Breve olhar sobre o passado
O movimento comunista começou por tomar o poder de Estado em situações impossíveis (a efémera Comuna de Paris) ou terrivelmente desfavoráveis (URSS, China) para que pudesse ir até ao seu termo: a abolição da condição de proletário e a abolição da burguesia. Ou seja, a abolição da relação social específica de dominação e de apropriação que é o capital.
Estas condições desfavoráveis não residiam somente no isolamento face a forças burguesas nacionais e internacionais ainda extremamente vivazes e poderosas. Não eram devidas apenas a uma consciência mais ou menos errada das situações, das necessidades e das possibilidades que daí decorriam. Eram sobretudo devidas ao facto de se tratar de países em que a produtividade do trabalho era ainda muito fraca, em que portanto uma quantidade importante do trabalho obrigatório, industrial e agrícola, era ainda necessário. Isto é, em que a imensa maioria da população, proletários e camponeses pobres, não podiam dispor do tempo livre necessário para que pudessem, por uma luta de classes adequada, apropriar-se das condições materiais e intelectuais da produção e do exercício colectivo do poder. Apropriação que é o fundamento de uma sociedade comunista.
Marx e Engels tinham aliás lucidamente previsto que em tais condições de penúria seria difícil, para não dizer impossível, sair do “velho lamaçal” que é a dominação do trabalho obrigatório, repulsivo, alienante sobre o povo. Mas, contrariamente ao que dizem certos teóricos, não é por estas primeiras tentativas serem muito difíceis que se justificava renunciar a elas, isso seria trair os interesses mais imediatos dos povos em luta (como a paz, o pão, a terra, a repartição das riquezas, os novos poderes, etc.). Aliás, essas revoluções foram não só heróicas, mas obtiveram resultados consideráveis antes de fracassarem completamente na busca de um processo em direcção ao comunismo. “Seria muito cómodo fazer a história universal se só nos empenhássemos na luta na condição de ter hipóteses infalivelmente favoráveis” (Marx a Kugelmann, 1871).
Na URSS e na China não se assistiu ao fracasso do comunismo — ele nunca ali existiu, longe disso — mas à interrupção e ao fracasso de um processo revolucionário (na base do desenvolvimento duma burguesia de Estado) antes que este processo pudesse sequer começar a abolir as relações sociais capitalistas.
Na primeira metade do século XX, esta situação em que dominava ainda a extensão do trabalho obrigatório era também a situação, mesmo se em menor medida, dos países com as forças produtivas então mais desenvolvidas. Assim, as circunstâncias só podiam gerar um movimento proletário que pode ser caracterizado hoje como globalmente e maioritariamente “reformista”.
II. Bases do reformismo entre os proletários
O reformismo é uma tendência que sempre existiu entre os proletários (e, claro, nas diversas fracções da burguesia chamadas “republicanas” ou “de esquerda”). A sua característica geral consiste em orientar e limitar as lutas à obtenção de melhorias materiais — o “nível de vida”, segundo a expressão geral, como se a este não dissesse respeito também a riqueza das actividades e das necessidades. Melhorias na relação salarial que têm de estar limitadas pela reprodução dessa relação, isto é, pela continuação da valorização do capital — sendo este “crescimento” (a valorização do capital) a condição daquelas melhorias. Por outras palavras, essas melhorias são limitadas não só quantitativamente (a parte do produto que vai para o capital cresce necessariamente mais, com a acumulação, do que a parte que vai para os proletários), mas também qualitativamente: se o consumo se eleva é em grande parte para responder a necessidades alienadas geradas e estimuladas pelo capitalismo. E, ao mesmo tempo, há uma profunda deterioração das necessidades imateriais, sendo o trabalho proletário esvaziado de toda a qualidade, tornando-se também ele cada vez mais alienado e repulsivo com o progresso da maquinaria.
Uma tal orientação reformista retira aos proletários qualquer poder autónomo. Ela não muda em nada o movimento histórico pelo qual todo o poder social é monopolizado pelo capital e pelo seu Estado. Pelo contrário. E uma consequência disso está no facto de ser auto-mantida pelos proletários submetidos ao reformismo a ideia de que a sua sorte depende daquele poder do capital — para cuja reprodução e crescimento eles teriam portanto interesse em contribuir. Isso leva-os assim a apoiar “o seu” capital, a desejar o seu crescimento máximo, esperando ou exigindo apenas beneficiar dele também, e não que sejam só os outros (patrões, financeiros, estrangeiros, etc.) a terem esse direito. Exigência que encarregam paradoxalmente o Estado capitalista de realizar (paradoxo que releva evidentemente do feiticismo do Estado).
[Limitação das lutas]
Por isso, impregnados e dominados por esta ideologia reformista, os proletários, na sua maioria, confiam as suas reivindicações a aparelhos sindicais e políticos que se afirmam como os seus representantes oficiais e exclusivos junto do patronato e do Estado, encarregados de negociar uma relação salarial mais equitativa! Estes mediadores transformaram-se progressivamente ao longo da história em quase-aparelhos de Estado, aparelhos de profissionais dotados pelo Estado de importantes meios materiais, de lugares e de sinecuras largamente pagos. Desempenham então um papel essencial para circunscrever as lutas proletárias aos limites do respeito pelas condições de reprodução (ou seja, de valorização) do capital, bem como para organizar e estimular a dominação do reformismo sobre os proletários. Papel que sempre teve uma importância particular nos períodos em que as lutas assumiam um sentido revolucionário, ou ameaçavam fazê-lo. Foi então que sindicatos e partidos reformistas (isto é, “a esquerda”) se revelaram à luz do dia como um trunfo ao serviço da burguesia pela sua influência junto do povo. Exemplos não faltam. Por exemplo, em França: 1936, 1945-48, 1968; na Alemanha: 1918-20. Do mesmo modo que apoiaram em graus diversos o colonialismo, o imperialismo, e mesmo as guerras que daí decorriam.
[Dupla face]
Lenine dizia que uma reforma pode, claro, eventualmente, trazer uma melhoria para o povo, mas ao mesmo tempo ela “é uma concessão feita pelas classes dirigentes para deter, enfraquecer ou abafar a luta revolucionária, para dividir a força e a energia, para obscurecer a consciência das classes revolucionárias, etc.”.
Mas a maioria dos proletários ignora o segundo lado deste duplo carácter da reforma enquanto a burguesia for capaz de lhes fazer concessões. Dum modo mais geral, enquanto não encararem a possibilidade da abolição da sua condição, os proletários só podem procurar melhorá-la. Facto que os empurra espontaneamente para o reformismo, como ideologia e como objectivo exclusivo das suas lutas, enquanto o capitalismo pode, ou parece poder, fornecer essa melhoria. Eles aderiram a essa via particularmente no século XX nos países imperialistas, dado que efectivamente — não falando de que duas guerras mundiais, inúmeras exacções e massacres coloniais, greves quebradas com as maiores brutalidades policiais e judiciárias foram também alguns outros efeitos — o capitalismo pôde aumentar significativamente o “nível de vida” material dos proletários. A sua pauperização não era notada, uma vez que ela era então, geralmente, só relativa ao crescimento do capital (à parte da riqueza que se acumulava nesse pólo).
[Fenómeno transitório]
Este é um fenómeno transitório na história do capitalismo e próprio dos países capitalistas mais desenvolvidos, e cuja explicação merece ser recordada. Para ser breve, pode-se resumir em duas causas principais:
1. Importantes desenvolvimentos do maquinismo e da produtividade. Estes permitiram o crescimento da mais-valia extraída sob a forma dita relativa. Sem repetir aqui a análise desta forma, lembremos um resultado dos aumentos da produtividade que estão na base desse crescimento: eles permitem aumentar, durante um certo tempo, tanto o nível de consumo das massas (em resultado da baixa do valor das mercadorias induzida por esses mesmos aumentos de produtividade), como a massa da mais-valia, e portanto os lucros (em resultado duma produção mais volumosa, com menos custos de produção e que pode ser escoada).
2. Expansão duma exploração selvagem dos povos dominados pelos imperialismos, bem como dos seus recursos em matérias primas e agrícolas. O que constituiu, e constitui ainda, uma fonte importante de crescimento da mais-valia nos países imperialistas desde a época da colonização. Crescimento de que os proletários desses países recebem migalhas. O que levou Engels a dizer: “Os operários ingleses comem alegremente a sua parte daquilo que rende o monopólio da Inglaterra sobre o mercado mundial e no domínio colonial.” (Engels a Kautsky, 1882).
Veremos adiante em que se tornam hoje, na época do capitalismo senil, estes dois fundamentos materiais, objectivos, da dominação do reformismo sobre os proletários. Dominação que não é tanto o resultado de uma “tampa” que tivesse sido colocada do exterior pelos propagandistas e organizações do reformismo sobre um proletariado revolucionário em ebulição, mas que é antes a manifestação dessas circunstâncias particulares de que aqueles se serviram para exercer e ampliar a sua influência. Muitos conseguiram, frequentemente, taxar de “traição” as distâncias abissais entre os discursos e os actos deles. Mas se, até hoje, apesar das inúmeras experiências que tiveram dessas “traições”, os povos duma forma geral — com excepção de uma minoria — apoiaram, seguiram, reelegeram os dirigentes reformistas, é porque no fundo estavam impregnados dessa ideologia, esperando sempre que chegasse ao poder uma “verdadeira esquerda” que aplicasse com sucesso, sem “trair”, as suas promessas ilusórias. Não era, assim, essa ideologia burguesa o que refutavam, mas aqueles que a “traíam” — necessariamente, porque ela era inaplicável, utópica.
[Dois pólos]
Deste modo, os movimentos proletários do século XX desenvolveram-se entre estes dois pólos: nos países com forças produtivas pouco desenvolvidas, com fraca produtividade, como a Rússia e a China, a “penúria” foi uma causa objectiva essencial do fracasso do processo revolucionário que aí se iniciou. Nos países mais desenvolvidos, a “abundância” material foi um factor para que a burguesia pudesse estimular o reformismo que era a ideologia espontaneamente dominante entre a maioria dos proletários.
O interesse em lembrar estas circunstâncias históricas específicas é o de compreender que outras circunstâncias produzirão outros efeitos. Ora, justamente, a crise actual revela que entramos na época do declínio inelutável e inultrapassável desses fundamentos materiais da dominação do velho reformismo sobre os proletários. A dominação da ideologia burguesa subsiste evidentemente na base dos feiticismos decorrentes das relações de produção e de troca próprias do capitalismo, mas ela assume agora principalmente formas “extremistas” neo-fascistas, desesperadas e mórbidas, e não a forma “democrática” do reformismo tradicional.