O comandante do Primeiro Exército teria anunciado a não adesão ao golpe, enquanto o comandante do Terceiro Exército teria ordenado o retorno das tropas às bases. A polícia também teria permanecido fiel ao governo. A convocação à resistência chamada pelo presidente Tecep Tayyip Erdogan levou às ruas importantes segmentos da população, o que teria levado à derrota dos golpistas.
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O elemento surpresa inicial e o domínio parcial de pontos estratégicos não conseguiu avançar. Em locais chave, como a Praça Taksim, em Istambul, a principal cidade do país, os golpistas foram rapidamente controlados.
A rápida reação de um número considerável de comandantes militares e da Polícia Nacional, inclusive da tropa de choque, demostra que as condições para o golpe acontecer estava longe de ter sido alcançadas. O sucesso principal dos golpistas aconteceu no controle do sistema de transportes das principais cidades do país, Istambul, Ankara e Izmir. O controle da imprensa foi parcial. A resistência de civis impediu os tanques de avançarem em Ankara.
O número de mortos alcançou aproximadamente as 100 pessoas, além de centenas de feridos. Vários comandantes militares do primeiro escalão foram detidos.
Quem esteve por trás da tentativa de golpe?
Erdogan rapidamente acusou restos do Movimento Gulenista que atuavam no Exército de maneira camuflada ou semi camuflada.
Erdogan declarou que a derrota do golpe foi um “presente de Deus”, pois facilitará a continuidade das purgas promovidas no Judiciário e nas Forças Armadas com o objetivo de desmontar a estrutura paralela desenvolvida pelo Movimento Gulenista. As detenções em massa não se fizeram esperar.
Entre as medidas que estavam em andamento se destaca a de rotação dos militares que iria ser aplicada no dia 1 de agosto e que obrigaria a vários militares ligados ao golpe a passar à reserva.
A Turquia teve quatro golpes de estado desde a década de 1960, em 1960, 1971, 1980 e 1997. Em 2003, uma tentativa de golpe de estado teria sido desbaratada e levado 400 militares à prisão.
Os Estados Unidos não apoiaram o golpe e ameaçaram extraditar o líder do Movimento Gulenista, Fethullah Gulen, auto-exilado na Pensilvânia, que condenou publicamente o golpe.
O Movimento Gulenista é um movimento de cunho islâmico que tem se fortalecido a partir da década de 1970. Desde 2017, o governo de Erdogan passou a avançar contra os gulenistas por meio de purgas em massa.
O principal partido da oposição, o CHP (Partido Republicano do Povo) se posicionou contra o golpe. Quatro partidos políticos emitiram um comunicado conjunto condenando a tentativa golpista, o próprio AKP, o CHP, o HDP (Partido Democrático do Povo) pró-curdo e o MHP (Partido Movimento Nacionalista).
Todas as evidências mostram que o golpe foi muito mal preparado, que muitos componentes não foram amarrados, nem no próprio Exército.
A quem serviu a tentativa de golpe militar?
As eleições nacionais de 2015 deixaram claro o recrudescimento das contradições entre o AKP (Partido de Justiça e Desenvolvimento), de Erdogan, que obteve 49,5% dos votos, os muçulmanos, os curdos, as várias facções nacionalistas e, inclusive, entre os vários setores internos que compõem o AKP. A eleições foram repetidas após o AKP não ter conseguido maioria. Erdogan escalou a guerra contra os curdos com o objetivo de tirar votos do MHP, o partido de extrema direita, e do HDP, curdo, e de criar um clima de terror.
Na campanha eleitoral, o AKP prometeu um aumento do salário mínimo, para 300 euros mensais, e ajudas para os jovens que contraírem matrimônio. A inflação continua subindo e a perda do valor da lira, perante o dólar, em 25% apenas neste ano, tem provocado o aumento dos preços dos crescentes produtos importados.
Enquanto a crise capitalista se aprofunda na Turquia, as regiões vizinhas se encontram em chamas. Ao sul, a crise na Síria e no Iraque escalaram. Ao norte, a guerra civil na Ucrânia, apesar da redução do conflito, continua em estado semi latente e as tensões aumentam no Mar Negro.
O atual governo de Erdogan conduz a Turquia com mãos de ferro há mais de uma década, prendendo e assassinado jornalistas e opositores, massacrando o povo curdo e financiando os “rebeldes” islâmicos na Síria, incluindo o Estado Islâmico e a Frente Al-Nusra (afiliada da Al-Qaeda na Síria). Além disso, o AKP tem promovido uma série de medidas que buscam transformar a Turquia (um país historicamente laico e secular) em um estado religioso novamente, com a volta da Lei da Sharia, entre outras medidas.
O Exército turco, historicamente, é laico e secular. Desde o fim da Império Otomano, depois da Primeira Guerra Mundial com a proclamação da República da Turquia (1923), o Exército sempre foi composto majoritariamente por figuras laicas, relativamente, menos conservadoras da sociedade turca.
O partido governante, o AKP, sempre teve contradições com o Exército, tanto é que volta e meia o governo faz alguns expurgos no alto escalão para colocar figuras mais próximas e menos “kemalistas” (o nome que se dá aos militares “seculares”). O maior temor do governo, durante os últimos anos, não era os curdos e nem os “radicais islâmico”, mas os militares.
O AKP chegou ao poder em 2002 prometendo liberdade, o fim da pobreza e da corrupção. A Justiça apertou o cerco contra a cúpula do AKP, mais ou menos de mesma maneira que está sendo feito na Argentina ou no Brasil com a Lava-Jato. Quatro ministros do AKP enfrentam processos de corrupção. O filho do ministro do Interior foi preso. Foram encontrados US$ 4,5 milhões na casa do maior banco público.
A liberdade partidária somente foi permitida na Turquia no final da década de 1940, 25 anos depois da proclamação da República (1923). Nas primeiras eleições multipartidárias (1950), venceu o Partido Democrata, liderado por Adnan Menderes, considerado como mentor por Erdogan, que foi morto no golpe de estado de 1960. Dessa época, datam os grandes conglomerados turcos, como Eczacibasis, Kocs, Sabancis e Dogans.
A crise da base política do Governo Erdogan
Com a imposição das políticas neoliberais na década de 1980, em escala mundial, sobe ao governo o Partido Patriótico, liderado por Turgut Ozal. A burguesia nacional, auto-denominada de “Tigres da Anatólia”, se fortaleceu a partir da indústria têxtil, do cimento, da manufatura de móveis e da construção civil. Com o golpe de 1996, os militares facilitaram a subida ao poder do primeiro governo de cunho islâmico. Essa mesma burguesia nacional esteve na base da subida ao poder do AKP, liderado por Erdogan, em 2002. Da aliança participaram setores muçulmanos, setores laicos conservadores, neoliberais que estavam de olho na entrada na União Europeia e o Movimento Gulenista. Em 2004, começou as negociações para entrar na União Europeia o que aumentou consideravelmente os investimentos estrangeiros no país. O AKP passou a perseguir a cúpula militar ligada à “velha guarda”. Algumas famílias ligadas à burguesia nacional também foram atacadas, como foi o caso da família Uzan que perdeu o monopólio das telecomunicações, a família Dogan que dominava o setor energético e a família Koc do setor industrial e comercio de varejista. O espólio passo a ser dominado pelos monopólios imperialistas aliados dos figurões do AKP. Essas famílias apoiaram, nos bastidores, os protestos do Gezi Park, de 2013, o que explica como o corte de uma árvore se tornaram em manifestações gigantescas contra o governo de Erdogan.
As políticas do grupo do AKP ligado a Erdogan, promovidas a partir do aprofundamento da crise capitalista, levaram ao recrudescimento das contradições internas. O Movimento Gulenista é um movimimento minoritário que busca, por exemplo, conter a reforma da educação, que poderia fechar várias universidades privadas ligadas ao Movimento. Mas esse Movimento, apesar de ter alguma influência nos setores mais conservadores do aparato do estado, acaba servindo como liga para vários setores que têm aumentado as contradições com o grupo que tem se aglutinado em torno de Erdogan.
As eleições locais que acontecerão em março deverão escalar ainda mais as contradições. A oposição tem se fortalecido na cidade de Istambul e ameaça enfraquecer o poder do grupo majoritário.
Quem são os aliados e os inimigos da Turquia?
As relações do Governo Erdogan com os Estados Unidos têm sido complexas. Em 2003, a invasão ao Iraque não pode ser realizada a partir da Turquia.
A Turquia faz parte da OTAN (Aliança do Atlântico Norte), tem mísseis nucleares no território, mas o Exército não tem entrado em confrontos militares na região, apesar de enfrentar os guerrilheiros do PKK, o Partido dos Trabalhadores da minoria curda, há mais de 30 anos.
O pior cenário para o governo de Erdogan é a formação de um estado independente curdo na Síria, pois a Província Oriental, habitada majoritariamente por curdos, é o ponto geográfico por onde passa o gás proveniente de vários países da região que tem como destino a Europa.
O YPD, que governa essas regiões curdas, está intimamente vinculado ao PKK turco. As milícias de autodefesa do YPD, o YPG, fazem parte da frente única impulsionada pela Administração Obama para estabilizar a região e têm desempenhado um importante papel em campo contra o Estado Islâmico e a al-Nusra, a al-Qaeda na Síria. Além disso, há as relações do YPD com os russos e o Curdistão Iraquiano. Este é apoiado pelos Estados Unidos e até pelos sionistas israelenses. O grosso do petróleo consumido por Israel vem do Curdistão Iraquiano que, com seus pershmergas (soldados), tem desempenhado um papel muito importante nos campos de batalha contra os “rebeldes” do Estado Islâmico, que têm mantidos laços e acordos semi camuflados com o governo de Erdogan.
Com o aprofundamento da crise capitalista, a principal indústria turca, a indústria têxtil, se viu envolvida em grave recessão. Os projetos faraônicos, em andamento ou em planejamento, estão ameaçados, o que tem colocado em xeque o apoio dos setores dominantes da burguesia nacionalista turca. O déficit público só tem crescido e tem conseguido ser fechado com os petrodólares sauditas.
A política econômica que Erdogan tem impulsionado, como “saída” para a crise, tem como eixo transformar o país num nó (hub) do fornecimento de gás e petróleo para a Europa. Há acordos assinados e em andamento com a Rússia e o Irã. Há a perspectiva de reativação do projeto B-T-C (Bakú, Tbilisi, Ceylan) para o escoamento do gás do Azerbaijão. Há a possibilidade de participar do projeto impulsionado pelo Catar e pelos sauditas para transportar o gás do mega campo de Pars, a partir do Catar. Todos esses projetos passam pela Província da Anatólia Oriental, que é habitada majoritariamente pelos curdos e onde o PKK tem forte atuação.
O papel da Turquia é estratégico por causa do controle do Estreito do Bósforo que une o Mar Negro ao Mar Mediterrâneo e também porque representa a porta de entrada para o contágio da desestabilização do Oriente Médio em direção ao Cáucaso e ao sul da Rússia. As relações e as concessões obtidas dos russos passa por este fator, que também explica a estabilização das relações que tinham ficado abaladas após a derrubada do caça russo. A deterioração das relações poderia bloquear o acesso da poderosa Frota russa do Mar Negro, que está estacionada em Sebastopol (Crimeia), ao Mar Mediterrâneo. O fechamento colocaria em risco um importante volume comercial, deixaria aberto um flanco importante da Rússia para o OTAN e teria o potencial de escalar para um conflito militar. Ao mesmo tempo, a partir do aprofundamento da crise na Ucrânia, os Estados Unidos têm fortalecido as relações com a România como contrapeso à presença russa no Mar Negro. O aumento das tensões apresenta séria implicações para a Turquia.
O governo Erdogan contra os curdos
Umas das políticas que o governo Erdogan adotou com o objetivo de conter o avanço dos curdos foi passar a participar da coalisão contra o Estado Islâmico, abrindo uma base aérea, Incirlik, para a aviação norte-americana.
Os ataques promovidos pelo Exército turco, contra os guerrilheiros curdos liquidaram com a trégua, que estava em andamento com o PKK. Mas o principal objetivo, era acirrar as contradições internas para viabilizar a vitória do AKP nas eleições nacionais.
A blindagem do espaço aéreo sírio pela Federação Russa, mediante os mísseis S-300, criou entraves para a Turquia confrontar, em termos militares, os curdos, principalmente, considerando que a atuação dos russos na Síria passa pelo acordo com a Administração Obama. O ponto de largada deste acordo foi dado com a visita de John Kerry, o chefe do Departamento de Estado norte-americano, a Sochi em junho do ano passado. Ao mesmo tempo, o apoio turco ao Estado Islâmico e a outros “rebeldes” ficou dificultado.
A política mais provável para o próximo período é que o governo do AKP tente dar continuidade à política de acordos com o PKK, desde que, com isso, consiga conter o avanço do estado curdo a partir da Síria. O ponto em que as negociações tinham ficado era a ampliação da autonomia nas regiões curdas. O principal dirigente curdo, Abdullah Ocalan, que se encontra numa prisão turca desde 1999, abriu mão da independência curda para assumir uma posição semi-anarquista baseada na organização popular nos municípios, algo assim como a política aplicada pelos zapatistas no sul do México.
O HDP, o partido pró-curdo, não representa uma ameaça para o AKP, principalmente após ter conseguido consolidar a maioria parlamentar. Se trata de um partido de cunho socialdemocrata, integrado ao regime, com relações muito tênues com o PKK, parecidas com a política do Polo Democrático colombiano, com um vínculo nacionalista com as reivindicações curdas.
O ponto chave para o AKP avançar nas negociações com os curdos passa por duas questões principais. A primeira questão se relaciona com o aprofundamento da crise capitalista, pois os acordos implicarão na realização de investimentos nas regiões curdas para promover a estabilização em termos materiais. Erdogan tenta extrair tudo o que puder da União Europeia usando a ameaça da crise migratória. Ao mesmo tempo, a Turquia avança nas negociações com todos os países que disputam o fornecimento de gás à Europa.
O segundo fator se relaciona com as negociações sobre a Síria. Erdogan tentou depor o regime sírio de al-Assad, assim como o tentaram os sauditas, o imperialismo e as demais monarquias reacionárias da região. Essa política confrontou a tradicional política turca da não interferência nos assuntos internos dos países vizinhos. O objetivo era evitar o fortalecimento dos curdos e do Irã, ao mesmo tempo que buscava conter o expansionismo russo na região. O principal objetivo do governo turco nas negociações continua sendo exatamente esse, a busca pela garantia de que um estado curdo independente na Síria não sairá do papel. A criticidade dessa política, para os turcos, é revelada pelo acirramento do conflito militar, nos últimos meses, e até pelos brutais atentados terroristas contra os curdos, onde a mão dos serviços de inteligência turcos aparecem de maneira bastante clara.
A Turquia cumpre um papel de primeira importância no Oriente Médio. A desestabilização tem um efeito muito mais catastrófico da crise na Síria e no Iraque. Conforme a crise capitalista se aprofunda, o avanço sobre o coração do capitalismo europeu e mundial se torna mais iminente.
A crise do Oriente Médio aperta a Turquia
A Turquia se encontra muito pressionada pelo aprofundamento da crise na Síria, o que tem aumentado as contradições com os curdos. Na Turquia, atua o PKK (Partido dos Trabalhadores) curdo.
O avanço militar contra o PKK, a ambição de conter em termos militares os avanços do YPG (Unidades de Proteção do Povo) e a ampliação das ações no Iraque ficaram comprometidos pelo menos de maneira temporária.
O Oriente Médio representa um dos três principais ponto de conflito no planeta que tem o potencial de escalar para uma guerra de largas proporções.
A Turquia representa uma das principais potências regionais do Oriente Médio. Membro da OTAN e candidato à União Europeia, o governo de Erdogan possui acordos com o imperialismo europeu e norte-americano, Israel e Arábia Saudita, Rússia e a China, entre os quais fica numa “dança das cadeiras”, na tentativa de enfrentar o aprofundamento da crise capitalista. A conhecida política do “salve-se quem puder”.
A Turquia foi um importante exportador de produtos têxtis e agrícolas até o colapso capitalista de 2008. As exportações entraram em profunda decadência. A política econômica alternativa, impulsionada pelo governo Erdogan, busca transformar a Turquia num nó de fornecimento de energia para a Europa. O grosso dos gasodutos, que veem do Curdistão Iraquiano, do Irã e do Cáucaso, passam pela Província de Anatólia Oriental, habitada, fundamentalmente, por curdos, que representa o centro de atuação e apoio do PKK, o Partido dos Trabalhadores Curdo, que conta com um braço guerrilheiro que atua na região há mais de 40 anos.
Com o objetivo de viabilizar a nova política econômica, o governo Erdogan abriu, há alguns meses, negociações de paz com os curdos. A principal concessão passa por uma certa autonomia, como o levantamento da proibição de usar a própria língua, e a libertação dos presos políticos e anistia em troca da deposição das armas. As negociações foram encabeçadas por Akolan, o líder do PKK, que tem sido mantido preso desde 1999. O PKK acabou se retirando para as montanhas e para a fronteira com a Síria, principalmente.
O estouro dos protestos de massas na Síria foram impulsionados pelo contágio das revoluções árabes. O elo mais fraco do capitalismo se quebrou sobre a base do colapso econômico de 2008. As mobilizações de massas foram rapidamente infiltradas por grupos muçulmanos, que tinham vários graus de aproximação com o imperialismo, que buscavam derrubar o governo de al-Assad um aliado de primeira ordem da Rússia no Oriente Médio.
No mês de julho de 2012, al-Assad fechou um acordo com os curdos sírios e retirou as tropas do nordeste do país com o objetivo de concentra-las na defesa das principais cidades e na contenção dos ataques do então Estado Islâmico do Iraque que avançava a partir da província iraquiana de Anbar.
Os curdos se organizaram rapidamente e estabeleceram uma região autônoma, autoproclamada como “Rojava”, dirigida por uma frente política denominada PYD (Partido da União Democrática), que tinha sido fundada em 2004, quando estouraram revoltas na cidade síria de Qamishli, de maioria curda. O braço armado do PYD, o YPG (Unidades Populares de Defesa) não somente tem sido capaz de proteger o território curdo na Síria, mas, também, o expandiu.
O governo turco busca bloquear a expansão dos curdos na Síria com o objetivo de evitar o fortalecimento dos curdos na Turquia. Para isso, o exército turco precisa se envolver ativamente na guerra, o que obviamente ameaça arrastar o país à guerra.
O grosso desses territórios se encontra localizados na Alta Mesopotâmia, na chamada “Jazira”. Se trata de uma planície, muito fértil e favorável para a agricultura, onde também há petróleo. A área é muito difícil de ser defendida ao mesmo tempo que tende a ser palco de conflitos sangrentos, uma nova onda de “siriação”, dentro da já ultra caótica Síria.
O governo turco declarou que tem como objetivo estabelecer uma zona de “buffer” na fronteira com a Síria, que deveria ser controlada pelo exército, com a participação dos norte-americanos e os “próprios” guerrilheiros. Essa política é confrontada pelos russos e o Irã, e pode levar a uma guerra total contra os curdos sírios e até a liquidar com o controle da região pelo YPD, conforme outros grupos guerrilheiros sunitas se envolvessem, de olho nas riquezas naturais. Uma parte dos guerrilheiros do YPG poderiam começar a atuar na própria Turquia, onde existe a proteção natural das montanhas e o PKK.
A política do governo turco é impulsionada pelo aprofundamento da crise, que ficou evidente nas recentes eleições. É uma política claramente de crise que ameaça levar a “siriação”, ou “libiação”, ou “somalização” em direção à Turquia, abrindo caminho para o Cáucaso e o sul da Rússia.
As periclitantes relações da Turquia e a Rússia
As relações entre os governos Putin e Erdogan evoluíram positivamente no último período, até o incidente da derrubada do caça russo. A Turquia, apesar de ser um membro da OTAN, tem mantido uma relação ambivalente com os Estados Unidos e a Europa. A Rússia tem buscado influenciar essas relações desenvolvendo as relações comerciais energéticas, que representam o principal componente da política econômica turca após a crise da indústria têxtil que estourou a partir de 2008. O gasoduto SouthStream foi desviado, no Mar Negro, da Bulgária para a Turquia, para driblar as regulamentações da União Europeia relacionadas com o monopólio da Gazprom, o gigante do gás russo, no fornecimento de gás.
A saída da Frota russa do Mar Negro depende do Estreito de Bósforo, que é controlado pela Turquia.
As relações entre a Rússia e a Turquia começaram a entrar em rota de colisão com a escalada da intervenção russa na Síria. A Turquia depende do controle da região para viabilizar a própria política. O lucrativo e disputado fornecimento de gás à Europa, com a perspectiva da Turquia se converter num nó (hub) depende dessa política. Está em jogo não somente o transporte do gás russo, mas também do gás do Catar, Irã, Azerbaijão, Turcomenistão e até do Líbano e Israel.
A Rússia também tem pretensões de potência regional e depende do sucesso da intervenção na Síria para aumentar o mercado de armas no Oriente Médio e no mundo, reduzir as sanções relacionadas à Ucrânia, disputar o mercado de fornecimento de gás e de energia nuclear na região. Além disso, há a questão dos grupos guerrilheiros financiados pelas monarquias do Oriente Médio que podem começar a atuar no Cáucaso, nas repúblicas da Ásia Central e no sul da Rússia (Tchetchênia e Daguestão) no caso do governo sírio colapsar.
O governo turco, encabeçado pelo primeiro ministro Erdogan, tem impulsionado os próprios “rebeldes” com o objetivo de conter o avanço dos curdos e de aumentar a própria influência na região. O Estado Islâmico tem sido um dos principais favorecidos por meio da facilitação de rotas logísticas e para a comercialização do petróleo que eles controlam. A mesma política tem sido aplicada pela Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos, e, em alguma medida, pelo Catar e o imperialismo.
Por trás da retórica, a política do “salve-se quem puder”
Os ataques da aviação russa na Síria têm como objetivo fortalecer as posições do governo de al-Assad para pressionar no sentido de uma saída negociada. A Rússia não tem condições de controlar a Síria com as próprias forças, pois entraria em rota de coalisão com as demais potências regionais e com o imperialismo. Mas, a partir do enclave criado nas províncias de Latákia e Tartus, as regiões habitadas pela minoria alawita que está no poder, os ataques avançaram sobre as regiões vizinhas.
A aviação russa possibilitou o avanço do Exército sírio, apoiado pelas milícias xiitas, controladas pela Guarda Revolucionária Islâmica iraniana, e o Hizbollah, a poderosa milícia libanesa, nas estratégicas províncias de Idlib e Aleppo, e sobre o coração do Califato do Estado Islâmico, Raqqa e Deir el-Zour. Localidade onde os “rebeldes” avançavam foram retomadas. Após dois anos, o Exército conseguiu controlar Sweida e a sitiada base aérea de Kweiris, na região oriental de Aleppo. Na região central da Síria, unidades de artilharia russas teriam ajudado na retomada de Mahin, que se encontrava sob controle do Estado Islâmico e estariam atuando na retomada de outros povoados, como Jabal Zuwayk, em Latákia. A ofensiva sofreu alguns revezes no norte de Hama, mas avançou em quase todas as frentes, ao ponto que o presidente Sírio, al-Assad começou a reclamar o controle total do território da Síria.
Em paralelo, os Estados Unidos têm atuado estreitamente com o YPG curdo, que passou a fazer parte da frente Forças Democráticas Sírias, que inclui também a Coalisão Árabe Síria, assírios e turcomenos. O governo turco tenta desesperadamente controlar uma faixa fronteiriça do território sírio e colocar os curdos na defensiva.
O envolvimento dos russos e do Irã na Síria, e mais recentemente dos chineses, tem limitações. A resistência dos “rebeldes” apoiados pelas potências regionais e pelo imperialismo tem obrigado a aumentar o envolvimento militar, colocando o risco do fantasma da derrota russa no Afeganistão. Por esse motivo, a política de Putin e dos aiatolás iranianos é buscar uma “saída negociada” com o imperialismo e as demais potências regionais.
O gás do Mar Cáspio no centro das contradições
Perante o acirramento das contradições pelo negócio do fornecimento de gás para a Europa, o gasoduto Trans-Cáspio voltou a ser colocado à ordem do dia para desespero dos russos. Se trata de 300 quilômetros que deverão unir o porto Turkmenbashi (Turcomenistão) e Baku (Azerbaijão). Com capacidade para o transporte de 30 bilhões de metros cúbicos (bmc), o próximo destino seria a Turquia, passando pela Geórgia, de onde chegaria à Europa.
Os interesses russos foram colocados em xeque, pois aos atuais 4,7 bmc que o Azerbaijão já transporta, ainda deverão ser adicionados 10 bmc em 2018, a partir do campo Shah Deniz II.
O fornecimento dos Balcãs e da Europa Oriental com gás do Azerbaijão e do Turcomenistão, por fora do controle da Gazprom, o gigante russo do setor, enfraqueceria o poder russo na região abrindo passo para uma maior escalada da agressividade militar da OTAN por meio desses países.
Por meio do aumento da pressão, mediante vários mecanismos econômicos e militares, o governo russo conseguiu afastar o Turcomenistão dessa política e envolver o países no direcionamento do gás para a Rússia e a China. Além disso, o governo do Irã está alinhado com essa política. Não por acaso, os 26 mísseis de longo alcance que a Marinha russa disparou contra o Estado Islâmico tiveram como origem a Frota do Mar Cáspio e sobrevoaram o Irã, com a permissão do regime dos aiatolás.
O governo turco de Recep Tayyip Erdogan tem tentado se contrapor à política russa no Mar Cáspio. No início de novembro, Erdogan esteve em Ashgabat, a capital do Turcomenistão, com o objetivo de assinar acordo de fornecimento de gás natural, apesar de não ter especificado como o gás seria transportado. Duas semanas depois, o presidente da empresa estatal de petróleo do Azerbaijão declarou, em visita ao Turcomenistão, que o governo estaria preparado para investir no gasoduto Trans-Cáspio.
A Turquia, que mantém proximidade nacional sobre esses países, busca se favorecer do aumento das contradições da Rússia com vários das antigas repúblicas soviéticas, enquanto a Rússia tem direcionado o grosso dos negócios para a China.