O caráter subversivo do carnaval tende a ser facilmente evidenciado, no sentido em que proporciona a anulação temporária das hierarquias sociais. Claro, não sem ambiguidades e limitações, decorrentes da dilatação progressiva da lógica capitalista que incide sobre a festa.
Em todo caso, uma importante potencialidade democrática e uma significativa veia antirracista são variáveis que compõem um certo imaginário utópico da nossa sociedade, tendo por centro o perfil de inúmeros comportamentos que marcam a folia carnavalesca.
As elites políticas e econômicas brasileiras e cariocas, somente há poucas décadas, têm valorizado o carnaval organizado pelas escolas de samba. Ao seu modo, apropriam-se e dão ênfase ao que lhes interessa, especialmente se obtiverem retorno financeiro ou se a festa permitir que aquelas sejam investidas de imagem pretensamente popular, na medida em que isso se traduza em capital simbólico ou político.
Contudo, no resto do ano é pau e satanização nos criadores reais desse carnaval. Alegria e descontração à parte, máfias gerenciais de lado, para o que nos importa em particular, as escolas de samba demonstram uma ampla capacidade industriosa de trabalho.
Um enorme engenho criativo da nossa gente, em grande medida simples e com pouca formação escolar. É gritante o trabalho de criação, envolvendo grandes equipes que alcançam soluções não raro simples para problemas e objetivos complexos.
Não fossem o colonialismo mental e o racismo latente – que tipificam a estrutura de poder nacional e se irradiam, velada ou abertamente, em toda a estratificação das classes sociais brasileiras – o setor industrial no País poderia perfeita e autenticamente ser brasileiro e ampliado.
Isso sem qualquer necessidade de nos submetermos aos interesses do capital internacional, de financiarmos multinacionais, que nada trazem em recursos e que, com sua maquinaria e suas técnicas importadas, inibem a geração de emprego para a nossa gente. Além de subtraírem nossas riquezas, enriquecendo outras praças. Há tempos a indústria tem encolhido e sido submetida a intensa desnacionalização.
Não é por falta de engenho criativo e laborioso do nosso Povo que nos encontramos tão dependentes da tecnologia forânea e subalternizados ao poder das multinacionais. Pelo contrário. Esse engenho nos sobra – o carnaval, sobretudo das escolas de samba, nos mostra isso – e poderia ser impulsionado com investimentos em educação, ciência e tecnologia e domínio estatal ou cooperativo das indústrias.
Criação e domínio nacional de tecnologia, atendendo às necessidades de consumo do grosso da população e, com maior intensidade, proporcionando o aumento da oferta de empregos que adensem os postos de trabalho e reduzam o desemprego e o subemprego.
Diga-se, virtualmente poderia corresponder a um decisivo instrumento de diversificação da nossa pauta de exportações e de intercâmbio comercial e tecnológico, com nações igualmente periféricas e que buscam saídas mais autônomas frente ao centro capitalista e imperialista.
Uma utopia que se choca frontalmente com tudo o que os golpistas, entreguistas, americanófilos, racistas antipovo, do bloco de poder brasileiro defende.
O carnaval sempre nos permite lembrar das nossas potencialidades, enquanto Nação. Possibilidades virtuais de uma sociedade, bastante claras em curto período do ano, lançadas normalmente no limbo, recalcadas, pelas oligarquias políticas e pelo condomínio burguês multinacional e doméstico associado.
A imaginação utópica de um País assentado em bases mais democráticas, antirracistas, tecnológica e politicamente soberanas, tem muito a ser aguçada com o nosso rico experimento cultural festivo.
O carnaval e as virtudes criadoras de múltiplos agentes que o produzem, com toda a sua deslumbrante beleza, são alguns dos grandes ensinamentos do Povo para o País. Um tapa no nariz arrebitado dazelites vende pátria.
Roberto Bitencourt da Silva – historiador e cientista político. http://jornalggn.com.br/blog/roberto-bitencourt-da-silva/