Nos ficheiros, sobre os quais debruço a minha análise, do século XIX, atento, desde logo, à letra cuidada e até caprichosa do pároco da freguesia. Em abono da verdade, invejo-lhe a caligrafia, por comparação aos meus gatafunhos, que só são salvos pela ascenção da datilografia. Nos livros anuais de batismo, repetem-se as Marias. E os Maneis, portanto. Há uma certa equidade em relação ao género na repetição dos nomes atribuídos, seguindo-se a legitimidade da mesmas, a hora de nascimento e o nome dos pais e respetivos padrinhos.
Por defeito de fabrico, quero dizer, de socialização e formação, dou-me conta de questões que são subjacentes aos documentos, encontrando-me com o pensamento andejo na significação das palavras. Não deixo atentar no tratamento pessoal, aquando dos batizados dos indivíduos em questão e de como esta questão pode, por exemplo, ser extrapolada para a época contemporânea.
A legitimidade dos filhos é uma expressão em desuso na atualidade, fruto da laicização social e da perda da força moralizadora da Igreja Católica. Os ilegítimos, a menos que tenham sido legitimados por um casamento a posteriori, por um páraco, que a troco de algo (não há almoços grátis, lembrem-me!), daria legitimidade social, teriam de viver com o peso da marginalização social. A designação da prole nascida dentro dos laços do matrimónio, era indicada nestes documentos, assim como as profissões dos progenitores, onde se poderá vislumbrar, desde o nascimento, a posição social da recém-nascida.
Ou seja, Maria, com a desvantagem de ser mulher, teria sorte na vida se fosse legítima, não sendo filha de Guilhermina mas de Senhora Dona Guilhermina, proprietária de terras. O marido de D. Thereza, Jozé não-sei-quantos-nomes, não seria certamente lavrador ou tecelão ou jornaleiro. Tão-pouco, como o outro do livro que o pároco lia, poderia ser carpinteiro, mas, sim, proprietário ou industrial, com três ou quatro ou cinco nomes de família, que mui notavelmente lhe ilustravam o estatuto social. Maria, logo à partida, como qualquer Manel, seria filha de um título e não meramente de duas pessoas. Título esse que constava nos nomes de família, que abdicaria em prol do marido após o casamento, sendo o garante de propriedade de um Manoel, industrial.
Já a outra Maria, nascida em mil oitocentos e picos, era filha de Manoel, lavrador e de Anna, lavadeira, enquanto que a Albertina, era filha de Jozé, jornaleiro e Justina, fiadeira. Todos ao serviço de proprietários rurais, que eram os pais de Maria não-sei-quantos-nomes. Por cada novo nado vivo, que dava entrada no livro da freguesia, repetiam-se os autografados nomes, do padrinho e da madrinha, num Portugal rural e feudal que o páraco da freguesia copiosamente resgistava e abençoava. Todos apadrinhados pela Exma. Sra. Dona Guilhermina, proprietária, abaixo assinado, dona dos confins da freguesia de Santa Maria de não-sei-onde, na comarca de nenhures, num país chamado Portugal.
Diz-se que a família tivera relação com barcos negreiros idos para o Brasil, mas isso não me confessa a história, e muito menos estes documentos. Apenas que era excelentíssima, senhora e também dona de três títulos que precediam o nome Guilhermina que à época estaria de moda. Entre as Claudinas, Josefinas, Albertinas, Marinas, Armandinas e Afonsinas estariam todas as outras Marias com nomes terminados em “ina”, permitidos pela onomástica portuguesa. Restam algumas Catarinas, Carolinas e Cristinas. Como que no seguimento, da lei², de que “tudo que vicia começa pela letra C” também os nomes estarão viciados por este mistério!
Tendo estes registos prestado-me auxílio para fazer o rastreio dos meus antepassados até meados do século XIX, tiveram de ser interrompidos, pela dificuldade de rastrear a origem de certos elementos da família, que teriam vindo de outras freguesias. É que, às vezes, lá vinha um forasteiro de outra freguesia, dar continuidade à família, para que tudo não acabasse em relações incestosas. Tudo parecia mais fácil se se pregasse sempre na mesma freguesia, entre famílias conhecidas, que culminava tudo numa grande família, numa diversidade singular de toda a família Oliveira, ou Pereira. Ou dos Santos, ou Silva, ou Ferreira.
O “Zeitgeist”, conceito alemão para “espírito da época”, ou por outras palavras, os sinais do tempo, pode ser ser vislumbrado também nestes documentos, embora haja muito que ficou por contar. Há, no entanto, histórias diluídas em contos, que as avós ainda contam, um tanto difusas, outro tanto imaginadas, enfim, que poderiam ser mais e melhor registadas. Para falar de todas as Marias, e não apenas das Marias-proprietárias, das quais, a história já reza suficientes ladainhas. É nosso dever conhecer a história, que é uma forma de saber donde vimos e para onde vamos.
Como exemplo admirável na história mediática portuguesa e na história em geral, sugiro a visualização do trabalho de Michel-Marie Giacometti, realizado por Alfredo Tropa, apresentado e divulgado pela RTP, com o título de “Povo que canta”. Nesta série, apresentada durante três anos pela televisão pública, o etnolólogo francês, junto com a sua equipa e equipado de uma bibliografia e um rigor de investigação, pouco comum no contexto do Estado Novo, faz uma recolha de cantos populares portugueses, de norte a sul do país, que nos leva a refletir sobre os percursos da nossa identidade, enquanto povo. Nesta série, é recuperada uma boa parte da memória musical popular, desses que de outra forma seriam esquecidos, mas que tanto contribuíram para a nossa identidade coletiva. Para que não caiamos repetidamente no perigo de não conhecermos as nossas raízes enquanto povo, diferenciado por questões de classes sociais, de gcom diferigo que a e que somos uma massa homtir sobre os percursos da nossa identidade enquanto povo hora de nascimento e o nomeénero, de gerações, com com a falsa ideia de que somos uma massa homogénea. Das Marias e dos Maneis, dos Faustinos, Claudinas e Albertinas, pouco fica narrado na história, conquanto, isso seja uma decisão nossa, numa sociedade que, ainda hoje, continua muito desigual, também pelo preconceito de olhar para si mesma.
Vírgilio Ferreira afirmava que a eternidade dura, enquanto não se é esquecido, remetendo para a memória dos homens a responsabilidade do eterno, memória essa, que, quer queiramos, quer não, será sempre e invariavelmente efémera, dado o tempo de vida dos homens. Mesmo 100 gerações, na escala da Vida, no seu conceito mais amplo, se resume a menos que a duração de vida de certas árvores. No entanto, há que colocar o eterno, enquanto objetivo. Será, talvez, mais razoável medir a eternidade da memória dos homens, como Vinícius de Moraes mediu a duração do amor, que é eterno enquanto dura³. Pois, então, que ousemos que ele dure e que nele caibamos todos.
[1] http://pesquisa.adporto.pt/
2 “Tudo que vicia começa pela letra C”, vídeo de Ricardo Mallet, que deu origem ao texto, com o mesmo título que, falsamente, se atribui a Luís Fernando Veríssimo. https://www.youtube.com/watch?v=5NoXW48uw1Y
[3] Vinicius de Moraes, Soneto da Fidelidade, 1960, http://www.releituras.com/viniciusm_fidelidade.asp