“Eu não me importo com esse tipo de conquista”, diz o filósofo, para quem “a revolução não é o porre, a revolução está na ressaca do dia seguinte”. Žižek então reconta uma piada sua sobre o filme V de Vingança, de 2005: “o filme termina com cidadãos mascarados tomando o Parlamento. Eu adoraria mesmo é assistir V de Vingança, parte 2. O que eles fariam no dia seguinte, como reorganizariam a vida cotidiana?”, pergunta o filósofo, pragmaticamente.
O mais próximo que eu cheguei de manifestações como a egípcia foi o junho de 2013 brasileiro, do qual eu era participante ativo e crédulo. O porre de 2013, para não deixarmos a piada de Žižek, foi intenso, promissor, festivo até. Sua ressaca, no entanto, foi insuportável. Não deu a mínima continuidade à miríade de demandas de seus manifestantes. Muito pelo contrário, um anos depois, em 2014, ganhamos das eleições nacionais um congresso e um senado mais retrógrado e fundamentalista do que podíamos imaginar. Retrospectivamente não é difícil concluir que a chamada “primavera brasileira” foi um desserviço invernal.
O desfavor da bebedeira revolucionária das flores de 2013, porém, não parou por aí. Sua ressaca insuportável foram também as populosas marchas pró-impeachment, pró-ditadura militar e, pasmem, pró-monarquia que ocuparam as ruas brasileiras em 2015 e 2016, cujo resultado amargamente concreto foi o afastamento de uma presidenta democraticamente eleita e a tomada do poder por uma corja de oligarcas corruptos que, se não estão levando o país de volta para o tempo do Império, como queriam alguns, ao menos reinstauraram a Velha República de antes de 1930, ambiente excelente dos resistentes oligarcas tupiniquins.
Diante dessa ressaca revolucionária brazuka, é impossível não concordar com a piada de Žižek. Tanto que não pude deixar de rever o filme em questão: V for Vendetta. Depois de reassisti-lo, no entanto, a piada do filósofo me pareceu mais pertinente ainda. Paradoxalmente, tanto melhor porque mais sem graça. Embora o herói do filme, mascarado de Guy Fawks, rascunhe na superfície do real distópico a mais utópica anarquia revolucionária, cujo ícone certamente é o terrorismo poético da explosão de símbolos do estado opressor ao som de Tchaikovsky, tudo o que vemos –Žižek tem razão!- é apenas o delicioso porre; nada da necessária administração da ressaca revolucionária subsequente.
É frustrante ver que, em vez de o herói mascarado usar a sua verve revolucionária para fazer dos cidadãos os agentes efetivos e sempiternos da mudança, ele os mantêm como espectadores passivos o tempo todo. Anuncia, em um hackeamento televisivo, que explodirá o parlamento dentro de um ano. Solicita aos seus telespectadores apenas que compareçam na data marcada. Nesse meio tempo, sai à caça de políticos e empresários corruptos, e, como assinatura de seus atos, deixa uma rara rosa vermelha sobre os corpos assassinados. O público, no entanto, segue alienado de seu trabalho revolucionário, uma vez que a mídia divulga sempre outros motivos para as tais mortes e atentados. E também sobre a rara flor, nada.
Dias antes do agendado atentado ao parlamento, o mascarado envia, pelo correio, máscaras e roupas teatrais negras como as suas à população, para que as usem durante o espetáculo terrorista final. No dia “D”, melhor dizendo, no dia “V”, milhares de pessoas vestidas de Guy Fawks marcham em direção ao parlamento. O Estado opressor, que cerca o prédio do poder ao modo de proteger a si próprio, fica apenas confuso com a multidão de mascarados. Enquanto isso, subterrânea a solitariamente, o herói mata o chanceler do mal, contudo, pagando por esse penúltimo ato com sua vida.
Morto e coberto com centenas das suas raras rosas vermelhas, o mascarado repousa sobre as toneladas de explosivos que destruirão o parlamento. Novamente Tchaikovsky invade as ruas da cidade. O símbolo máximo do poder é então explodido espetacularmente. Mistura de ópera, implosão e Réveillon de Copacabana. Os milhares de cidadãos mascarados assistem entusiasmados. Porém, mais uma vez, apenas assistem. Nenhuma envolvimento prático. Somente mais do mesmo exercício contemplativo, impotente por natureza, com o qual, aliás, estão bem acostumados. E essa contemplatividade coletiva, é preciso lembrar, é o espaço de conforto excelente à atividade dos opressores.
Agora, se o herói mascarado, em vez de presentear os milhares de cidadãos com um belo figurino, tivesse lhes ensinado o caminho da revolução; em vez de meramente ter vestido adequadamente a plateia, tivesse feito dela a atriz coletiva e dona do palco da mudança; em outras palavras, se tivesse dividido entre todos eles as toneladas de explosivos que destruiriam o poder opressor, para que cada um levasse consigo e detonasse uma parcela da pólvora, certamente teria feito deles parceiros, senão da mudança efetiva, ao menos de sua tentativa. Não obstante, o mascarado-mor, desde o início do filme, monopolizou toda a ação e manteve aqueles a quem a revolução realmente interessava nos assentos de suas reacionárias passividades contemplativas. O V de Vingança bem poderia ser de Vaidade.
É óbvio que no dia seguinte, no dia “R” de Ressaca, essa multidão alienada, porém entretida, não saberia o que fazer com a ruptura produzida pelo espetáculo que, em verdade, apenas assistiram. Se o tivessem produzido e encenado ativamente, isto é, se tivessem se embebedado com a revolução e explodido eles mesmos o poder que lhes oprimia, haveria alguma esperança. Entretanto, ineptos à manutenção de uma mudança que sequer foram capazes de propiciar, quem os comandará no “day after” será o poder atingido, pois este sabe muito bem como emendar fraturas, tal é a perícia da reação.
Porventura não aconteceu o mesmo na famigerada primavera brasileira de 2013, com milhares de cidadãos ironicamente usando a mesma máscara de Guy Falks e querendo o mesmo fim do estado explorador, mas que, no entanto, tiveram o seu dia seguinte reconquistado e a sua ressaca administrada justamente pelos poderes que queriam ver destruídos? Quem foi o mascarado solitário que incitou as hordas de brazukas a vestirem e desfilarem sua máscara para que realizassem a “revolução” dele, e não a que os próprios brasileiros necessitavam empreender coletivamente? Se atentarmos ao dia seguinte, e a quem o dominou e domina até aqui, temos que é a direita brasileira.
Žižek, na mesma entrevista, diz que, na disputa eleitoral americana, o absurdo imperialista de Donald Trump tem ao menos a virtude de ter fortalecido o socialismo de Bernie Sanders. Sem Trump, os esquecidos ideais socialistas não teriam sido reacesos com tanta intensidade no coração do debate político daquele país. E isso porque que toda ação tem uma reação de igual intensidade, porém, de sentido contrário. As flores de 2013, ingenuamente, desconsideraram essa dinâmica. Sua explosiva pretensão revolucionária, no dia seguinte, foi confrontada por uma tensão reacionária contrária, e o que é pior, de maior intensidade. E para não dizer que a metáfora da lei da física não se aplica aqui, esse diferencial desfavorável à revolução atina justamente à ingenuidade dos pretensos revolucionários em respeito à sempiterna dialética da luta.
A atual vitória da direita brasileira, todavia, não é o fim da história. Se a ação de 2013 acendeu a reação de 2016, a “ação reacionária” de 2016, por sua vez, outra coisa não é que o germe de uma “reação revolucionária” próxima, assim como, diz-nos Žižek, o capitalismo galopante de Trump foi capaz de recolocar o socialismo de Sanders em marcha no núcleo duro e capitalista que são os Estados Unidos. Agora, uma coisa é fundamental: só haverá uma verdadeira revolução que atravesse o porre da ruptura inicial e prossiga virtuosa na ressaca subsequente se ela for empreendida ativamente pelos que dela precisam. Do contrário, se confiarmos em heróis mascarados espetaculares e promissores somente, outro destino não teremos que o de espectadores passivos de uma revolução que apenas mentirosamente era para ser nossa.
Atualmente, as mais expressivas, todavia ainda ineficazes, reações da esquerda em relação à ostensiva “ação reacionária” da direita oligárquica brasileira são as milhares de hashtags-redes-sociais e os sobretudo recreativos encontros do tipo OcupaMinc, nos quais um artista ou um intelectual qualquer -que bem pode estar fazendo o papel do revolucionário mascarado solitário de V de Vingança- coloca suas palavras de ordem enquanto a massa o assiste e aplaude, passiva e contemplativamente. As hashtags mentem muito bem que somos nós que estamos discursando, e para o mundo todo; os shows musicais das ocupações nos iludem de que estamos todos afinados em um objetivo único. No entanto, os selfies que de lá saem direto para as timelines individuais e a conta da cerveja pós-manifestação depõem contra essa pretensa harmonia.
E isso porque essas ações são mais estéticas do que políticas, o que,mutatis mutandi, é o calcanhar de Aquiles das esquerda atual. A dimensão estética é a da sensibilidade, ou o que é o mesmo, a da subjetividade. Envolvidos subjetivamente com a revolução, somos apenas uma multidão de exércitos de um indivíduo só, cada um lutando solitariamente por seus próprios ideais, e, muitas vezes, uns contra os outros. Já o envolvimento objetivo com a mudança, esse é e só pode ser político. Quanto mais não seja, porque a política nasce da superação do solipsismo subjetivo, estético, em função de uma objetividade capaz não só de compartilhar universalmente a condição particular de cada um, suas necessidades e potencialidades individuais, como também e principalmente, de planificá-las todas em busca de suas realizações. Afinal, a essencialidade da revolução não está na ruptura que promove, mas nas vindimas que é capaz de oferecer, uma vez que a vindima engloba o período entre a colheita das uvas -o porre revolucionário- e o inicio da produção do vinho -a ressaca da reorganização da vida cotidiana, como gostaria Žižek.