A essência da vida urbana está na constante relação com o Outro. Essa proximidade causa grandes prazeres, mas também medos intensos. Estes dois sentimentos extremos são chamados de mixofilia e mixofobia, amor à mistura e pavor da mistura, respectivamente, pois da mesma forma que a cidade virtuosamente conecta o cidadãos com os demais e com a realização de suas próprias necessidades, também pode, viciosamente, roubar tal conexão. Na urbe, portanto, vive-se a mais intensa experiência de amor e medo em relação à alteridade.
Entretanto, o amor e o pavor que o Outro-cidadão pode causar, muito antes de figurarem na heterogênea big picture urbana, são afetos individuais, produzidas pela população de desejos e medos que residem dentro de cada indivíduo. Isso porque uma pessoa só pode nutrir pelos outros sentimentos que ela tenha primeiramente experimentado em si mesma. De que outra forma a subjetividade angariaria objetividade? Antes de amar ou se amedrontar com o exterior, o próprio sujeito já é um mundo simultaneamente amado e amedrontado interiormente, por ele próprio. Todavia, na urbe amor e medo se evidenciam grandemente, e deles pode ser dito que são causados pelos outros.
No germe da cidade está a mixofilia, pois ela tem a virtude de aproximar os indivíduos, fazendo brilhar o prazer e a vantagem da presença do Outro. O carnaval, por exemplo, é um evento mixofílico por excelência. Da mixofobia, entretanto, não pode ser dito o mesmo, pois o medo do outro é sistematicamente convertido em isolamento, distanciamento, exclusão; o que desdiz sobremaneira o propósito citadino. Para esse medo: muros, câmeras de vigilância, condomínios e semblantes fechadíssimos!
Porém, o medo do Outro não desaparece apenas ao se adquirir distância dele. Essa distância, aliás, é o medo realizado, espacializado: a sua medida urbanizada. Ainda mais angustiante é perceber que esse Outro de quem se tem medo e de quem se deseja separação é um concidadão: foge-se dele dentro da mesma gaiola. O maior problema damixofobia urbana é que ela institui o não-diálogo entre quem se sente atemorizado e quem causa tal temor. Felizmente, a mixofilia, o amor à mistura, é cidadã a priori da cidade. Pode e deve ser trazida à ágora urbana sempre que o pavor da mistura estiver tiranizando os cidadãos. Na praia, nas festas ou nos estádios de futebol, por exemplo, nos misturamos com prazer, sem o medo ditador imperar.
Lutar contra a mixofobia diante da massiva alteridade urbana, imanentemente, é transformar a sempre vulnerável individualidade em uma cidadania mais forte, acolhedora, mixoifílica. Afinal, não foi por segurança que o homem se aglomerou em cidades? Paradoxalmente, o medo de perder tal segurança é que cinde a cidade a partir de dentro. Cada cidadão, portanto, deve encontrar um semovente lugar afetivo dentro da urbe que lhe disponha a cultivar e a viver mais o amor à mistura que à separação. Somos mais cidadãos agrupados no passeio público do que segregados no Alphaville, ora bolas!
É na relação mixofílica que somos capazes de estabelecer com o Outro-cidadão que reside a arte de viver na cidade. Até porque, é bom não esquecer, cada cidadão também é um Outro em relação aos demais. Desse modo, o melhor remédio para o cidadão amedrontado com a presença e com a proximidade do Outro é investir no amor à mistura. Afinal, essa atitude outra coisa não faz senão dizer para esse Outro que ele também amará se misturar, e o que é melhor, sem medo.