Tinha ido ao desfile popular, em Lisboa, quando, mal saio metro, mete-se à minha frente um tipo alto, muito loiro, vestido de camisinha branca e calcinha preta, engomadinho como se fosse para um baptizado, e diz-me assim: «Tem um minuto Deus nozo sinor?» era um elder, vulgo mórmon americanus.
Subimos avenida juntos, com o gajo a tentar convencer-me a juntar-me aos mórmones e eu, por outro lado, a tentar convencê-lo a juntar-se ao desfile. A páginas tantas, o elder, cujo nome já se me foi da alembradura, confessou-me que para ele o 25 de Abril não queria dizer nada. Primeiro porque não era de cá e, segundo, porque o reino dele não era deste mundo. Tentei explicar-lhe que ele, como imigrante que, no fim de contas, era, tinha boas razões para descer avenida, nem que fosse por solidariedade. O elder disse-me que não lhe interessava a política: o desemprego, a pobreza, a injustiça e as desigualdades pareciam-lhe detalhes irrelevantes no grande esquema de deus.
Só depois é que a conversa azedou: então não é que o cabrão do elder, que há segundos jurava não se interessar por política, me explicou que achava muito bem que se trabalhasse neste feriado, porque afinal, o 25 de Abril não estava na bíblia. Mais, e aqui é a porca torceu o rabo, a igreja dele aproveitava sempre a tarde do 25 de Abril e do 1.º de Maio para ir às compras.
A conversa acabou aí e nunca mais falei com ele. Mas, nessa mesma tarde, vi-o no Chiado. Os anarquistas tinham feito a sua própria mini-concentração, voluntariamente segregados do desfile popular que, aparentemente, não era suficientemente «combativo». A bófia carregou à bruta. De todos os lados, os extensíveis acertavam em tudo o que se mexesse. Era mesmo «para limpar» e ia tudo à frente. Foi uma coisa terrível: havia sangue no chão, mulheres aos gritos e a polícia batia, batia, batia...
Mas no meio da carga, vejo o elder, com dois sacos do pingo doce nas mãos, a correr à frente de um polícia, que diligentemente o apanha e, sem qualquer travo de xenofobia, lhe presta um enorme enxerto de porrada. O elder, desesperado, sem largar os saquinhos, tentava explicar ao polícia que não tinha nada a ver com aquilo, que não queria saber de política e só tinha ido às compras, que não sabia o que se estava a passar. Mas o polícia não falava inglês e o elder não levou menos por isso.
Fonte: http://manifesto74.blogspot.com