Anos depois, li um romance seu em que dedicava páginas à descrição do Issik Kul, um lago da sua Kirguizia. Era para ele o lago mais belo do mundo.
Senti o desejo de ir um dia conhecer esse lugar de mágica beleza. A oportunidade surgiu em 1987. O Pravda convidou-me e à minha companheira a passar férias na União Soviética e eu sugeri que, se possível, nos enviassem para o Issik Kul.
O que esperava? Não sei.
Chegamos noite fechada de carro, atravessando estepes semidesérticas próximas da fronteira chinesa.
De manhã, ao abrir a janela do quarto, senti-me projetado num mundo irreal.
Em baixo, o Issik Kul era largo como um mar. A outra margem distava uns 60 quilómetros. Na linha do horizonte subia para o céu azul um paredão rochoso encimado por um toucado de neves eternas.
Alguns píncaros da Cordilheira do Tien Chan ultrapassam ali os 7 mil metros.
Desci para uma praia de areia branca. A água do lago era tépida, de uma transparência que feria o olhar. Não gela nem nos invernos mais rigorosos. A vinte metros de profundidade, tijolos vermelhos cobriam a areia. Perguntei o que era aquilo. Informaram que eram ruinas de uma civilização desaparecida, anterior à invasão dos mongóis no seculo XIII.
Os primeiros dias foram uma viagem encantatória no descobrimento de cenários deslumbrantes.
As encostas protegidas dos ventos siberianos eram verdes. Brisas suaves acariciavam as ramarias de florestas de abetos e de cedros azuis. Essas matas desciam para planuras onde pastavam centenas de cavalos selvagens.
Soube que o lago atingia a profundidade de 600 metros.
Contaram-me que Tchinguiz Aitmatov, filho da Kirguizia, tinha uma casa de campo na região e se encontrava ali de férias. Uma entrevista com o escritor falhou à última hora porque ele foi chamado à capital.
Li nessas férias alguns dos seus livros que adquirira em Moscovo. Enfeitiçaram-me. O Issik Kul ajudou.
Escrevi muito ao longo dos anos sobre o grande lago. Sempre insatisfeito, consciente da insuficiência dos meus recursos literários para transmitir o que vira e sentira ao descobrir o lssik Kul emoldurado pelos gigantes do Tien Chan. Mas somente esta semana li Djamila, esquecida numa arca velha.
Recordei o filme e fui, transcorridas décadas, novamente sacudido por vagas de emoção.
Comentando a novela, Aragon escreveu: «uma história que é – juro – a mais bela história de amor do mundo. Uma história ao mesmo tempo breve e imensa. Uma história de amor onde não há uma palavra inútil, uma frase que não obtenha eco no coração».
Sinto-me incapaz de estabelecer uma hierarquia de textos sobre o amor. Mas registo a opinião do grande escritor francês e compreendo que a novela de Aitmatov o tenha fascinado.
O processo lento, quase molecular, do nascer da atração física e espiritual em Djamila e Daniar e a sua transformação num amor torrencial traz à memória o fluir de poemas eternos.
A escrita de Aitmatov é de uma simplicidade desconcertante. Diferente de outras, como as suas metáforas impregnadas do aroma das estepes e montanhas da Ásia Central. Quando Daniar canta, a sua melodia desperta a planura adormecida. Ele não estava apenas apaixonado por Djamila. Era, escreve Tchinguiz, «um amor diferente, imenso, era o amor à vida, à terra. Guardava esse amor dentro de si, na sua música, e vivia inspirado por ele».
Compreendo o desabafo de Aragon.
Djamila é um maravilhoso hino ao amor.
Vila Nova de Gaia, Abril de 2016