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Segunda, 06 Março 2017 12:35

O latifundismo hoje – posse e uso da terra no Alentejo

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País: Portugal / Laboral/Economia / Fonte: O Diário

[Vítor Rodrigues] O latifúndio, longe de estar erradicado, parece ganhar preponderância como sistema social dominante no Sul do País.

A exclusão que impõe no acesso à terra por parte de camadas antimonopolistas da sociedade acaba por estar na base da evolução dual da agricultura alentejana, que determina um perigoso e generalizado subaproveitamento, quando não abandono, ao mesmo tempo que intensifica a produção em outras áreas, colocando em causa a sustentabilidade dos agro-ecossistemas sobreexplorados.

Se houvesse que resumir a evolução da agricultura no Alentejo nas últimas duas décadas, seria de destacar as seguintes tendências: aumento da concentração da posse da terra; aumento do abandono e subaproveitamento de extensas áreas de terra; intensificação e especialização produtiva; Alqueva destacando-se como o grande motor de desenvolvimento da região; aumento sensível do capitalismo agrário; precarização do trabalho agrícola por contra de outrem.

As causas desta evolução residirão no desenho e aplicação da PAC (Política Agrícola Comum) em Portugal, privilegiando uma abordagem meramente capitalista e mercantilista da agricultura – o agronegócio – menosprezando outras dimensões da função social da agricultura: soberania alimentar, criação de emprego, correcção de assimetrias territoriais e sociais, fixação de populações, criação e fixação de recursos e valores em mãos nacionais.

Esta poderia ser uma síntese das principais conclusões do Simpósio «Posse e Uso da Terra – Caracterização da Agricultura no Alentejo», realizado em Évora no passado dia 26 de Outubro de 2016, por iniciativa da APA – Associação Povo Alentejano. No entanto, essa síntese não ficaria completa sem se assinalar que ficou claro também que existem alternativas políticas e tecnológicas que conduziriam ao aumento da produção agrícola no Alentejo e ao reforço da sua importância económica e social no País.

O Simpósio constituiu-se como uma iniciativa de elevada importância para compreender a realidade e apontar soluções para a sua transformação. Saúda-se esta iniciativa da Associação Povo Alentejano, pois deu-se um passo nesse caminho de luta e transformação, merecendo toda a consideração de comunistas e outros democratas e patriotas.

Evolução recente da agricultura no Alentejo

É importante contextualizar a importância do Alentejo para a agricultura nacional. O Alentejo possuía, em 2013, cerca de 55 por cento da Superfície Agrícola Utilizada (SAU) do Continente português, embora produzisse apenas 36 por cento do valor total da produção agrícola. A participação da agricultura alentejana no valor bruto criado na agricultura do Continente tem vindo a aumentar, uma vez que em 1989 era de apenas 24 por cento. Contudo, este crescimento é apenas relativo, já que fica a dever-se à acentuada diminuição do valor bruto da produção criado no Continente nas últimas duas décadas e meia1.

Desenvolvendo as ideias centrais atrás sintetizadas, é possível aferir o aumento da concentração da posse da terra a partir de vários indicadores. Em primeiro, lugar, a SAU detida pelas explorações de maior área (maiores que 50 ha) aumentou entre 1989 e 2009, situando-se neste ano em 90 por cento da SAU total do Alentejo. Isto num quadro em que, para todas as restantes classes de dimensão fundiária, a SAU abrangida diminuiu. Este valor contrasta com a percentagem de SAU em explorações com mais de 50 ha no resto do Continente que, apesar de seguir idêntica tendência de crescimento, é de apenas 40 por cento. O crescimento da proporção de SAU abrangida pelas maiores explorações também se deve à drástica diminuição de SAU em explorações até 5 ha (na ordem de 50%), tornando a expressão destas pequenas explorações, no caso alentejano, meramente residual.

Mas esta análise não dá uma ideia suficientemente clara do grau de concentração da posse da terra, pois existem grandes diferenças nas explorações com mais de 50 ha. Basta referir que a área média destas explorações era de 269 ha em 2009. Olhando para os pagamentos do Regime de Pagamento Único (RPU) às explorações2 realizados em 2015, verifica-se que apenas 284 entidades de um total de cerca de 13 000 receberam 25 por cento das ajudas provenientes deste apoio às explorações, o que denota um grau de concentração da posse da terra bastante mais acentuado do que o medido no parágrafo anterior.

A principal questão relativa à evolução do aproveitamento da terra no Alentejo é a alteração profunda verificada entre 1989 e os nossos dias quanto às percentagens de SAU sob diferentes utilizações. Esta alteração manifesta-se na diminuição de 28 pontos percentuais na percentagem de SAU de terras aráveis (culturas temporárias e pousio), tendo passado de 69 por cento para 31 por cento da SAU. Em sentido inverso, a área de pastagens permanentes, na sua maioria pobres, aumentou de 21 por cento para 57 por cento no mesmo período entre 1989 e 2009.

Embora esta terra tenha uma utilização estatisticamente declarada, ela corresponde a um subaproveitamento da mesma, quando não abandono de facto, situação que foi repetidamente afirmada no decorrer do Simpósio. Registaram-se, entre 1989 e 2009, diminuições muito significativas na SAU com cereais, leguminosas, culturas industriais e hortícolas, culturas mais intensivas e de maior valor.

Uma outra tendência, de algum modo contraditória com a anterior, tem ganho espaço no Alentejo: a da especialização produtiva, ou seja, a do aumento do grau de especialização das explorações quanto ao seu tipo de produção principal. Esta especialização tem sido acompanhada pela intensificação da agricultura nas áreas remanescentes de culturas temporárias tradicionais e culturas permanentes. Esta intensificação pode ser medida pelo aumento das produções médias em várias culturas, e ainda pelo aumento dos consumos intermédios.3

Isto quer dizer que, apesar da diminuição drástica da área ocupada com culturas tradicionais, os consumos de adubos, fitofármacos e outros factores de produção têm crescido. Este crescimento está na base de outra grande contradição registada na agricultura do Alentejo: os consumos intermédios têm crescido a uma taxa superior à do valor bruto da produção, levando a que o valor acrescentado venha diminuindo perigosamente. A situação é tão mais inquietante quanto é possível demonstrar que, sem as ajudas atribuídas pela PAC, a situação global das contas económicas da agricultura no Alentejo seria deficitária.

O reforço do capitalismo agrário no Alentejo está também patente, não só no grande aumento do número de sociedades detentoras de explorações (de 1100 para 2400 entre 1989 e 2009), mas mais ainda na SAU detida por sociedades, que passou de 118 000 ha em 1989 (13,7% da SAU do Alentejo) para mais de 740 000 ha em 2009 (37,8% da SAU alentejana). Seria interessante poder conhecer e analisar o grau de penetração de capital oriundo do estrangeiro e de outros sectores da economia na estrutura de capital social dessas sociedades, pois é cada vez mais sensível a existência de grandes empreendimentos em mãos estrangeiras ou detidas por grandes grupos económicos consolidados fora da agricultura e indústria alimentar.

Neste caminho de aumento do abandono e subaproveitamento concomitante com a intensificação do capitalismo agrário não é de estranhar que se tenha verificado, entre 1989 e 2014, a diminuição do volume global de mão-de-obra agrícola (compreendendo as unidades de trabalho do trabalho familiar e assalariado), embora o volume de mão-de-obra assalariada se tenha mantido sem grandes alterações. Para além da dificuldade em gerar emprego, a grande preocupação da actualidade é a precarização do emprego agrícola. Esta, mesmo não abrangendo os casos de contratação ilegal e a sobreexploração que parecem multiplicar-se com particular incidência no Alentejo, não escapa às estatísticas: a mão-de-obra não contratada directamente pelo produtor cresceu 170 por cento entre 1989 e 2009.

Liquidar o latifúndio: uma opção política e um imperativo reforçado

O latifúndio, longe de estar erradicado, parece antes ganhar preponderância como sistema social dominante no Sul do País. A exclusão que impõe no acesso à terra por parte de camadas antimonopolistas da sociedade acaba por estar na base desta evolução dual da agricultura alentejana, que determina um perigoso e generalizado subaproveitamento, quando não abandono, apesar de estatisticamente não declarado, ao mesmo tempo que intensifica a produção em outras áreas, colocando em causa a sustentabilidade dos agro-ecossistemas sobreexplorados. Esta sobreexploração estará em grande medida ligada ao favorecimento, por via da PAC e da sua aplicação em Portugal, de grandes grupos económicos com grande penetração de capital estrangeiro, tenham base nacional ou não.

O latifundismo continua ainda a assentar, embora em menor escala do que nos tempos do fascismo em Portugal, na exploração de mão-de-obra agrícola assalariada, que vê degradados os seus vínculos e condições laborais. Some-se a isto a degradação do acesso a serviços públicos de saúde, educação, comunicações, etc., que devastou o interior nos últimos anos em resultado das opções antidemocráticas dos últimos governos, e ficam comprometidas, sob o latifúndio, as funções sociais da terra e da agricultura.

No entanto, existem opções políticas e tecnológicas disponíveis para inverter esta situação. No Simpósio, deu-se conta de como o complexo hidroagrícola de Alqueva se vem assumindo como o motor económico da região. Esta realidade responsabiliza todos quantos protelaram e foram coniventes com as décadas de espera pela construção de Alqueva, e dá razão à luta que foi sendo travada pela sua construção. Ficaram também evidentes potencialidades a explorar quanto à exploração de Alqueva, a par de riscos identificados ligados à sustentabilidade ambiental decorrentes dos sistemas produtivos implantados no regadio. Acrescente-se, riscos potenciados pelo modelo capitalista de exploração das terras regadas.

A estas potencialidades somam-se possibilidades tecnológicas de simples implementação, que permitiriam a recuperação e conservação dos solos, aumentando o seu potencial produtivo. Daqui resulta que o estado actual da produção agrícola no Alentejo é uma opção política que tem alternativas, sendo possível definir uma política de investimento e acesso à terra que promova o aumento da produção e do emprego, contribuindo para a soberania alimentar e a coesão territorial e social.

Esta conclusão dá força às ideias de que é preciso cumprir o desígnio constitucional de desmantelamento do latifúndio, e que tal objectivo só pode ser cumprido no quadro de uma política democrática avançada, ancorada nos valores de Abril e com a perspectiva da construção do socialismo. Dá força à proposta de uma nova Reforma Agrária para o Sul do País, conduzida no contexto dessa política democrática, articulada com transformações coerentes noutros sectores da vida política e económica do País.

Muitas das tendências gerais identificadas na agricultura do Alentejo verificam-se de modo ainda mais agudo no resto do Continente. A questão da produção e do acesso à terra, a questão da ocupação do território rural e da escala de exploração dos recursos disponíveis em proveito do bem-estar comum, assume hoje uma natureza diferente, e deve ser considerada de modo integrado. Contudo, o Alentejo continua a encerrar particularidades socioeconómicas e históricas que continuam a fazer desta vasta zona do País um território em que é urgente uma transformação do modelo social e produtivo.

1) Dados do INE – Instituto Nacional de Estatística) disponíveis em: https://www.ine.pt/xportal/xmain?xpid=INE&xpgid=ine_bdc_tree&contexto=bd&selTab=tab2
2) Dados do portal do IFAP – Instituto de Financiamento da Agricultura e Pescas (http://www.ifap.min-agricultura.pt/portal/page/portal/ifap_publico) sobre Pagamentos
3) Notas retiradas a partir das comunicações apresentadas no Simpósio «A Posse e Uso da Terra – Caracterização da Agricultura no Alentejo». Consultar: https://aposseeusodaterranoalentejo.wordpress.com
*Este artigo foi publicado no “Avante!” nº 2257, 2.03.2017

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