A articulação entre os Estados visa aplanar o caminho para a integração desses territórios, fronteira dinâmica de avanço das cadeias produtivo-extrativas na região
No último dia 21 de dezembro foi condenado a nove anos e um dia de prisão o líder mapuche Facundo Jones Huala, julgado na província de Valdívia, Chile. O lonko (cabeça) Jones Huala não é, porém, mais um preso político mapuche. Extraditado pelo governo argentino depois de uma série de arremetidas repressivas no território mapuche e procedimentos judiciais marcados por irregularidades legais, sua condenação sela uma colaboração entre os dois Estados.
O povo mapuche vem sendo apontado como inimigo interno por ambos os países, Chile e Argentina, alinhados com a doutrina das “novas ameaças” ou “ameaças assimétricas” que pautam a crescente militarização no Cone Sul. A articulação entre os Estados visa aplanar o caminho para a integração desses territórios, fronteira dinâmica de avanço das cadeias produtivo-extrativas na região. Essas ações vêm se somar às iniciativas de infraestrutura logística e de produção e distribuição de energia, para a extração e o escoamento dos insumos de exportação. Mas elas fazem parte também de um ensaio para ações de maior alcance em toda a região, e não apenas contra os mapuches. Por outro lado, o treinamento e a utilização de tecnologia de guerra e de inteligência permitem também ampliar o campo de negócios para a cadeia de acumulação da indústria de armamento. A doutrina de segurança precede a efetivação de políticas de Estado para comprar essa tecnologia.
O povo mapuche é o “inimigo ideal” para este novo padrão de dominação da região, que exige a destruição dos marcos legais regulatórios das relações de trabalho, do uso dos chamados “recursos naturais” e da circulação do capital, ao prazer dos fundos de investimento. Sua perspectiva de mundo, sua espiritualidade, é antagônica com a lógica do capital. Os mapuches têm mostrado sua impermeabilidade às tentativas de integração a tal lógica, como os sucessivos “planos de desenvolvimento regional” propostos no Chile, onde a recuperação territorial e espiritual das comunidades vem crescendo notável e ininterruptamente desde a última década do século XX.
Todo o processo de repressão, judicialização, extradição e agora a condenação adquirem uma modalidade que se pretende exemplar e implacável. As acusações que pesam contra Facundo Jones Huala foram o incêndio de uma casa numa propriedade de Pisú Pisué, na região dos Rios, em 2013, e a posse de armas de fabricação artesanal, quando detido no mesmo ano. Na época foram imputadas outras cinco pessoas, entre elas duas autoridades espirituais. Esses cinco acusados foram julgados e, numa sentença que se fundamentou em 240 páginas, com meia centena de testemunhas e centenas de provas, quatro foram absolvidos. Apenas a machi Millaray Huichalaf, autoridade espiritual que liderou a luta contra a instalação da hidrelétrica no rio Bueno, no seu território, foi condenada a 61 dias de prisão por acobertamento. 61 dias que foram descontados dos 200 que ficou em prisão preventiva. No meio desse processo, Facundo Jones Huala atravessou a cordilheira e voltou à região de origem. O governo de Michelle Bachelet pediu sua extradição ao país vizinho.
O lonko foi detido na Argentina em 2016, depois que sua comunidade iniciou a recuperação de suas terras ancestrais, 1200 hectares então em mãos da empresa Benetton, que possui várias concessões de exploração mineral na região. Mas o processo de extradição foi anulado porque se baseou em provas obtidas por meio de tortura. Mesmo assim, foi detido novamente em 2017, poucas horas após o encontro do presidente argentino Mauricio Macri com a então presidenta do Chile, Michelle Bachelet. Foi durante a campanha pela liberdade do lonko Jones Huala que as tropas da Gendarmeria entraram no território da sua comunidade, o Pu Lof de Resistência Cushamen, e desapareceu Santiago Maldonado, simpatizante da causa mapuche. Seu cadáver foi encontrado rio acima mais de setenta dias depois.
Houve um novo julgamento que decidiu pela extradição e ela aconteceu, já em 2018, com grande estardalhaço. O governo argentino queria apresentar um castigo exemplar àqueles que tinham ousado peitar o avanço extrativista e recolocar em pauta a defesa territorial dos povos pré-existentes.
No julgamento de Valdivia, apenas uma testemunha disse reconhecer Facundo Jones Huala como um dos incendiários. Quando foi solicitado que apontasse o lonko, porém, indicou uma outra pessoa no público, que na época do incêndio estava na Argentina.
No mesmo dia em que saiu a condenação de Jones Huala, o presidente Sebastião Piñera firmou o decreto de remoção de Hermes Soto da direção geral dos Carabineros. Ele vinha resistindo às pressões do poder executivo para que renunciasse voluntariamente ao posto. Soto despediu-se dizendo “Somos, de longe, a melhor instituição do Chile”. O chefe dos Carabineros foi “queimado feito fusível” para preservar o ministro do Interior e Segurança Pública Andrés Chadwick, que também é primo do presidente Piñera. Depois que vieram a tona os vídeos que provam que a morte do líder mapuche Camilo Catrillanca, da comunidade de Temucuicui, foi uma execução por parte de um grupo especial dos Carabineros, parecia razoável a saída de Soto e Chadwick. As primeiras versões dos Carabineros falavam em confronto. Mas o próprio carabinero que o executou, agora separado da “melhor instituição de Chile”, confessou que tinha sido obrigado por seus superiores a mentir. Na semana anterior ao assassinato, o ministro Chadwick tinha visitado a região e reclamado com os Carabineros por não ter ingressado ainda em Temucuicui, uma comunidade com soberania alimentar e escola própria.
O efeito foi de uma multiplicação das recuperações territoriais ao oeste da cordilheira dos Andes. Ao receber a sentença condenatória, o lonko Jones Huala redigiu uma declaração pública: “Sempre dignos, não se rendam, somos a Gloriosa, Minelária, Bela Nação Mapuche, o que não mata fortalece, para os Mapuche esta vida é uma batalha constante, assim será até nos liberar e reconstruir. [...] nunca nos rendemos, às vezes só descansamos [...] este é nosso território, não das transnacionais, não dos latifundiários, não dos opressores”. No meio das mudanças reacionárias da região, os mapuches dizem “Marichi Weu”, uma voz antiga, cuja tradução aproximada é “Dez vezes venceremos”.
*Silvia Beatriz Adoue é professora da Faculdade de Ciências e Letras da Unesp de Araraquara e professora da Escola Nacional Florestan Fernandes.
1 Ver https://diplomatique.org.br/nova-operacao-condor-agora-contra-os-mapuches/
2 Ver https://diplomatique.org.br/o-comando-jungla-e-o-assassinato-de-um-mapuche/
Fonte Le Monde Diplomatique Brasil