A reeleição em primeiro turno do presidente da Bolívia, Evo Morales, considerada “inesperada” pela maioria dos analistas, insere o país no contexto de polarização política e rebeliões populares que atinge toda a América do Sul. Segundo o professor de História Contemporânea da Universidade de São Paulo (USP) Osvaldo Coggiola, o desfecho vai depender das mobilizações populares contra as ações de grupos conservadores ligados ao candidato da oposição, Carlos Mesa, que contestam o resultado eleitoral.
À jornalista Marilu Cabañas, para o Jornal Brasil Atual, nesta terça-feira (22), Coggiola destaca que Morales perdeu parte do apoio de setores populares e indígenas nos últimos anos. “Houve uma série de problemas, mas evidentemente a maioria da população preferiu evitar uma volta aos governos neoliberais do passado, apesar de uma forte campanha nesse sentido. Agora podemos ter uma forte crise política, que não sabemos para onde vai evoluir. Nesse momento, a situação não é clara, vista a distância.”
Em todo o continente, segundo o professor, a situação é de “rebeliões populares contra as políticas de caráter neoliberal que têm levado a uma situação de crise econômica cada vez mais agravada, com o empobrecimento de setores populares, e uma crise política cada vez maior em toda a região”.
Chile
A revolta contra o governo do presidente Sebastian Piñera prossegue no Chile, apesar do recuo no aumento na tarifa de metrô, que foi o estopim das manifestações. Segundo Coggiola, os eventos dos últimos dias caíram “como um raio” naqueles que acreditavam que o país era um “oásis” de tranquilidade política e econômica, frente a um continente tomado por agitações. Ele destacou um dos lemas dos protestos que diz que não é apenas pelos 30 pesos – o aumento da tarifa em determinado período do dia –, mas por 30 anos de políticas neoliberais, com privatização generalizada nas áreas de Educação e Previdência, o que também levou a miséria e a frustração para vastos setores da população, que passaram a apoiar as ações dos estudantes principalmente depois da forte repressão, inclusive com o uso das Forças Armadas, que culminou com ao menos 11 mortos.
Após declarar que o país vivia uma guerra, Piñera recuou mais uma vez, convocando os partidos da oposição a se reunirem com o governo na tentativa de costurar um “grande acordo nacional”. Dada a forte tradição de esquerda no país, com comunistas e socialistas participando ativamente da vida política no período anterior à ditadura do general Augusto Pinochet (1973-90), o movimento de protestos deve desembocar em uma greve geral pela saída de Piñera.
Para o historiador, Piñera se transformou num “cadáver político”, mas a esquerda ainda não apresentou um projeto alternativo que permita superar a crise, que não é apenas política, mas também social. “As mudanças políticas cosméticas que eventualmente possam acontecer nos próximos dias não vão conter uma mobilização popular que tem raízes extremamente profundas, colocando uma questão histórica para o Chile e também para os demais países da América Latina, que estão vivendo situações de cunho semelhante, como é o caso, por exemplo, do Equador.”
Equador e Haiti
Compõem ainda o panorama de convulsão social no continente as revoltas lideradas por indígenas no Equador, que também obrigaram o governo a recuar em decreto que determinava o aumento de 123% no preço dos combustíveis, dentre outras medidas econômicas acordadas com o FMI, para a liberação de empréstimo de US$ 4,2 bilhões. Lideranças indígenas, sindicais e políticas que participaram das manifestações agora estão sendo perseguidas pelo governo. Ainda mais grave, segundo Coggiola, é a situação no Haiti, em que a população há meses está nas ruas protestando contra o governo do presidente Jovenel Moise, que foi apoiado por países como Brasil e Argentina, integrantes da Missão das Nações Unidas de Estabilização no Haiti (Minustah).
“Estamos diante de uma mudança completa da situação na América Latina, caracterizada nesse momento em praticamente todos os países por uma tendência para a mobilização popular. Mais ainda, uma verdadeira rebelião popular contra os poderes”, disse o professor.