ao colonizador. Aqui o capitalismo utilizou modos e relações de produção já superados nos seus países de origem – a escravidão urbana e rural e o semifeudalismo no campo por meio do sistema de capitanias hereditárias, mães do latifúndio, hoje modernizado com o nome de agronegócio.
Desse modo, diferente dos países do centro, a burguesia brasileira não se formou em confronto com o latifúndio, mas em aliança com este e nem propugnando uma ruptura com a burguesia dominadora estrangeira, mas se associando de forma dependente ao capital externo imperialista.
Nos séculos 19 e 20, as colônias e semicolônias (assim compreendidas as nações que, a exemplo do Brasil, proclamaram sua independência política, mas permaneceram dependentes e subordinadas ao Centro na Economia e na ideologia, as quais, em última instância, comandam a política) deixam de ser meras agroexportadoras para desenvolver um setor industrial composto por indústrias de produtos de consumo. Esta mudança atende à necessidade do capital europeu, Inglaterra à frente, expandir-se e dominar o mundo, carecendo de ampliar mercados – e foi reforçada pela necessidade de substituir importações em virtude da Primeira Guerra Mundial (1914-1918).
Apesar de associadas, as frações da classe dominante mantêm contradições entre si, por conta de interesses específicos. É o que vai ocorrer com essa nova realidade, quando o setor industrial reivindica maior participação no Governo a fim de formular políticas públicas de seu interesse.
Trata-se de buscar uma acomodação, mas as oligarquias rurais de São Paulo (cafeeira) e Minas Gerais (Pecuária) não aceitam abrir mão dos privilégios que lhes são assegurados mediante eleições controladas (voto censitário e de cabresto).
A burguesia industrial brasileira nunca se tornou classe para si; por isso, nunca enfrentou enquanto tal o latifúndio e o capital externo (imperialismo). Estimulou os setores médios, em especial a intelectualidade e os militares, fomentando especialmente o tenentismo, que vai desaguar na Coluna Prestes, defendendo as bandeiras de liberdade, voto universal e secreto e moralização da vida pública.
Para não serem taxados de intransigentes, mesmo com todas as limitações, estes setores organizaram a Aliança Liberal, liderada por Getúlio Vargas, que, apesar de filho de estancieiros gaúchos, aderiu às bandeiras burguesas, exerceu cargos públicos e candidatou-se à Presidência da República e, como não poderia ser diferente, perdeu para Júlio Prestes, o candidato da oligarquia paulista.
O levante armado já estava articulado e veio a chamada Revolução de 30, na qual o Exército depôs o presidente Washington Luís e impediu a posse de Júlio Prestes. Interessante é que os rebelados queriam o comando do Cavaleiro da Esperança. Vargas chegou a ter dois encontros com Luiz Carlos Prestes, mas este não aceitou, pois já havia aderido às teses comunistas. Estes analisaram a Revolução de 30 apenas como um conflito entre as oligarquias, não havendo interesse, desse modo, em intervir. A intervenção comunista viria após a “revolução vitoriosa”, com a criação da Aliança Nacional Libertadora (ANL), com um programa popular, anti-imperialista que teria ascensão célere, constituindo-se em verdadeiro movimento de massas até ser posto na ilegalidade pelo Governo Vargas. Fechadas as portas para a luta democrática, o PCB optou por uma tentativa de levante armado nos quartéis, a partir de militares comunistas ou democratas radicais, mas, por falta de uma base de massas, exceto em Natal (RN), foi derrotado rapidamente, em que pese o heroísmo dos seus líderes e as justas homenagens que lhes dedicam os lutadores do povo brasileiro.
Como se vê, a classe operária, que é o polo contrário e necessário à burguesia no capitalismo, não teve participação na Revolução de 30, mas estava no centro das preocupações do “novo” poder político.
O significado da Era Vargas e o golpe de 64
Não corresponde ao método dialético ou materialismo histórico analisar Vargas pura e simplesmente como ditador ou populista. É preciso aprofundar o seu programa e o significado das ações concretas tomadas nos seus dois períodos de governo (1930-1945) e 1950-1954 e a razão pela qual foi derrubado via golpes de Estado (o de 1954 só foi barrado por seu suicídio, um ato político consciente).
Vargas incorporou a visão de classe que a burguesia brasileira não tinha, e pretendia construir uma nação capitalista forte com condições de sair da periferia para o centro do sistema. Para isso, precisava promover a conciliação de classes, a fim de ter um operariado produtivo e satisfeito. Isso só poderia acontecer com o atendimento de suas demandas, que algumas categorias mais fortes já haviam conquistado nas duas décadas anteriores. Então, todos os trabalhadores passariam a ter assegurada a jornada de 8 horas, férias, previdência social e uma justiça especializada. Tal conciliação somente seria possível com a eliminação ou neutralização da esquerda, com atuação limitada, pela satisfação das massas ante as conquistas inseridas na Constituição de 1934 e posteriormente regulamentadas na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), agora rasgada pela reforma trabalhista, que vem, seguramente, promover retrocesso de um século em nossa história (leia artigo nesta edição). As conquistas não alcançariam os trabalhadores rurais, desmobilizados (tornar-se-iam protagonistas a partir da década de 50).
A implantação de um regime ditatorial em 1937 (o Estado Novo) não se deu apenas como retaliação ao PCB pela “intentona” de 1935. O autoritarismo foi necessário para implantação de um Estado forte, reduzindo os poderes locais dos “coronéis” e centralizando a arrecadação. Getúlio Vargas tinha ciência da fragilidade da “burguesia nacional”, que, dependente e associada às multinacionais, que chamaria de “aves de rapina” na famosa carta-testamento, jamais investiriam na criação de indústrias de base, essenciais para o desenvolvimento econômico independente e autônomo de um país, como a Companhia Siderúrgica Nacional (1941), a Companhia Vale do Rio Doce (1942) e a Companhia Hidrelétrica do Vale do São Francisco (Chesf). No enfrentamento à sangria de recursos do Brasil pelo imperialismo, o Governo Vargas decretaria moratória da dívida externa em 1931, e suspensão dos serviços da dívida por três anos, em 1937.
Este programa nacionalista foi a verdadeira razão do movimento pela derrubada de Getúlio, e não falsos amores da burguesia brasileira e dos Estados Unidos por democracia e liberdade. Não por acaso, mas exatamente por compreender esta realidade, Luiz Carlos Prestes, prisioneiro político, saiu do cárcere para um comício em favor de uma Constituinte com Getúlio. Muitos criticam Prestes pelo fato de sua esposa, Olga, ter sido entregue aos nazistas para o campo de concentração e para a morte, e este ter apoiado Getúlio, mas não está certo. O interesse coletivo está acima do individual; ao contrário, com este ato, Prestes demonstrou seu nível de consciência. O erro do Cavaleiro da Esperança e do PCB foi outro. Foi, por conta de uma incompreensão da formação econômica do Brasil, acreditar na existência de uma burguesia nacional capaz de romper com o imperialismo e construir uma nação para si. E, acreditando nisso, colocar o proletariado brasileiro como força auxiliar dessa burguesia, na qual o próprio Getúlio não acreditava, e definir como estratégia um “etapismo” pelo qual o proletariado só viria a ser protagonista após a conclusão da revolução nacional democrática, quando a contradição principal se definisse entre a burguesia e o proletariado.
Então, Vargas é deposto em 1945, mas retorna à Presidência da República pelo voto popular em 1950 e busca dar continuidade ao seu projeto nacionalista, agora encampado pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), criado em 1945 por iniciativa do próprio Getúlio. Atendendo ao clamor da campanha “O Petróleo é Nosso”, cria a Petrobras e determina o monopólio estatal (extração e refino), em 1953; em 1952, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDE) e o Banco do Nordeste. Controle da remessa de lucros, aumento de 100% do salário mínimo, entre outras medidas, causaram insatisfação à burguesia nacional e internacional, cujos interesses são comuns.
As Sete Irmãs, multinacionais petrolíferas, o interesse imperialista dos EUA e seus sócios internos em manter o Brasil sob o seu domínio político-econômico-ideológico, jamais permitiriam o seguimento de um programa nacionalista desse porte. Utilizando porta-vozes militares, pressionam Getúlio a renunciar. Este opta pelo suicídio como ato político e deixa a carta-testamento na qual denuncia as forças e os interesses contra o Brasil e o povo e incentiva a este que continue com a bandeira de luta.
A Luta avança
O herdeiro político e sucessor de Vargas na direção do PTB foi João Belchior Marques Goulart, o Jango, também filho de fazendeiro gaúcho. Suas famílias eram amigas. Jango foi eleito vice-presidente de Juscelino Kubistchek e de Jânio Quadros. Na época, as eleições de presidente e vice eram separadas.
Com a renúncia de Jânio, Jango assume a Presidência, superando a ameaça de golpe mediante acordo para governar em regime parlamentarista, mas apela para o povo por meio de plebiscito, previsto na Constituição, e o presidencialismo é restabelecido.
Jango busca pôr em prática o programa do PTB, que mantém o viés nacionalista de Vargas e acresce as reformas de base, que possibilitariam a elevação do nível de vida do povo brasileiro e a redução das desigualdades. São elas: reforma agrária; reforma política, com extensão de voto aos analfabetos; reforma universitária, com plena liberdade de ensino e abolição da cátedra vitalícia.
Sem maioria no Congresso, a única saída para encaminhar tais reformas seria a mobilização popular. Para isso, o presidente contava com o PTB e o PCB. Coerente com a visão de que a contradição principal da sociedade brasileira se dava entre burguesia nacional e imperialismo e consequentemente caberia a essa burguesia a direção da revolução brasileira nessa etapa, o PCB se aliou incondicionalmente a Jango e acreditava piamente na vitória desse processo pela via institucional. Às vésperas do golpe de 1º de abril de 1964, Prestes disse em entrevista que os comunistas já estavam no poder.
Desse modo, não houve preparação das bases para o enfrentamento a um golpe de Estado que se anunciava e que ocorreu com apoio direto do Departamento de Estado e CIA dos Estados Unidos, sepultando de vez a ideia de um capitalismo nacional autônomo.
Qualquer resistência ao programa da burguesia nacional e internacional, associadas, seria reprimida sem pruridos ou dor de consciência, resultando nos 21 anos de ditadura em milhares de mortos e desaparecidos, censura, submissão ao imperialismo e uma dívida externa impagável, entre tantos outros males. Esta, a TRAGÉDIA.
Golpe jurídico-parlamentar de 2015
Como consequência da crise econômica, arrocho salarial e inflação, ressurge no final dos anos 1970 um pujante movimento de massas, capitaneado pelos operários do ABC Paulista. As lideranças desse movimento, à frente o torneiro mecânico pernambucano Luís Inácio da Silva, o Lula, decidem organizar um partido político classista, que tinha como lema: “PT – um partido sem patrões”.
Sua estrutura partia da base, com a formação dos núcleos nas fábricas, bairros populares e campo e seu programa punha como objetivo uma sociedade socialista. A ideia atraiu lideranças sindicais e populares, a Igreja Progressista e ex-militantes das organizações que haviam empunhado armas contra a ditadura.
A participação nas eleições não tinha o objetivo principal de eleger os candidatos, mas de divulgar o programa do partido, desenvolver a consciência e fomentar a organização do povo. Isso, na teoria. Na prática, o PT começou a ganhar eleições municipais, estaduais, e foi tomando gosto. O que seria tática virou estratégia, ao ponto de, nas eleições presidenciais de 2002, a chapa ter Lula na presidência e, na vice, um grande empresário, José Alencar. Retoma a aliança com a burguesia nacional inexistente, algo que historicamente já fora enterrado em 1964, agora ressurge por iniciativa de um “partido da classe trabalhadora”. Lula assina uma Carta aos Brasileiros para acalmar o “mercado”, isto é, a burguesia interna e externa, comprometendo-se a não mexer na estrutura da sociedade brasileira, no modelo econômico. Cumpriu o prometido, nomeando Henrique Meirelles, homem dos banqueiros, para a presidência do Banco Central. Este mesmo, que agora é ministro da Fazenda de Temer. Mas, não se limitou a isso. Travou as desapropriações para fins de reforma agrária e honrou as obrigações e contratos, como garantira, sequer promovendo a auditoria da dívida externa prevista no Art. 26 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição Federal de 1988.
Em 2007, numa autoavaliação, Lula diz que as realizações do seu governo só têm comparação com as de Getúlio Vargas. Bem, como sabemos, Getúlio contrariou os interesses imperialistas e da grande burguesia interna e, por isso, foi derrubado duas vezes. Lula fez concessões e mais concessões. Aliás, é interessante uma leitura comparativa da Carta aos Brasileiros, de Lula, e da Carta-Testamento de Vargas. Leitor, tire suas conclusões! A História se repete. A primeira vez, como tragédia; a segunda, como FARSA, afirmou Karl Marx em Dezoito Brumário de Luís Bonaparte.
Esta mudança de estratégia é que foi o erro fundamental do PT. Os demais são consequências. Sem maioria no Congresso, em vez de mobilizar o povo para a pressão sobre os direitistas e fisiologistas, optou pelo método tradicional da compra de votos e aí vieram mensalão, mensalinho, lava-jato e quantos desvios mais possam aparecer. O PT não inventou o pântano, mas se atolou no lamaçal e quem se apresentava como arauto da ética na política foi engolido pela corrupção endêmica, pelo uso do bem público em benefício privado, que não é nenhuma novidade, mas é da essência do sistema capitalista. O Fome Zero, que daria alimento e mais consciência ao povo, pois seria gerido por Conselhos Populares, foi substituído pelo assistencialismo do Bolsa Família, gerido em parceria com as prefeituras. E Frei Betto pulou fora e registrou direitinho a guinada no livro Calendário do Poder.
Não poderia deixar de destacar a autocrítica de um petista sincero, Olívio Dutra, autocrítica que o PT não fez e nunca o fará. Disse Olívio, numa entrevista a Caros Amigos, edição 238 de janeiro de 2017: “…Tinha evidentemente que participar das eleições, mas não se transformar numa máquina eleitoreira… E acabou sendo absorvido pela institucionalidade… e pessoas importantes do partido fizeram gestão política errada, imitando a gestão política dos partidos tradicionais que sempre fizeram do Estado uma forma de fazer negócio, facilitar os negócios para os amigos, para os familiares… E um dos erros nossos foi trazer para dentro da máquina lideranças importantes dos movimentos sociais”.
Avaliando seus dois mandatos, Lula afirma que nos seus governos todos os brasileiros ganharam: os pobres ficaram menos pobres e os ricos, mais ricos. “Não se pode servir a dois senhores”, já ensinava há mais de dois mil anos o Homem de Nazaré. Ora, se os ricos ficaram mais ricos, deveriam estar satisfeitos. Então, por que derrubaram o PT, aproveitando a inabilidade política de Dilma Rousseff e os efeitos da crise econômica que atingiram o país, e não como simples marolinha?
De fato, é mais seguro para a burguesia ser administrada por membros de sua própria classe. Conjunturalmente, dada a situação de crise em que se encontrava o país no final do segundo mandato de Fernando Henrique e a falta de um nome que empolgasse o povo brasileiro, é que foi aceita a aliança. Agora, aproveitando o enfraquecimento dos “intrusos” e para poder continuar acumulando cada vez mais riqueza à custa do suor dos trabalhadores, é hora de livrar-se dele(s) e pôr no governo quem não tenha remorso para defender a reforma trabalhista, previdenciária, abrir sem pudor para o capital estrangeiro, por meio das privatizações e liberação da compra de terras, entre outras medidas que tornarão o povo brasileiro, seu solo, sua natureza, cada vez mais pobres.
Por isso é que se concretizou o golpe de Estado de 2015. Foi golpe mesmo. É que não havia necessidade de utilizar a força das armas como em 1964. Bastava um golpe branco, fundamentado numa aparência de legalidade que confundiu até gente de esquerda (ou que se autodenomina como tal). Foi na mesma linha dos golpes que afastaram da Presidência Fernando Lugo (Paraguai) e Manuel Zelaya (Honduras).
E agora, José?
“Fora Temer!” e “Diretas, Já!” são as bandeiras que a esquerda vem levantando e conclamando o povo às ruas. Ora, precisamos refletir sobre isso. Hoje, conseguindo derrubar Temer, quem assume o governo? Urge, portanto, retomar o trabalho de base, a organização do povo a partir do local de moradia ou trabalho, a construção do poder popular, de baixo pra cima, para se conquistar um governo popular, de verdade, com força para realizar as transformações sociais necessárias ao povo brasileiro para que este possa viver dignamente com suas próprias forças, pois “doutor, uma esmola para um homem que é são, ou lhe mata de vergonha ou vicia o cidadão”, já diziam Zé Dantas e Luiz Gonzaga em As Vozes da Seca.
Jose Levino é historiador