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Sábado, 16 Julho 2016 12:53

A esquerda ausente – crise, sociedade do espetáculo, guerra

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País: Brasil / Resenhas / Fonte: Vermelho

[Walter Sorrentino] No lançamento do novo livro de Domenico Losurdo no Brasil – A esquerda ausente – crise, sociedade do espetáculo, guerra – apresentei o tema no Seminário da Fundação Maurício Grabois, no sábado, dia 9 de julho. Losurdo domina a fundo os lineamentos e história das duas principais doutrinas ocidentais: a doutrina liberal e a doutrina socialista marxista (não conheço maior tratamento dele em relação à terceira grande corrente, a doutrina social da Igreja).

Falo de doutrina, propriamente, pois envolve o corpo teórico e a concepção de mundo que sobre ele se ergue, mais a ideologização que se faz historicamente na aguda polarização entre as duas doutrinas.

Muito especialmente, ele é incansável no combate à doutrina liberal, disseca-a, expõe suas entranhas, evidencia suas falácias e falsificações históricas, com formidável capacidade de travar o combate no plano da luta de ideias. Para ser consequente, ele precisaria sem dúvida ser igualmente implacável com a própria esquerda, em especial com a corrente dominante no século 20, do marxismo e leninismo. Ele o fez reiteradamente, no sentido de desencantá-la de qualquer traço positivista, determinista ou esquemática. Tem a mesma facilidade e rigor nesse plano, oriundo que é de uma apropriação do leninismo altamente politizada e historicizada, própria da capacidade de Gramsci e do velho PCI em criticar a codificação dele feita pela tradição da Terceira Internacional. Losurdo armou, assim, a perspectiva revolucionária marxista nas condições de países ocidentais, com razoável grau de desenvolvimento capitalista e da sociedade civil, ao contrário das condições da velha Rússia quando da revolução em 1917.


É esse estranhamento o tema crítico deste livro. A luta anticapitalista é, ainda hoje, necessariamente, a luta anti-imperialista simultânea. De onde a chamada questão nacional surge como fator destacado todavia hoje na luta dos povos, malgrado a malfadada globalização neoliberal – ou até pour cause -, que supostamente apagaria fronteiras quando jamais se viram tantas fronteiras de classes sociais, de renda, fronteiras físicas e políticas, de poderio militar, como hoje.

Segue abaixo o Prefácio que me foi solicitado pela Fundação Maurício Grabois para a edição brasileira do novo livro de Losurdo:

Não são “(…) insignificantes as distinções no âmbito da esquerda. No que se refere à política internacional, é preciso saber distinguir (…) a esquerda já subordinada a posições neoliberais e a esquerda que, de maneira mais ou menos consequente e mais ou menos lúcida (nos planos político e cultural), está empenhada na defesa dos direitos sociais e econômicos. (…) Resta o fato de que, apesar dos sinais de retomada aqui e ali do movimento comunista e, mais em geral, de uma esquerda realmente adversária da ordem existente (…), a esquerda no Ocidente parece caracterizada pela confusão e a dispersão. É uma situação preocupante que não pode ser superada apenas com a denúncia do oportunismo e mediante os apelos ao rigor revolucionário. Há necessidade, em primeiro lugar, de uma análise da nova situação mundial que foi criada: se ela servir para abrir um debate sobre esse tema crucial, este livro terá alcançado o seu objetivo”.

Com estas palavras termina a obra de Domenico Losurdo ora editada no país. E este prefácio não poderia começar de modo diverso senão afirmando: este livro serve ao debate, sim, muitíssimo.

A esquerda ausente – crise, sociedade do espetáculo, guerra promove uma reflexão sobre a realidade mundial contemporânea do capitalismo e o imperialismo e é uma contribuição ao pensamento revolucionário classista próprio desse autor já consagrado no Brasil e no mundo.

É um libelo não ao feitio de acusação, mas de chamado crítico e generoso à esquerda nos países centrais do sistema capitalista, instando-a à tomada de consciência, à presença e responsabilidade, pois disto se trata: uma esquerda ausente no Ocidente liberal que se apresenta como patrono da “democracia” e dos “direitos humanos”, combate por vezes os efeitos do neoliberalismo, mas não de modo pleno o colonialismo, neocolonialismo e imperialismo..

Losurdo aponta para as “grandes divergências” no mundo atual, o entrelaçamento de dois processos entre si conflitivos: aquele dos países saídos da dominação colonial e neocolonial, empenhados na luta pelo desenvolvimento econômico e tecnológico autônomo (que alcança sucessos importantes, caso da China e de outros), que tende a contrastar e restringir o processo que por alguns séculos reservou ao Ocidente uma posição de absoluta superioridade em relação ao restante do mundo; e aquele, simultâneo, em que nos países capitalistas avançados se abre um abismo, a “grande divergência” que separa do resto da população uma elite opulenta cada vez mais restrita.

Para o autor, se constituiu uma nova fase no confronto entre colonialismo e neocolonialismo, que põe em questão se terá caráter progressivo ou regressivo quanto à ordem mundial na atualidade. Aliás, por isso mesmo, o papel e perspectivas da China têm alguma centralidade no debate promovido por Losurdo, embora certamente não tão exclusiva quanto a resenha crítica que o livro mereceu na Itália por parte de Luciano Canfora, respondido por diversos outros autores como Diego Angelo Bertozzi, Domenico di Iasio, João Carlos da Graça, Paolo Ercolani e outros. Nesse debate, foi valorizado que o desaparecimento do “bloco oriental” deixou o capitalismo e o liberalismo político suficientemente desenfreados para obter as coisas absolutamente à sua maneira.

Nesse pano de fundo, a China e sua trajetória representa uma prova de fogo no debate crítico desta obra. Para o autor, parece ser já um senso comum consolidado na esquerda ocidental a condenação do chamado “socialismo com características chinesas”, o qual teria levado a China, no dizer do crítico Luciano Canfora, a “exatamente o oposto do que pretendia ser em meados do século 20”. Para Di Iasio, ainda nesse debate italiano, Losurdo tem uma interpretação coerente do atual desenvolvimento da China como “a segunda etapa da luta anticolonial”. E, como lembrado por Bertozzi, a crítica de Canfora aponta a incapacidade de a esquerda levar em conta o fato inconteste do renascimento nacional chinês, a reconquista da integridade territorial e soberania plena, pelo caminho do socialismo com características chinesas, condição que lhe permite resistir ao projeto do imperialismo norte-americano no mundo.

Losurdo alerta com isso para o estado de desorientação e confusão da esquerda ocidental. E estende a crítica a outros inúmeros aspectos da atualidade mundial, em particular quanto ao fato de ela dever lutar, sim, pela defesa do Estado social, mas sem promover ao mesmo tempo a difusão da filosofia e ideologia largamente funcionais ao neoliberalismo. Saberá a esquerda, pergunta ele, dar sinais de vida, especificamente nos EUA e Europa?

Uma esquerda ausente: a imagem me remete de imediato à metáfora poderosa de Paolo Sorrentino em A grande beleza, em que Jep Gambardella (o excelente ator Toni Servillo), irônico e ácido, numa cena onírica que se passa nas Termas de Caracalla, se vê diante de uma girafa que, no instante seguinte, já não mais está lá. Sim, uma girafa, no país que conheceu o maior partido de esquerda do Ocidente até os anos 90 do século 20. Onde está a girafa? Onde está a esquerda?

Quem conhece a obra de Losurdo sabe do poderoso combate que ele trava contra as ideias liberais de ontem e de hoje.

Dotado de bagagem teórica e amplo domínio dos fatos históricos, arguta capacidade em lidar com a história das ideias, ele é capaz de ir às raízes do pensamento liberal com a crítica implacável. O mais impressionante neste livro é o panorama em grandes traços históricos da luta da esquerda do século 19 até hoje, atualizado com uma multiplicidade de fatos empíricos da opressão capitalista tal como se configuraram após a guerra fria e a débâcle do socialismo, sob a forma de crises, guerras e sociedade do espetáculo.

Em oito capítulos, com 65 subtemas concatenados, da guerra fria à exportação do “livre mercado” e “democracia” pela força das armas, do colonialismo à luta de resistência das esquerdas políticas e sociais, do imperialismo de livre comércio e dos direitos humanos até o papel da rede internet e as formas culturais de dominação, desfilam pelo livro o papel dos EUA e Europa, a geopolítica, o papel da China e Rússia e as experiências sul-americanas.

São penetrantes as análises sobre as guerras militares e comunicacionais contemporâneas, o neocolonialismo econômico-tecnológico-judicial, o papel da ideologia liberal da plutocracia, os novos perigos de guerra no quadro mundial e a luta tenaz entre uma ordem mundial unipolar e multipolar. Desse modo, Losurdo arma a esquerda contra os ideólogos do liberalismo, denunciando cada desastre que ele provoca contra os trabalhadores, arrastando povos e nações inteiras à regressão civilizacional.

Com isso, ele compõe o cenário próprio para o pensar estratégico transformador do tempo atual. Como bom marxista e leninista que é, ele parte da luta de classes sob as diversas variantes e alcançando o universalismo de projeto político alternativo de sociedade, sem traços de positivismo e de abstrações idealizantes fora dos marcos das relações de classe e de forças, internas e externas.

A obra de Losurdo tem um fio condutor marcante que é a luta nacional como expressão da luta de classes contemporânea, sob a pauta da soberania nacional, a autodeterminação e o desenvolvimento econômico e tecnológico autônomo, base para o atendimento das demandas democráticas e sociais de uma nova ordem social.

Assim, manejando as três vertentes entrelaçadas – democrática, social e nacional –, ele resgata a centralidade da questão nacional, dando continuidade ao eixo histórico da luta anticolonial e anti-imperialista e das revoluções socialistas do século 20, para confrontar a tendência principal desta época, a globalização neoliberal, o imperialismo, a unipolaridade, o monopólio da produção material e da produção intelectual, os poderes financeiros, midiáticos, culturais, militares, diplomáticos e políticos de que dispõe. A isso corresponde a luta pelo desenvolvimento soberano e por fazer dos Estados nacionais sob direção progressista uma força de contraste com essa ordem, como se processou na experiência sul-americana nestas primeiras décadas do século 21.

Por isso, seu chamado crítico é impiedoso: “(…) não possui nenhuma credibilidade uma profissão de fé democrática que não lute em primeiro lugar pela democratização das relações internacionais […] Infelizmente, à pretensão ‘universalista’ do imperialismo continua a dar crédito a esquerda ocidental que frequentemente apoia as ‘guerras humanitárias’ ou se revela incerta e hesitante em questioná-las”.

E, irônico, quando afirma, por exemplo, a “amarga verdade [de que,] se realizada prematura e ingenuamente, a democratização de um país pode significar o caminho livre para as manobras desestabilizadoras e golpistas e permitir o triunfo da ditadura planetária do imperialismo”. Ou então ao nomear de “cibertontos” aqueles que levam terrivelmente a sério a propaganda relativa à “espontaneidade” da internet, sem se dar conta da dimensão geopolítica da rede.

Ao leitor brasileiro, estas páginas têm sentido especial na atual conjuntura.

Neste momento está se consumando uma subversão institucional no Brasil. As manobras do consórcio político-jurídico-midiático constituído golpeiam a democracia e, com isso, as bases do projeto capaz de promover desenvolvimento autônomo e soberano, democratizar de fato as relações sociais, e reservar ao país papel altivo na luta por uma ordem mundial mais democrática.

Mais uma vez na história política brasileira, é a esquerda quem sustenta a causa democrática e denuncia o golpe na Constituição de 1988. Reitera, assim, o fundamento que tem a questão democrática numa estratégia revolucionária classista. Mas os fatos servem para alertar que não se pode fazer nenhuma cedência quanto ao fato de que a pretensa absolutização e a certeira manipulação da “democracia” sejam uma poderosa arma das forças conservadoras e reacionárias.

Trata-se aqui da vulgata liberal dominante, em nome da qual se acentua o papel conservador do Estado, o esvaziamento de seu verdadeiro papel, cujos fundamentos são capturados pelos poderes financeiros e corporativos, minado por bolsões do Estado ditos “autônomos” (em voga em nosso país, na “luta contra a corrupção” e na formulação de um abstrato e tíbio “republicanismo”) e pelas causas multiculturalistas, antinacionais e antipopulares. Como disse o professor Belluzzo, do que se trata é da retomada do poder formal para ajustá-lo ao poder real dos donos do poder (…), concentrado no capital financeiro e nos seus porta-vozes na grande mídia. É quando a lógica da finança globalizada avança no território outrora ocupado pelas opções da política democrática, a garantir interesses nacionais e populares.

Evidencia-se que a questão democrática desligada de projeto de nação independente tem se revelado campo fértil para ilusões sobre a luta de classes e o caráter de classe do Estado, por um lado, e, por outro, para a formação de uma nova direita promovendo aventuras neoliberais. A esquerda brasileira também está chamada a evidenciar e ultrapassar as contradições e limites da experiência destes treze anos e meio de governo até o momento, dando contribuições ao necessário balanço crítico da experiência de governos progressistas sul-americanos, cujo ciclo está sob poderosa contraofensiva reacionária liderada pelos EUA e associados.

Sem dúvida, as reflexões de Losurdo nesta obra estarão presentes nesse esforço dos brasileiros e dos latino-americanos.

*
Walter Sorrentino é médico, vice-presidente nacional do PCdoB e diretor da União Brasileira de Escritores
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