A origem
A origem não é nativa. Nossos indígenas não versejavam nem cantavam repentes. Foram os colonizadores que trouxeram essa forma de arte, que se concentrou na região Nordeste. Explica Abdias: “A Literatura de Cordel entra no Brasil de forma oral; dela deriva-se o repente. O seu surgimento ocorre na Europa concomitante ao surgimento da tipografia ainda na Idade Média. Não são muitos os registros sobre o porquê do Nordeste. Entretanto, corre a versão, à qual me associo pela vivência que tive no seio da cantoria, que trovadores mouros1 que subiam pelos rios São Francisco, Paraíba e Pajeú, como braço do São Francisco, com os curraleiros (criadores à procura de novas terras para seus rebanhos), povoaram essas regiões dos sertões nordestinos. Inicialmente com as histórias de cordel trazidas de Portugal, com as métricas que até hoje são usadas no repente e no cordel e depois feitas de improvisos e cantadas pelos nativos”.
“Quem primeiro editou cordel no Brasil foi o paraibano da cidade de Pombal, Leandro Gomes de Barros. O casamento do cordel com a xilogravura2 deu-se por volta dos anos 1930 e 1940, quando naturalmente se encontraram nas feiras livres do Nordeste o cordelista e o xilógrafo. Vale salientar que, até então, o cordel não tinha uma ilustração de capa referente à história. Na época, utilizavam-se cartazes de filmes, reproduzindo-os na capa do cordel apenas para ficar bonito. A ilustração podia ser uma moça abraçando um rapaz numa atmosfera romântica, mesmo que o enredo do cordel tratasse de uma briga entre dois fazendeiros da região. O cordelista, ao encontrar com o xilógrafo, percebeu que ele produzia justamente a capa de seus cordéis, pois os temas que inspiram a ambos se ambientavam nos mesmos valores”.
A evolução do cordel
“O nome Literatura de Cordel só chega a nós por volta de 1960, quando a Academia começa a pesquisar sobre essa literatura imutável e constante. Os pesquisadores chegam a Portugal e descobrem que o que nós chamávamos “folheto de feira” ou “romance”, era em Portugal chamado de Literatura de Cordel”.
“Na Zona da Mata de Pernambuco, o cordel foi amplamente utilizado como cartilha para a alfabetização. Importantes escritores, a partir da década de 1930, foram bastante influenciados pela literatura de cordel, a exemplo de Graciliano Ramos, Jorge Amado, José Lins do Rego, Câmara Cascudo, Ariano Suassuna, José Américo de Almeida e outros tantos”.
“Com a massificação do rádio e a ampliação da televisão nos lares nordestinos, no final da década de 1970, o cordel passa por uma mudança de público. O povo foi trocando gradativamente o encanto do cordel pelo encanto do rádio e da televisão, a leitura foi se reduzindo no meio do povo, inclusive, no interior. Ao mesmo tempo, crescia nas universidades e escolas o interesse pelo cordel como um valor cultural e mais tarde como um gênero textual capaz de repassar saberes, com graça e um poder de síntese magnífico. Essa tendência permanece crescendo até os dias de hoje”.
Resistência do repente
O repente deriva do cordel. É a sua forma oral. Surge no Nordeste mais precisamente na Serra do Teixeira, no Estado da Paraíba, e se desenvolve com força em Pernambuco e também no Rio Grande Norte, Ceará, aliás, em todo o Nordeste. “Agostinho Nunes da Costa (1797-1858) era considerado o pai da poesia popular e a cidade de Teixeira, sua terra natal, a Provença3 Brasileira. O repente também influencia toda uma geração de compositores brasileiros, com presença na música de Luiz Gonzaga, Jackson do Pandeiro, Alceu Valença, Ednardo, Zé Ramalho, Elomar, Geraldo Azevedo e outros muitos. No cinema, no teatro, o repente empreendeu um estilo que transita desde o desafio ao romance e à saudade. Os precursores da cantoria são: Ugulino Nunes da Costa (1832-1865), de Teixeira (PB), que tinha o apelido de “Gulino do Texeira”; Bernardo Nogueira (1832-1895), de Teixeira (PB); Francisco Romano Caluête (1840-1891), também de Teixeira (PB), que tinha o apelido de Romano da Mãe d’Água; Inácio da Catingueira (1845-1879), de Piancó (PB), dentre outros”. Além dos paraibanos, merecem destaque, entre tantos, Aderaldo Ferreira de Araújo, o Cego Aderaldo (CE), Antônio Batista Guedes (PE), Dimas Batista Patriota (PE), Lourival Batista Patriota (PE), Otacílio Batista Patriota (PE), Quincas do Brejão (PE), Pacífico Pacato Cordeiro Manso (AL), Severino Lourenço da Silva Pinto (PB), Fabião Das Queimadas e Clarindo Pimenteira (RN).
Uma curiosidade em relação ao repente é que o instrumento que o acompanha é a viola. Entretanto, historicamente, encontramos duas exceções de peso. O gênio negro paraibano Inácio da Catingueira cantava ao batuque do pandeiro; o cearense Cego Aderaldo cantava seus famosos repentes tocando rabeca.
Diferente da literatura de cordel, o repente não perdeu público com o advento do rádio e da televisão, que, na busca de audiência, criaram programas voltados para o repente e a cantiga de viola. E até aumentou, porque chegou, por meio dos festivais, na cidade grande e ampliou os horizontes.
Entretanto, comenta Abdias Campos, “tem um fato novo na história do repente. Muitas duplas ou até cantadores individuais estão abandonando o repente e seguindo carreira artística como cantores. Estimulados por uma demanda maior e por cachês mais altos. Cantores de forró. Formando banda. E entrando nos circuitos do forró. E um fator preponderante para essa situação é que os eventos da viola se tornam cada vez mais espaçados no tempo. Tanto que a maioria, se não todos, os programas de rádio e, principalmente, de televisão é produzida e apresentada por pelo menos uma dupla de cantadores. Já são eles mesmos buscando mais espaços de trabalho”.
Uma questão de classe e ideologia
A literatura de cordel e seu derivado, o repente, foram trazidos pelos colonizadores, mas não pela elite, e sim, pelos mouros, que vieram como prestadores de serviço dos donatários, sesmeiros, curraleiros, que povoaram os sertões, ou pequenos comerciantes, os mascates. Então, é popular o caráter dessa literatura, que somente na segunda metade do século 20 é que vai despertar o interesse da Academia, quando esta volta os olhos para a sabedoria popular, influenciada por intelectuais como Paulo Freire, Darci Ribeiro, Ariano Suassuna e outros.
Desse modo, a literatura de cordel vai registrar costumes populares como a vaquejada e a apartação, que não serão encontrados na literatura elitista colonial. A título de exemplo, vejamos os versos recolhidos em “Cancioneiro do Norte, de Rodrigo de Carvalho: Na sexta, por todo o dia/Corre apartação geral/Muito gado no curral/Nas porteiras, em porfia/Todo Zé Povo aprecia/… É um samba de alegria/Um dia de apartação.
Nas questões sociais, vamos encontrar o cordel exaltando Antônio Conselheiro, Padre Cícero, o Beato Lourenço, Lampião, Antônio Silvino, isto é, personalidades e experiências que contestam o sistema vigente do latifúndio, da exploração, da dominação, seja na Colônia, no Império ou na República. Homens analfabetos ou semialfabetizados escrevem ou cantam loas fazendo referências históricas, coisas de se admirar. Era a cultura da oralidade transmitindo saberes de geração em geração.
Para ilustrar a importância do cordel como meio de formação do pensamento, do saber e como ele pode contribuir para a libertação ou para a manutenção da escravidão moderna, leiam com atenção o que segue.
Em plena ditadura militar, na sua forma mais escancarada, vigente o AI-5, repressão violenta com sequestros de militantes, tortura e assassinato nos porões do regime, Juarez Soares militava no Partido Comunista Revolucionário (PCR), organização das mais visadas e perseguidas. Num Dia de Finados, num dos cemitérios de Natal, lança um panfleto em forma de cordel para a multidão, com os seguintes dizeres:
“Meu grande amigo leitor/Que está indo ao cemitério/Preste atenção, por favor/E leve o caso a sério/Dando o devido valor/Sem fazer nenhum mistério.//A morte vai vir um dia/Pra todos nós, com certeza/Mas viver na agonia/É uma grande malvadeza/Uma imensa judiaria/Com a tão grande pobreza.//Mesmo que eles nos cassem/nos prendam e nos torturem/e nossas mãos eles cerrem/Mas nunca eles detêm/A luta do PCR”.
Nos dias seguintes, Exército e Aeronáutica fizeram uma operação antiguerrilha no Vale do Potengi (RN), durante a qual lançaram centenas de panfletos, também em forma de cordel, respondendo: “No Vale do Potengi, tem um tal de Mata-rindo/Fazendo medo às muié, correndo atrai dos minino/Dizendo que é guerrilheiro/Mas é covarde e cretino.//Na praia de Muriú, o Exército tá agindo/Tomando pato e peru desse tal de Mata-rindo/Que já não mata mais nada, pois no mato tá fugindo”.
Os movimentos sociais, sindicais e políticos que propugnam a mudança da sociedade, a igualdade, a justiça social, o poder popular, o socialismo, precisam compreender que o engajamento do povo nesse processo libertador não se dá apenas pela luta direta. A criação desse poder e a conquista da nova sociedade passam também pela cultura, pelo modo de expressar sua vida e seus anseios nas artes em suas diversas formas. É sabendo disso que as classes dominantes cooptam e transformam em mercadoria a embolada, o repente, a cantiga de viola, o forró, tudo, enfim. O contraponto precisa ser feito com um programa cultural permanente e organizado para resgatar, sustentar e desenvolver a arte popular, da qual o cordel e o repente são manifestações essenciais.
Abdias Campos é cordelista, compositor e cantador. Contatos: sítio: www.abdiascampos.com.br Cordel na Educação (youtube.com).
Luiz Alves é advogado e continua um grande leitor, inclusive, dos cordéis de Abdias Campos.
1Mouros são povos de origem árabe que ocuparam a Península Ibérica (Portugal e Espanha) e, mesmo após a expulsão, muitos permaneceram na região e se integraram ao processo colonizador.
2 Xilogravura é uma técnica de gravura sobre madeira que, reproduzida em papel, se torna capa dos folhetos de cordel.
3Provença é uma região da França marcada pela presença de muitos trovadores na Idade Média.