Todos os atores deste intrincado cenário político sabem disso, de alguma forma: mesmo que todos considerem que o que fazem os jornalistas é sempre parcial e atrelado a interesses diversos, não podem abrir mão de dar suas versões à imprensa.
Quando pensamos no jornalismo televisivo, então, imaginamos um palco importantíssimo que todos precisam ocupar para, em alguma medida, apresentar seu “show” particular, ou seja, uma performance arranjada para convencer o público (a população que ainda tem a TV como veículo de preferência) de alguma coisa. Mesmo sabendo que – na maior parte das vezes – nada de bom sai deste grau de visibilidade, a atração da televisão como canal de comunicação para se dirigir às “massas” é ainda irrecusável.
Digo isso para pensar aqui no interessantíssimo episódio da entrevista concedida pelo então deputado Eduardo Cunha ao programa Conexão Repórter, capitaneado pelo jornalista Roberto Cabrini no SBT. Profissional experiente, Cabrini tem como marca de sua trajetória o trabalho investigativo e o desvendamento de vários mistérios, como o paradeiro de PC Farias, em 1993. É, certamente, um repórter de forte experiência e calejado no trato com as complexas figuras políticas.
Sendo assim, convence Eduardo Cunha – então afastado do cargo e às voltas com um processo de cassação – a conceder uma longa entrevista ao seu programa. A entrevista decorre, certamente, de um longo processo de negociação, o qual seria interessante que, em algum momento, Cabrini esclarecesse como se deu. O que quer Cunha (que, a julgar pelas tramas de sua vida política, não dá ponto sem nó) quando topa falar ao conhecido repórter?
A julgar pelo que se observa no episódio de Conexão Repórter, a estratégia de Cunha é a mesma de sempre: pretende “humanizar” sua figura, desconstruir uma certa persona de “vilão nacional” difundida em praticamente todos os veículos de comunicação.
Quer, portanto, reivindicar certo controle pela sua própria imagem. Pretende passar do “homem das sombras” (ou seja, alguém que articula manobras nos bastidores, de forma escusa), como diz o próprio Cabrini, do “malvado favorito” (na expressão de Marco Feliciano), para o pai de família, o marido apaixonado, o torcedor do Flamengo, ou seja, gente como a gente.
É esta a intenção que transparece, à primeira vista, no Conexão Repórter. Cunha aparece em contexto informal, de camisa fora da calça, com barriga proeminente, tal como qualquer tiozão carioca, talvez chegado em churrasco, cerveja e caipirinha. Topa abrir as portas de seu apartamento funcional em Brasília, anunciado como simples e decorado por quadros, de estética duvidosa, pintados pela esposa (talvez a mensagem seja: como bom esposo, quer ter sua mulher sempre por perto, mesmo que seu trabalho não seja bom). Traz os filhos à cena, que apontam o pai como “o homem mais bacana” que já conheceram.
Mas qual o resultado destas intenções? A entrevista sinaliza a uma lógica bastante interessante: que mesmo os mais preparados políticos, orientados pelos melhores profissionais de media training, não estão à altura da visibilidade da máquina televisiva, a qual escapa de um controle absoluto. Em outras palavras, Cunha quer tirar proveito da ferramenta televisiva – dar sua versão, seu “outro lado”, colocar-se simpático – mas o resultado é algo desastroso.
A tentativa frustrada de humanização de Eduardo Cunha
Por exemplo, quando traz sua família à cena, pretende-se fortalecer como pai amoroso, referência para os filhos, alguém um tanto injustiçado pela opinião pública. É preciso considerar também que sua própria mulher, a jornalista Claudia Cruz, é figura pública e, mais que isso, objeto de escárnio coletivo, protagonista de múltiplos memes.
Infelizmente para Cunha, sua mulher não consegue fugir desta representação: parece algo alterada, desconfortável, forçada. Quando confrontada com perguntas incisivas, não consegue ter clareza. Quando reclama da imagem de fútil, ajuda a fortalecê-la. Quando se comove, as lágrimas, curiosamente, não convencem.
Mas o mais impactante é a própria performance de Cunha. Ao entendermos que ele aceita falar ao programa de Cabrini no intuito de humanizar a própria imagem, causa absoluto estranhamento sua postura. Em vários momentos, fala em si mesmo na terceira pessoa – mantendo, portanto, uma posição de distanciamento, de personagem. Enquanto a narrativa construída por Cabrini relembra que o deputado é famoso pela sua impassibilidade, Cunha declara: “sou uma pessoa bastante fria, e basicamente sei todos os passos políticos que dou”. Quando aceita ser filmado enquanto assiste à votação do impeachment de Dilma Rousseff, sua cara mantém-se enigmática – nem alegre, nem triste.
Não há nada errado com isso, diga-se de passagem. Em última instância, a falta de emoções de Cunha não tem nenhuma conexão com sua competência enquanto deputado. Mas o estranhamento causado está no paradoxo entre imagem e ferramenta escolhida para divulgá-la: aceita abrir as portas de sua casa, de sua “caverna”, onde seria mais ele mesmo, para além do vilão que ocupa as esferas públicas. Mas quando a câmera adentra esse espaço da privacidade, ela parece apenas confirmar: Cunha é exatamente aquilo que vemos na Câmara dos Deputados, sem mais nem menos. Nosso “malvado favorito”.
Por fim, a entrevista do Conexão Repórter parece confirmar a grande riqueza da televisão: ela continua sendo um território indispensável a todos que dependem da visibilidade pública, mas ninguém consegue dominá-la em absoluto para os seus interesses.
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Maura Oliveira Martins é jornalista, professora universitária e editora do site A Escotilha