Em 2014, 27% dos eleitores aptos se abstiveram, anularam ou votaram “branco” – o maior índice desde 1998, quando a soma ficou na casa dos 36%. Nas eleições municipais de 2016 novamente debateu-as o aumento das abstenções (21,84% em São Paulo) e os nulos e brancos (16,64%).
Para a esquerda reformista pode parecer espantoso que a crise política que vivemos, aprofundada pelo impeachment da presidenta Dilma Rousseff, afaste ainda mais a população da democracia eleitoral burguesa. Para os revolucionários, por outro lado, nada poderia ser mais compreensível: a cada dia a massa adquire mais consciência de que o Estado burguês e sua “democracia racionada” (como dizia Marighella) não resolverão os problemas que afligem nossa classe – ainda que essa consciência não seja, automaticamente, revolucionária, e se reflita apenas como desconfiança ou descaso difuso, sob discursos “apolíticos”. Os oportunistas veem os votos brancos e nulos como sintoma de despolitização, de ignorância das massas. Já os revolucionários, ainda que não devamos cair no delírio de ver em cada voto nulo um voto pela insurreição, devemos sim ver em cada um desses votos uma expressão de descrença nas candidaturas da ordem, se não no próprio sistema representativo burguês (nem que seja, na maior parte das vezes, uma descrença pouco organizada e consciente; um gesto pessoal e individual de repulsa).
É o cúmulo da fé supersticiosa na democracia burguesa tomar por “despolitizados” tais votos: seria esse abstencionismo tão despido assim de elementos de consciência radical, em um cenário onde a democracia burguesa agoniza e escancara sua podridão? Os democratas e constitucionalistas ficam embasbacados com essa massa que “não dá valor à democracia”. Contudo, em vez de aumentar nas massas o “apreço pela democracia” burguesa, em vez de mobilizar as massas em sua defesa, a presente crise política apenas faz agravar a crise de autoridade do Estado burguês – essa que os senhores liberais chamam, ideologicamente, de “crise de representatividade”! Crise da cooptação das massas, e olhe lá!
Uma das ideias recorrentemente associadas ao voto nulo é a de que uma alta taxa destes levaria à anulação das eleições. Realmente, a previsão do artigo 224 do Código Eleitoral afirma que “se a nulidade atingir a mais de metade dos votos”, “julgar-se-ão prejudicadas as demais votações, e o Tribunal marcará dia para nova eleição dentro do prazo de 20 a 40 dias”. Caberia questionar, contudo, a eficácia dessa tática: primeiro porque essa nova votação teria as mesmas candidaturas. Em segundo lugar porque esse cálculo seria feito, como tem entendido a Justiça Eleitoral, somente sobre os votos nulos, e não somando os votos brancos e as abstenções! Nesses termos, a rigor, o único efeito do aumento das abstenções, votos nulos e votos brancos seria uma redução do quociente eleitoral (em resumo, do número de votos necessários para que um partido eleja representantes), aumentando as chances das coligações menores elegerem candidatos.
Isso da perspectiva meramente legal e eleitoral. É claro uma tal situação implicaria grande instabilidade política. Isso significa que não deva estar no horizonte dos revolucionários a anulação de tal ou qual pleito eleitoral, pela via do boicote? Ou que necessariamente deva? Uma coisa de cada vez. Para elucidar o ponto de vista materialista dialético sobre o voto nulo, antes de mais nada, é preciso compreender a própria posição dos comunistas sobre a participação na luta eleitoral e parlamentar – que buscamos expor sucintamente nos próximos parágrafos, sem grandes aprofundamentos.
A participação dos comunistas nas eleições burguesas
A primeira formulação acerca da participação eleitoral dos comunistas sobre a qual vale a pena nos debruçarmos remonta a Mensagem do Comitê Central à Liga dos Comunistas, de 1850. Nela, Marx e Engels defendiam a seguinte posição:
“O proletariado deve aqui cuidar de que por toda a parte, ao lado dos candidatos democráticos burgueses, sejam propostos candidatos operários, na medida do possível de entre os membros da Liga e para cuja eleição se devem acionar todos os meios possíveis. Mesmo onde não existe esperança de sucesso, devem os operários apresentar os seus próprios candidatos, para manterem a sua democracia, para manterem a sua autonomia, contarem as suas forças, trazerem a público a sua posição revolucionária e os pontos de vista do partido. Não devem, neste processo, deixar-se subornar pelas frases dos democratas, como por exemplo que assim se divide o partido democrático e se dá à reação a possibilidade da vitória. Com todas essas frases, o que se visa é que o proletariado seja mistificado. Os progressos que o partido proletário tem de fazer, surgindo assim como força independente, são infinitamente mais importantes do que o prejuízo que poderia trazer a presença de alguns reacionários na Representação.”
Vale destacar a esse respeito algumas colocações que, desde cedo, a tradição marxista busca estabelecer com nitidez. Em primeiro lugar, os comunistas, como declaram em seu Manifesto, acreditam que seus objetivos só podem ser atingidos pela derrubada violenta da ordem social vigente, uma vez que o Estado atualmente existente não é uma democracia abstrata e genérica, mas uma democracia burguesa, que se funda nos interesses das classes dominantes e não pode se desligar destes. Evidentemente, esse ponto precisa de maiores exposições para que se explique, mas como não é esse o objetivo de nosso texto (debater o caráter burguês da democracia brasileira), passamos ao segundo ponto: a necessidade de apresentar candidaturas da própria classe trabalhadora.
Quais os motivos disso? “Manterem a sua democracia, para manterem a sua autonomia, para contarem suas forças, trazerem a público a sua posição revolucionária e os pontos de vista do partido”. Ou seja: não só essa participação eleitoral tem um caráter de propaganda revolucionária, ou de contabilidade das forças, mas também tem um papel organizativo, de manutenção da autonomia e democracia das organizações operárias.
Por isso mesmo não deveria nos espantar a terceira colocação: que a importância dessa autonomia é colocada acima mesmo do resultado eleitoral efetivo – “Mesmo onde não existe esperança de sucesso”; mesmo que se “dividam os votos”, levando a uma ampliação representativa das forças da reação nos órgãos estatais. Com isso, é preciso que fique claro, não se diz que seja indiferente se a maioria parlamentar é abertamente reacionária ou liberalmente democrata – mas se diz, com razão, que a diferença em questão é ínfima diante da transformação revolucionária necessária à solução das contradições sociais em sua raiz, que deve ser o objetivo dos comunistas. Caso contrário, o partido da classe trabalhadora se verá sempre a reboque do “mal menor” da vez, sem criar jamais condições e correlações de forças que permitam a sua vitória. Retomaremos adiante a questão do “mal menor”.
Por hora, vejamos como Lenin expunha a questão da propaganda revolucionária nas eleições, com excepcional simplicidade, em sua famosa brochura sobre o “Esquerdismo”:
“Como é natural, para os comunistas da Alemanha o parlamentarismo “caducou politicamente”; mas, trata-se exatamente de não julgar que o caduco para nós tenha caducado para a classe, para a massa. Mais uma vez, constatamos que os “esquerdistas” não sabem raciocinar, não sabem conduzir-se como o partido da classe, como o partido das massas. Vosso dever consiste em não descer ao nível das massas, ao nível dos setores atrasados da classe. Isso não se discute. Tendes a obrigação de dizer-lhes a amarga verdade: dizer-lhes que seus preconceitos democrático-burgueses e parlamentares não passam disso: preconceitos. Ao mesmo tempo, porém, deveis observar com serenidade o estado real de consciência e de preparo de toda a classe (e não apenas de sua vanguarda comunista), de toda a massa trabalhadora (e não apenas de seus elementos avançados).
Mesmo que não fossem “milhões” e “legiões”, e sim uma simples minoria bastante considerável de operários industriais que seguisse os padres católicos e de trabalhadores agrícolas que seguisse os latifundiários e camponeses ricos, poderíamos assegurar sem, vacilar que o parlamentarismo na Alemanha ainda não caducou politicamente, que a participação nas eleições parlamentares e na luta através da tribuna parlamentar são obrigatórias para o partido do proletariado revolucionário, precisamente para educar os setores atrasados de sua classe, precisamente para despertar e instruir a massa aldeã inculta, oprimida e ignorante. Enquanto não tenhais força para dissolver o parlamento burguês e qualquer outra organização reacionária, vossa obrigação é atuar no seio dessas instituições, precisamente porque ainda há nelas operários embrutecidos pelo clero e pela vida nos rincões: mais afastados do campo. Do contrário, correi o risco de vos converter em simples charlatães.”
O boicote ativo às eleições
Isso significa que em quaisquer circunstâncias os comunistas devem participar dos processos eleitorais? Coube à Revolução Russa de 1905 apresentar a primeira experiência bem-sucedida de boicote ativo às eleições parlamentares, respondendo na prática a questão. Em verdade, em um curto período de tempo, a experiência revolucionária russa permitiu aprofundar com muita riqueza o debate sobre a atuação eleitoral, diante dos desdobramentos do boicote ao Duma de 1905 – e diante do fracasso do chamado ao boicote ao Duma de 1906. Vejamos em que termos defendiam os comunistas, em 1905, o boicote ativo ao Duma Estatal:
“Um boicote ativo não significa meramente mantermo-nos fora das eleições, mas expressa que faremos um extenso uso dos encontros eleitorais para a agitação e organização dos Social-Democratas. […]
Por que nós recusamo-nos a tomar parte nas eleições?
Porque ao participar das eleições nós devemos involuntariamente promover o credo do povo na Duma e enfraquecer a efetividade de nossa luta contra esta forma travestida de representação popular. […]
Porque nós, no presente momento, não podemos acrescer nenhuma vantagem ao Partido por eleições. Não há liberdade de expressão ou de manifestação de controvérsias. O partido da classe trabalhadora é ilegal, seus representantes estão presos sem o devido processo legal, seus jornais foram fechados e suas reuniões proibidas. O Partido não pode, de forma lícita, divulgar seus objetivos nas eleições e publicamente nomear seus representantes sem traí-los entregando-os à polícia. Nesta situação, nosso trabalho de agitação e organização é muito mais útil em um uso revolucionário de nossos encontros sem tomar parte nas eleições participando em encontros permitidos para eleições dentro da lei.”
Sem que qualquer outro partido defendesse o boicote ao lado dos bolcheviques, ainda assim o chamado se disseminou rapidamente entre as massas (o que permite, inclusive, relembrar que jamais corre o risco de se isolar o partido que defende, ainda que sozinho, uma política historicamente acertada). O balanço de tal política foi sintetizado na brochura de Lenin acima mencionada – inclusive quanto a seus efeitos sobre boa parte dos comunistas, que passaram a questionar a própria necessidade, em qualquer circunstância, da participação nas eleições, levando à equivocada política de boicote do Duma de 1906:
“Quando o czar anunciou, em agosto de 1905, a convocação de um “parlamento” consultivo, os bolcheviques, contra todos os partidos da oposição e contra os mencheviques, declararam o boicote a esse parlamento, que foi liquidado, com efeito, pela revolução de outubro de 1905. Naquela ocasião, o boicote foi justo, não porque seja certo abster-se, de modo geral, de participar nos parlamentos reacionários, mas porque foi levada em conta, acertadamente, a situação objetiva, que levava à rápida transformação das greves de massas em greve política e, sucessivamente, em greve revolucionária e em insurreição. Além disso, o motivo da luta era, nessa época, saber se se devia deixar nas mãos do czar a convocação da primeira instituição representativa, ou se se devia tentar arrancá-la das mãos das antigas autoridades. Como não havia, nem podia haver, a plena certeza de que a situação objetiva era semelhante [em 1906] e que seu desenvolvimento havia de realizar-se no mesmo sentido e com igual rapidez, o boicote deixava de ser justo.
O boicote dos bolcheviques ao “parlamento” em 1905, enriqueceu o proletariado revolucionário com uma experiência política extraordinariamente preciosa, mostrando que, na combinação das formas de luta legais e ilegais, parlamentares e extraparlamentares, é, às vezes, conveniente e até obrigatório saber renunciar às formas parlamentares. Mas transportar cegamente, por simples imitação, sem espírito crítico, essa experiência a outras condições, a outra situação, é o maior dos erros. O que já constituíra um erro, embora pequeno e facilmente corrigível, foi o boicote dos bolcheviques à “Duma” em 1906. Os boicotes de 1907, 1908 e dos anos seguintes foram erros muito mais sérios e dificilmente reparáveis, pois, de um lado, não era acertado esperar que a onda revolucionária se reerguesse com muita rapidez e se transformasse em insurreição e, por outro lado, o conjunto da situação histórica originada pela renovação da monarquia burguesa impunha a necessidade de combinar-se o trabalho legal com o ilegal. […]
Naturalmente, estaria errado quem continuasse sustentando, de modo geral, a velha afirmação de que abster-se de participar dos parlamentos burgueses é inadmissível em todas as circunstâncias. Não posso tentar formular aqui as condições em que é útil o boicote, já que a finalidade desse folheto é bem mais modesta: analisar a experiência russa em relação a algumas questões atuais da tática comunista internacional. A experiência russa nos apresenta uma aplicação feliz e acertada (1905) e outra equivocada (1906) do boicote por parte dos bolcheviques. Analisando o primeiro caso, concluímos: os bolcheviques conseguiram impedir a convocação do parlamento reacionário pelo Poder reacionário, num momento em que a ação revolucionária extraparlamentar das massas (particularmente as greves) crescia com rapidez excepcional, em que não havia nenhuma setor do proletariado e do campesinato que pudesse apoiar de modo algum o Poder reacionário, em que a influência do proletariado revolucionário sobre as grandes massas atrasadas estava assegurada pela luta grevista e pelo movimento camponês. É totalmente evidente que esta experiência é inaplicável às atuais condições europeias.” [1]
Talvez seja o caso de pedir desculpas pela longa citação, mas fato é que ela tem um poder de síntese maior do que qualquer esforço pessoal nosso poderia obter. De todo modo, caberia esmiuçar alguns pontos relevantes:
Diferente do sentido propagandístico e organizativo da participação eleitoral comunista, o boicote ativo é apresentado como tendo um papel agitativo e organizativo. Ou seja: o que está em jogo, nesses casos, não é tão somente a elevação do nível de consciência do proletariado, mas um chamado à ação, que busca efetivamente impedir a convocação de determinado pleito eleitoral, ou mesmo forçar uma nova convocação, ou ao mínimo levar o regime a um impasse, uma crise da autoridade estatal burguesa. Esse tipo de entendimento destoa profundamente da política esquerdista que busca fazer propaganda revolucionária em torno do boicote – sem efetivamente esperar obstruir as eleições, mas contando como sucesso seu próprio a abstenção eleitoral massiva que, se formos honestos, saberemos que pouco tem a ver com a propaganda empreendida pelos esquerdistas.
Essa mesma política esquerdista esquece absolutamente as condições objetivas, substituindo a lição de que “é, às vezes, conveniente e até obrigatório saber renunciar às formas parlamentares” de luta por um mantra abstencionista prolongado indefinidamente. Esquecem que “transportar cegamente, por simples imitação, sem espírito crítico, essa experiência a outras condições, a outra situação, é o maior dos erros”.
Para os comunistas consequentes, o boicote jamais poderá ser visto como mero meio de lavar as mãos e não se comprometer, um modo de “mantermo-nos fora das eleições”, de mantermo-nos limpos do lodo parlamentar burguês, ou coisa que o valha: o espírito do boicote ativo é o aprofundamento de um quadro pré-revolucionário que periga se diluir e iludir nas urnas, quando ainda há condições para o aprofundamento de tal situação pré-revolucionária. O estado de ânimo das massas pesa definitivamente em favor ou contra essa política. Nesse sentido, o Projeto de Resolução Sobre a Participação nas Eleições para a III Duma de Estado expressa de modo cristalino que:
“O boicote ativo, como o demonstrou a experiência da revolução russa, só é uma tática acertada da social-democracia quando existe um ascenso revolucionário amplo, geral e rápido, que se transforma em insurreição armada, ligado à tarefa ideológica da luta contra as ilusões constitucionais em relação à convocação da primeira assembleia representativa pelo velho poder; […] Faltando tais condições, uma tática certa da social-democracia exige, ainda quando se deem todas as condições de uma época revolucionária, a participação nas eleições, como ocorreu por ocasião da II Duma; […] [Assim, é preciso] participar das eleições e da III Duma; explicar às massas que o boicote da Duma, por si só, não pode elevar o movimento operário e a luta revolucionária à fase superior e que a tática do boicote só poderia ser conveniente se os nossos esforços para converter o crescimento sindical em ofensiva revolucionária fossem coroados de êxito.”
Pelo visto, também é preciso explicar isso a muitos autodeclarados marxistas!
Em suma: para os comunistas, faz sentido participar das eleições na medida em que consigam “manter sua autonomia” e “trazer a público a sua posição revolucionária e os pontos de vista do partido”. Não há sentido em tal participação nos momentos em que esta não acrescente “nenhuma vantagem ao Partido”, e que o Partido não possa, “de forma lícita, divulgar seus objetivos nas eleições”. Ademais, o chamado ao boicote deve levar “em conta a situação objetiva”, de intensificação e ampliação acelerada da luta de massas em direção à “ação revolucionária extraparlamentar”.
O voto nulo
Pela exposição acima, talvez já esteja elucidada em boa medida a posição comunista sobre o voto nulo: mais do que uma medida individual de “recusa em participar da fraude eleitoral”, o voto nulo adquire um sentido revolucionário quando combinado a outras formas de luta de massas, em um contexto em que “a ação revolucionária extraparlamentar das massas” cresça “com rapidez excepcional” e em que não haja “nenhuma setor do proletariado e do campesinato” que possa “apoiar de modo algum o Poder reacionário”. Nada mais próximo do idealismo pequeno-burguês do que uma recusa a participar em algo de que não se pode escolher participar ou não – ou as leis que se abaterão sobre as massas, vindas do parlamento, também são opcionais? Ou nos basta dormir de consciência tranquila, e alardearmos o quão lúcidos e conscientes nós somos? Acreditar que participar das eleições seja “se submeter à democracia burguesa” só pode ser ingenuidade ou má fé, já que se submeter à democracia burguesa não é uma escolha, mas uma imposição às classes dominadas sob o capitalismo. A questão é, então, encontrar a melhor forma de lutar contra essa submissão. Participando ou não da farsa eleitoral, essa farsa segue tendo implicações reais e trágicas sobre as classes exploradas e setores oprimidos da sociedade – e nada existe de revolucionário no purismo de gritar aos quatro cantos “com meu voto não!”, sem concretamente alterar essa situação da sujeição ao poder burguês.
O risco é ver a carroça na frente dos bois, como se uma massiva abstenção fosse deflagrar uma situação revolucionária – quando a experiência histórica nos leva a crer que seja justamente ao contrário! Nesse caso, seríamos levados a crer que em 1998, quando a soma dos votos nulos, brancos e abstenções ficou na casa dos 36%, vivíamos no Brasil uma situação pré-insurreicional…
Resta, contudo, debater uma situação particularmente delicada, que dá margens a todo tipo de oportunismo, de uma parte, ou de simplismos moralistas, por outra: o segundo turno das eleições.
Nas circunstâncias de uma situação de crescente mobilização revolucionária, conforme já tratamos, não há dúvida da necessidade do boicote ativo. Mas suponhamos uma situação diversa, em que os comunistas tenham participado corretamente do primeiro turno das eleições. Como a experiência nos ensina, dificilmente poderíamos esperar que uma candidatura revolucionária alçasse o segundo turno*. Afastemos, então, essa excepcional hipótese: qual deveria ser nesse caso a política dos comunistas?
Desnecessário dizer que é bem pouco provável o caso de, entre os turnos, a situação objetiva passar da desmobilização para uma de súbita aceleração da ação revolucionária extraparlamentar das massas. Seria, fora de tais circunstâncias, um principismo esquerdista defender o voto nulo? Restaria aos comunistas o “voto crítico” no “mal menor”?
A questão pode levantar confusões convenientes aos que deseja oportunisticamente forjar a unidade em torno do “mal menor”. Mas com um pouco de tranquilidade e desdobrando o emaranhado de como a questão se apresenta, podemos respondê-la.
Afinal, qual era o motivo original da participação dos comunistas nas eleições, a despeito de não nutrirem quaisquer ilusões na democracia burguês? Para “manterem a sua democracia, para manterem a sua autonomia, contarem as suas forças, trazerem a público a sua posição revolucionária e os pontos de vista do partido.” Porque, na ausência de uma candidatura própria do proletariado e de um contexto de levante das massas, o proletariado não simplesmente deixará de votar, em sua maioria – mas votará em alternativas burguesas. É isso que, via de regra, ocorre nos segundos turnos. Então haveria qualquer sentido de participar das eleições de modo a perder a autonomia e entrar em contradição com as posições revolucionárias e os pontos de vista do partido? É óbvio que não. O apoio, em segundo turno, a uma candidatura que não represente o ponto de vista do socialismo revolucionário apenas contribuiria para disseminar confusões e para rebaixar o partido à imagem de “bem intencionado, mas pragmático” – que, quando pode agir sem pôr em risco a ala esquerda da ordem, no primeiro turno, o faz; mas assim que a coisa é “para valer”, se deixa “subornar pelas frases dos democratas”.
Contudo, se é posto aos comunistas a alternativa do voto nulo em segundo turno, é preciso reconhecer que, sem as devidas condições objetivas, essa defesa do voto nulo jamais poderá evoluir rumo a um boicote de massas. É preciso afirmar isso com franqueza. É possível seguir, pela defesa do voto nulo, fazendo a propaganda de nossas posições – sem contudo acreditar que a mera necessidade de nos abstermos coloque na ordem do dia a agitação pelo boicote pelas massas. Sabendo que, inevitavelmente, faremos nossa propaganda em meio ao pragmatismo oportunista generalizado e a desesperada procura pelas massas de um “mal-menor”. É indigno de um partido revolucionário fazer qualquer coisa que não apontar, em meio a essa procura, os verdadeiros males em jogo, com suas possíveis nuances ou não.
Qual o efeito prático disso? O principal segue sendo o mesmo que justifica nossa participação eleitoral: o avanço progressivo da organização dos setores mais conscientes e revolucionários da classe trabalhadora, sua consolidação enquanto força independente – objetivos “infinitamente mais importantes do que o prejuízo que poderia trazer a presença de alguns reacionários na Representação”. Alguns oportunistas “de esquerda” poderão nomear isso de “descaso com as melhorias, ainda que pequenas, em favor do povo”. Antes, contudo, teriam que explicar o próprio descaso do povo para com essas migalhas – ainda mais nos casos de reeleição de um social-democrata! Que maldição desse povo ignorante não se contentar com migalhas, dirá o oportunista – as mesmas migalhas que são erguidas como trunfo contra os comunistas na hora de pedir apoio! O fato é que o apoio dos comunistas a qualquer candidatura da ordem apenas significaria contribuir para semear ilusões em nossa classe e desmobilizá-la nas suas cada vez mais duras e necessárias lutas.
O caso é ainda mais simples quando não se trata sequer de negar apoio a um reformista de esquerda, com ligações reais com o movimento de massas, mas sim negar apoio a duas alternativas abertamente conservadoras. É claro que, nesses casos, os social-democratas, baluartes do “pragmatismo” que são, jamais hesitarão em apoiar o “mal menor” – mesmo que tenham passado toda a campanha eleitoral atacando esse mal que agora tentam fazer passar por “menor”! Nessas circunstâncias, os comunistas têm muito a ganhar em sua propaganda e organização, denunciando não só o caráter burguês de ambas candidaturas, mas as próprias incoerências e capitulações da social-democracia.
Aliás, a respeito da questão do “mal menor”, valeria que os oportunistas – que tanto se esforçam por distorcer e cooptar o pensamento de Antonio Gramsci – ouvissem às ponderações do revolucionário italiano:
“Um mal menor é sempre menor que um subsequente possivelmente maior. Todo mal resulta menor em comparação com outro que se anuncia maior e assim até o infinito. A fórmula do mal menor, do menos pior, não é mais que a forma que assume o processo de adaptação a um movimento historicamente regressivo cujo desenvolvimento é guiado por uma força audaciosamente eficaz, enquanto que as forças antagônicas (ou melhor, os chefes das mesmas) estão decididas a capitular progressivamente, em pequenas etapas e não de uma só vez (…)” (Cadernos do Cárcere, Caderno 16, §25)
Assim, temos convicção não só em travar a luta eleitoral e parlamentar como em defender o voto nulo, conforme a conveniência do momento, à luz do andamento objetivo da luta de classes. Entendemos que, sob o fatalismo da fraqueza que assola os dominados, muitos lutadores honestos capitulam à política utilitarista e imediatista do “mal menor”. A tarefa dos comunistas, enquanto força de vanguarda da massa explorada e oprimida, consiste justamente em dissipar tal tipo de ilusão – que, invariavelmente, se põe em contradição progressivamente na hipótese de o “mal menor” se alçar ao poder. Ou haverá, por exemplo, algum companheiro que tenha votado no “mal menor” de Dilma, em 2014, sem ter se decepcionado profundamente apenas poucos meses depois?
Ao mesmo tempo, respeitamos e entendemos as e os milhares de lutadoras e lutadores sociais de nossa classe que optam pela abstenção eleitoral, diante de sua desilusão com a democracia burguesa, e buscam assim manifestar seu protesto individual. Diferentemente dos oportunistas, que verão nisso um divisor de águas fundamental, uma rivalidade insuperável, sabemos que seguiremos ao lado dessas e desses camaradas em diversas lutas – já que o abrir e fechar das urnas apenas muda, via de regra, as nádegas que repousam sobre o trono de baionetas do Estado burguês e, quando muito, a tática que será utilizada para levar a cabo os ataques contra a nossa classe.
Um apontamento necessário: a vedação à propaganda revolucionária nas eleições
Como devem os comunistas encarar as vedações do artigo 243 da lei eleitoral? Devem entender que a propaganda revolucionária é ilegal e, portanto, abrir mão dela nos processos eleitorais? Há sentido em tal participação eleitoral nos momentos em que esta não acrescente “nenhuma vantagem ao Partido”, e que o Partido não possa, “de forma lícita, divulgar seus objetivos nas eleições”?
O artigo em questão diz que “Não será tolerada propaganda:”
I – de guerra, de processos violentos para subverter o regime, a ordem política e social ou de preconceitos de raça ou de classes;
II – que provoque animosidade entre as forças armadas ou contra elas, ou delas contra as classes e instituições civis;
IV – de instigação à desobediência coletiva ao cumprimento da lei de ordem pública;
IX – que caluniar, difamar ou injuriar quaisquer pessoas, bem como órgãos ou entidades que exerçam autoridade pública.
A questão é, como quase todas que permeiam as eleições, capciosa.
Na tradição do movimento comunista internacional, se rejeita “dissimular as suas perspectivas e propósitos. Declaram abertamente que os seus fins só podem ser alcançados pelo derrube violento de toda a ordem social até aqui.” E, contudo, veremos que os fins e os meios são coisas distintas (e dizemos isso cientes de que um sofista qualquer pode querer distorcer nossas palavras. Não importa. A questão está sendo posta em termos bastante concretos aqui, sem negar a conexão entre meios e fins, que é justamente a que se estabelece no trecho acima). O objetivo dos comunistas não são a derrubada violenta da ordem, mas pode ser sintetizado na “socialização dos meios da produção” – que é, por sua vez, impossível sem a derrubada violenta da ordem social existente.
Defender a derrubada violenta da ordem social existe seria um duplo erro. Em primeiro lugar, porque significaria confundir ambas as coisas: nossa propaganda eleitoral pode muito bem passar expondo nossos objetivos, sem querer ver na tribuna eleitoral um palco de agitação revolucionária. Em segundo lugar, e principalmente, porque é indigno de um partido revolucionário fazer chamados à insurreição quando não haja condições objetivas para tanto – condições nas quais, como já abordamos, sequer seria o caso da participação eleitoral!
Não dissimulamos nossos meios – e, contudo, jamais devemos confundir propaganda revolucionária com agitação revolucionária. Haveria algo mais ridículo do que participar das votações e, ao mesmo tempo, conclamar as massas às armas?
*Como buscamos debater especificamente a abstenção eleitoral, não aprofundamentos o muito mais difícil debate sobre as alianças eleitorais da esquerda socialista. Contudo, o próprio Rio de Janeiro permite ver o caso de uma candidatura que chega ao segundo turno sob a propaganda de um programa radical. Também nesses casos, o fundamental a levar em conta é a possibilidade de as forças do proletariado revolucionário apresentarem “os seus próprios candidatos, para manterem a sua democracia, para manterem a sua autonomia, contarem as suas forças, trazerem a público a sua posição revolucionária e os pontos de vista do partido.”. Mas esse é um debate a ser feito, de maneira aprofundada, em outro texto.