O Rio de Janeiro está no topo da pirâmide quando o assunto é a penúria financeira, mas logo atrás do estado, outros tantos poderiam ser listados um pouco menos ou um pouco mais próximos de uma situação pré-falimentar, como o Rio Grande do Sul, Minas Gerais e Rio Grande do Norte. No entanto, se a crise atinge a quase todos em maior ou menor grau, é do Rio de Janeiro que desponta a mais grave “solução” até o momento: um pacote de ajustes que, entre outras medidas, quer aumentar a contribuição dos servidores à previdência, retirar benefícios e congelar os reajustes salariais até 2020. “O Rio será utilizado como uma espécie de ‘case’ para justificar nos outros estados e no plano federal um ajuste que vai ser apresentado como: ‘olha, é melhor fazer agora de uma forma mais branda do que esperar chegar à situação do Rio que tem que fazer uma coisa drástica’, analisa o diretor do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap), Antônio Queiroz. “Oportunisticamente, o pacote do Rio vai ser usado para justificar isso. E são medidas injustas porque escolhem como variável de ajuste a parte mais fraca econômica, social e politicamente na relação com o governo e com o mercado. No caso, os salários dos servidores públicos”, completa.
O analista, que observa de perto as movimentações em Brasília, acredita que aprovação do pacote no Rio fortalece os argumentos a favor da PEC do teto dos gastos públicos (antes 241, agora tramitando no Senado com o número 55) e também do Projeto de Lei do Executivo 257, já aprovado na Câmara dos Deputados e agora tramitando com o número 54 no Senado, que estipula regras de reequilíbrio fiscal aos estados para que sejam auxiliados pelo governo federal. “Esse PL estabelece de pronto que nos próximos dois anos não pode haver qualquer aumento de despesa com pessoal nos estados que aderirem a esse acordo, no qual vai ser exigido também como condição que se adote a previdência complementar onde ainda não tiver, que se venda ativos dos estados, enfim, uma série de condições”, explica. É como se o Rio, portanto, já estivesse fazendo antecipadamente e com ainda mais rigor o dever de casa.
A primeira sessão de discussão das propostas enviadas à Assembleia Legislativa pelo governador Luiz Fernando Pezão (PMDB), apelidadas prontamente pelos servidores de “pacote de maldades”, aconteceu na última quarta-feira sob bombas de gás para conter os manifestantes do lado de fora. Nesta quinta-feira, o estado acordou com a notícia da prisão do ex-governador Sérgio Cabral, do qual Pezão foi vice, sob a acusação de recebimento de propina para favorecimento de empreiteiras nos contratos das grandes obras realizadas nos últimos anos, como a reforma do Maracanã e o Arco Metropolitano. A prisão preventiva deu ainda mais fôlego aos argumentos contrários às medidas, por referendar a pedra cantada há muito tempo por movimentos sociais: as obras agora sob suspeita fariam parte de um grande esquema de favorecimento de empresários sob a liderança de Cabral, o que tornaria ainda mais descarada a centralidade do pacote na penalização dos servidores já que a bancarrota do estado também poderia ter origem nessas negociatas. "Eles faliram o Rio de janeiro com a sua maneira de governar. Essa denúncia específica da Justiça Federal no que diz respeito à obra do Marcanã e ao complexo industrial do Porto do Açu afirma que essas obras geram uma dívida de aproximadamente R$ 220 milhões [valor pago em propina pelas empresas Andrade Gutierrez e Carioca Engenharia]. Só para ser ter uma ideia, o reajuste que querem fazer na contribuição previdenciária do servidor público faria o estado arrecadar R$ 300 milhões. Então, só em uma investigação a corrupção do Cabral levou ao que hoje eles querem recuperar fazendo esse servidor público pagar mais. É evidente que esse pacote das maldades, que já não tinha, agora perde totalmente a legitimidade”, declarou o deputado estadual Marcelo Freixo (Psol).
Pacote
O governo enviou 22 projetos à Alerj, mas um dos mais polêmicos, o que criava um desconto extra de até 30% na folha de servidores e aposentados e taxava isentos, foi recusado pelos próprios aliados do governador na presidência da Assembleia e devolvido ao governo. O pacote inclui ainda seis decretos que já foram publicados, como o que extingue o aluguel social de R$ 400 pago a famílias em condições de vulnerabilidade social, muitas delas, inclusive, removidas de suas casas pelo próprio governo em função das obras da Copa e Olimpíadas. Os outros decretos se referem ao fim da obrigatoriedade da manutenção dos restaurantes populares pelo estado; o aumento da tarifa do bilhete único; a reorganização da estrutura do estado com extinção de secretarias; a redução da gratificação paga a servidores da administração direta e indireta e a instituição de um fundo estadual de equilíbrio fiscal, que segundo o governo, vai disciplinar a contribuição de empresas que recebem incentivos fiscais. “Para nós uma das questões mais preocupantes é o aumento da alíquota da previdência, que na prática significa reduzir salário. E o quadro fica pior porque a proposta é também congelar os reajustes. Então você imagina aprovando essa alíquota de 14% [da previdência] como que os profissionais da Educação e os outros servidores vão conseguir sobreviver? Nós já estamos enfrentando atraso no pagamento dos salários, os aposentados sofrendo a cada mês, isso significa um total grau de empobrecimento”, sintetiza Dorotéa Frota, coordenadora do Sindicato Estadual dos Profissionais da Educação (Sepe).
A professora se refere ao projeto de lei 2.240/2016 que estabelece o aumento da contribuição dos servidores à previdência estadual de 11% para 14%. A proposta aumenta também a contribuição patronal, que passa de 22% para 28%, mas neste caso, o projeto diz que o aumento será escalonado até 2023. Outros projetos que se referem diretamente aos ganhos dos servidores também têm sido duramente combatidos e o pacote vêm apresentando alguns sinais de desidratação. Além da recusa da Alerj em apreciar uma das propostas mais centrais pelo governo, na ultima quarta-feira, o Tribunal de Justiça do Rio considerou inconstitucional o PL 2.244/2016, que extingue adicional por tempo de serviço para todos os servidores civis e militares, os chamados triênios. O mandado de segurança expedido pela desembargadora Helda Lima Meireles determina a suspensão da tramitação da proposta. A ação foi movida pela deputada Enfermeira Rejane (PCdoB).
Dorotea explica que também estão no centro da preocupação dos servidores o projeto 2.245, que adia para 2020 os aumentos salariais que entrariam em vigor em 2017 e 2018 e o Projeto de Lei Complementar 30/2016, que atrela o limite de crescimento da despesa de pessoal a 70% da Receita Corrente Líquida (RCL). “Para nós também é seriíssimo o fim dos restaurantes populares, com essa recessão que o país está, com muitos desempregados, isso se torna ainda mais grave. Além disso, a situação também do aluguel social, que afeta ainda mais as pessoas que foram prejudicadas pelo descaso dos governos.São situações muito sérias, por isso que a gente está enfrentando e está tendo toda essa manifestação nas ruas”, acrescenta a coordenadora do Sepe.
O pacote traz também outras medidas como o aumento da conta de luz e a taxação de combustível e bebidas, o fim dos programas Renda Melhor e Renda Melhor Jovem que complementava recursos para as famílias beneficiárias do Bolsa Família. Acesse aqui todos os projetos.
A culpa é da previdência?
A entrada em 2017 com um rombo de R$ 17 bilhões e os valores destinados ao pagamento dos beneficiários da previdência estadual foram repetidos à exaustão pelo governo fluminense nos últimos dias para explicar a crise e justificar o pacote de medidas. “O centro gravitacional dessa crise é a previdência”, disse o secretário de Planejamento e Gestão, Francisco Caldas, durante o anúncio do ajuste. No entanto, diversos analistas, sindicatos de servidores e parlamentares da oposição apresentam outras contas para explicar o rombo no estado, como a política indiscriminada de incentivos fiscais, que contemplou, inclusive, joalherias e termas, como denunciaram o jornal O Dia e o portal de notícias G1. De acordo com o Tribunal de Contas do Estado, as isenções somaram entre 2008 e 2013, durante as duas gestões de Sergio Cabral, mais de R$ 138 bilhões de reais. A bancada do Psol na Alerj protocolou nesta quinta-feira um pedido de abertura de CPI para investigar os benefícios concedidos às empresas. Os deputados apresentaram também um projeto de lei que cria uma comissão de auditoria da dívida do estado do Rio.
Para o presidente da Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil (Anfip), Vilson Antonio Romero, diferente da previdência federal, os regimes previdenciários dos estados de fato apresentam desequilíbrio, mas encarar o problema apenas pelo aumento exponencial de beneficiários é, no mínimo, escamotear a realidade. “É um descalabro cobrar a conta do desgoverno, da falta de equilíbrio, da falta de provisão de anos e décadas passadas dos atuais servidores, dos atuais aposentados e pensionistas, que ao longo da vida se dedicaram. Todos os servidores contribuem sobre tudo o que ganham. Se o governo não contribuiu com a sua parte de patrão, não formou o fundo, não equilibrou as contas, ou se aproveitou desses recursos para pagar outras coisas, isso não pode ser cobrado dos atuais servidores”, enfatiza Vilson. Segundo o auditor, o Rio de Janeiro e os outros estados deveriam ter constituído um fundo para assegurar os pagamentos. “Todos os governos não se prepararam para enfrentar esse problema que vem desde o tempo de Getúlio Vargas, quando os servidores públicos começaram a contribuir, e na época só contribuíram para pagar a pensão por morte e os benefícios de risco.Esses recursos foram todos sendo carreados pelos institutos da época ou para o caixa único dos tesouros estaduais e não foi sendo feita a provisão para garantir as aposentadorias de hoje”, detalha.
De acordo com Vilson, o desequilíbrio nas previdências estaduais se avolumou a partir da Constituição de 1988, que permitiu a efetivação dos trabalhadores que prestavam serviços para os entes públicos. Ele explica porque a previdência federal tem uma situação diferente. “A Constituição criou um cobertor, um amortecedor chamado seguridade social, e o conjunto das contribuições sociais dá cobertura a todos os programas de redistribuição de renda para áreas da Previdência, da Saúde, da Assistência. A contribuição social sobre o lucro, o PIS/PASEP, cada concurso de prognóstico das nossas loterias – a cada semana 18% do que é arrecadado pelas loterias vai para a seguridade social – tudo isso garante a seguridade social. Por isso a situação é bem diferente. Os estados não têm isso”, aponta.
A proposta apresentada pelo governo do Rio de aumentar a contribuição dos servidores à previdência, é, segundo o presidente da Anfip, por enquanto uma novidade no cenário nacional, embora outros estados já tenham mexido em seus sistemas para igualar, por exemplo, o teto de recebimentos, como fez o Rio Grande do Sul. Para Vilson, as dificuldades maiores ou menores que diversos estados enfrentam nesse momento e tentam soluções paliativas, como as do Rio, têm origem também na má distribuição dos recursos do país. “O volume de recursos é altamente concentrado na União, nós temos uma situação na qual onde tem que atender a população, que é no município e no estado, falta dinheiro, e definitivamente [os governadores] ficam a todo momento com o chapéu na mão vindo pedir recurso para o governo federal. Agora estão buscando a solução de ter um empréstimo emergencial no BNDES para poder bancar o 13º. É uma situação extremamente esdrúxula, temos que equacionar de uma outra forma, com uma rediscussão do Pacto Federativo”, defende.
Na conta dos servidores
Assim como o Rio, o Rio Grande do Sul, governado por Ivo Sartori, também do PMDB, vem tendo as contas bloqueadas pelo não pagamento das dívidas com a União. A situação faz com que há nove meses, os servidores recebam os salários parcelados. “Nas primeiras vezes eram parcelamentos mais curtos. Teve o fatídico mês de agosto [de 2015], que o governo acabou depositando 650 reais, que foi uma coisa assim que nós achávamos que já era o fundo do poço. Só que agora nesse mês o governo acabou depositando inicialmente 450 reais. É humilhante. A gente diz que é o salário goteira”, lamenta a vice-presidente do Sindicato dos Trabalhadores em Educação do Rio Grande do Sul (Cpers), Solange Carvalho.
A professora vê semelhança entre as propostas do Rio e as propostas de Sartori para o estado – algumas já aprovadas e outras apenas mencionadas em tom de ameaça aos servidores. “Desde o ano passado, o governo já rebaixou os Pagamentos de Pequeno Valor, mesma medida que foi apresentada no Rio [PL 2.249, que propõe baixar de 40 para 15 salários mínimos o limite de pagamentos imediatos a credores. Acima desse montante a dívida passa a ser paga por precatório, um processo muito mais demorado]. O governo aqui já foi um dos primeiros a deixar de pagar a dívida com a União, aumentou o ICMS no ano passado, fez vários movimentos usando nós, servidores públicos, como justificativa para a sociedade, dizendo que tinha que fazer todos esses movimentos porque era preciso pagar os servidores. E aí o que acontece? Quinze dias depois de aprovadas algumas dessas medidas o governo anuncia que aquilo não era suficiente”, indigna-se. Em resposta a essas medidas, os servidores do estado fizeram uma greve unificada no ano passado, e neste ano, os professores também pararam por 54 dias para protestar contra o parcelamento. O movimento ganhou a adesão dos estudantes, que ocuparam cerca de 200 escolas em apoio aos educadores. Nesta sexta-feira, os profissionais da educação do estado realizam uma nova assembleia para decidirem os rumos do movimento diante da continuidade do parcelamento de salários e da incerteza de recebimento do 13º. De acordo com Solange, várias categorias estão intensificando as mobilizações.
Para Dorotea Frota, combater o pacote no Rio é uma questão de evitar que as medidas sejam colocadas em prática também em estados como o Rio Grande do Sul. “O servidor em nenhum momento foi chamado para a demonstração de contas do estado, não há transparência. Nós estamos sendo tomados agora de assalto, e tendo que pagar por uma crise que não criamos”, critica. E alerta:“Se passar por aqui já era. Então, não podemos esmorecer. Há uma onda de insatisfação de servidores, da população, porque cada vez mais você vai sofrendo a perda de direitos sociais. Então realmente a tendência é as pessoas continuarem a ir para as ruas, para não dar brecha para outros estados”.