Um de seus segmentos, a chamada “classe trabalhadora branca”, foi amplamente anunciado, com algum acerto mais muito exagero, como uma base fundamental do eleitorado de Donald Trump.
O populista de direita teria explorado a angústia e a insegurança desse grupo diante dos efeitos perversos da globalização. A decepção da White working class com o Partido Democrata teria esvaziado Hilary Clinton e, até, levado votos a Trump.
Comentarei outros livros em outros artigos. Aqui resumimos argumentos do estudo de Tamara Draut - Sleeping Giant: How the New Working Class Will Transform America (ed. Doubleday, 2016). A autora é vice-presidente de Demos, um think tank progressista sediado em New York. Ela tenta responder ao mistério do suposto “desaparecimento”da classe trabalhadora e procura mostrar os sinais que mostrariam seu novo despertar, suas lutas, suas novas formas de organização.
Draut afirma, em síntese, que a classe trabalhadora norte-americana não ”morreu” nem se dissolveu numa hipotética classe média. É apenas diferente do que era. E essa diferença tem consequências muito importantes para sua falta de visibilidade e para a perda de protagonismo politico. Resumo a seguir apenas alguns de seus argumentos, com evidente injustiça para a riqueza de temas do livro. Serei por vezes repetitivo, desculpem-me o estilo. A intenção é apenas chamar atenção para aspectos que iluminem o fenômeno retratado – o caso americano – mas também sugiram ilações para o caso brasileiro.
Comecemos lembrando que, em 1980, 25% da força de trabalho norte-americana trabalhava na manufatura. Hoje, essa cifra caiu para perto de 13%. E a maior parte da FT (da manufatura ou não) começou a ser classificada, cada vez mais, de outro modo – principalmente como ”fornecedores de serviço”, graças a diversos expedientes de flexibilização dos contratos e de descaracterização dos vínculos trabalhistas.
A classe trabalhadora é hoje também mais diversificada do ponto de vista étnico: Afro-americanos(13%), Latinos (20%), e asiático-americanos (4%).
As ocupações mais numerosas estão fora das fábricas: vendedores do varejo, caixas, trabalhadores de restaurantes e fastfood, pessoal de portaria, zeladoria e limpeza, etc.
Esta é uma sociedade do conhecimento? - pergunta ela em tom de questionamento. Sim, em parte, mas isso não se reflete tão claramente na estrutura ocupacional, como por vezes parecem sugerir as analises novidadeiras:
“Durante décadas nos vendem a ideia de que a chave da prosperidade da nação seria um crescente exército de trabalhadores do conhecimento, inovando e em parques tecnológicos. Colunas e mais colunas escritas por gente como Thomas Friedman e David Brooks argumentam que o futuro de nossa econômica reside em cultivar habilidades como a solução criativa de problemas e o pensamento crítico, com especial atenção para áreas como a ciência, a tecnologia e a engenharia”
Contudo, diz a autora, várias vezes, a massa da nova classe trabalhadora concentra-se cada vez mais em quatro setores: varejo e alimentação, trabalhos manuais de reparo, manutenção e instalação, escritórios, cuidados pessoais. Algo que está, pelo menos, à margem daquele universo retratado pelos colunistas.
Flexibilização: trabalho precário e mal pago
E grande parte desses novos trabalhadores está conectada cada vez mais numa rede complicada de fornecedores de serviços “independentes“ e subcontratados, agencias de temporários, sistemas de franquias, todas elas formas de contratar que não se enquadram nas leis trabalhistas existentes, o que os torna cada vez mais precários e vulneráveis.
De fato, quando pensamos na longa marcha da classe trabalhadora, “civilizando o capital” e arrancando regulações, leis, políticas públicas, percebemos mais claramente que a “flexibilização dos contratos” é o meio através do qual o capital tenta escapar desses limites civilizadores e recuperar o moinho satânico do livre-mercado. Nesse sentido, poderíamos dizer que as “flexibilizações” são a vingança, o contra-ataque dos capitalistas ultraliberais em resposta aos avanços dos reformistas.
Alguns desses setores do proletariado cresceram enormemente. Vejamos por exemplo o segmento dos serviços de alimentação (incluindo o famigerado fastfood). Esse crescimento está muito ligado a uma mudança de hábitos e de ritmo de vida. Em 1970, a família americana média tinha este perfil: daquilo que gastava em comida, 25% ia para alimentação fora de casa. Isso mudou para 42% no começo do novo milênio.
Por outro lado, um percentual cada vez maior de indivíduos necessita do Food Stamp (ajuda federal instituída durante a grande depressão nos anos 1930) para comprar alimentos. Guardadas as muitas diferenças, uma espécie de Bolsa-Família ou Fome Zero norte-americano. Em 2014, nada menos que 46 milhões usavam o Food Stamp para cobrir seus gastos de “mercearia”. O programa tinha sido desativado nos anos 1960 – e retomado nos anos 1970, quando começou a grande virada da desigualdade na sociedade norte-americana.
E cada vez mais os recebedores do Food Stamp são gente que trabalha, em tempo parcial ou integral, aquilo que consegue arrumar. Uma parte nada desprezível dos trabalhadores em fast food e empresas comerciais gigantes, como a Walmart, por exemplo, precisa do Food Stamp para sobreviver. A rigor, o subsídio federal (via Food Stamp, Medicare e outros programas sociais) contribuiu para completar o salário que esses trabalhadores recebem da empresa. É o “salário indireto pago pelo contribuinte para subsidiar a “competitividade” dessa empresa “moderna.” Uma cadeia de fastfood teve a cara de pau de criar um site para “educar” seus funcionários (ou terceirizados) para que fizessem orçamentos “inteligentes”. Uma das dicas era se candidatar ao Food Stamp, para completar a renda! A outra, cultivar bons hábitos alimentares para evitar gastos com saúde: e recomendava evitar... fastfood! Essa mesma cadeia financiava campanhas políticas que diziam que recebedores de Food Stamp eram aproveitadores, vagabundos “encostados no governo”.
Fragmentar, dividir, dominar
A fragmentação e descaracterização da classe trabalhadora não acontece “naturalmente”. É criada. Geralmente associamos o neoliberalismo com politicas macroeconômicas como a privatização e a desregulamentacão do comércio (nacional e internacional). Está certo. Mas uma parte da desregulamentação é um resultado combinada do que ocorre no nível macro, predominantemente protagonizado pela esfera estatal (legislação, normas), e do nível micro em que se combinam esses instrumentos políticos (legislação), alternados com a ação dos empresários. Estes desbaratam regras e resistências no mercado de trabalho, com a reengenharia das empresas e a constituição de cadeias “colaborativas “ de subcontratados e a flexibilização dos contratos de trabalho, via expedientes como contratação de trabalhadores como pessoas jurídicas, agências de temporários, “cooperativas de trabalho, franquias, etc.
Draut exemplifica:
O pessoal de São Bernardo do Campo talvez devesse olhar assim para a Volkswagen dos anos 1970 e como ela “evoluiu”.
Essa perda de direitos e benefícios se efetiva por uma série de políticas com as quais se fantasia o trabalhador como “contratado independente”, prestador de serviço, liberando a empresa dos benefícios, dos impostos e taxas ligados à folha de pagamento, bem como da obediência a normas trabalhistas que regulam coisas como salário mínimo e piso, jornada e hora-extra, segurança, e assim por diante.
Declínio de sindicatos e movimentos trabalhistas
Tudo isso se associa com outro fenômeno, que é ao mesmo tempo fator causal aditivo e, em seguida, consequência, em circulo vicioso de degradação não apenas do nível de vida e da segurança, mas, também da capacidade política de resistência: a des-sindicalização, a fragmentação dos contratos e, portanto, da negociação, não mais coletiva, cada vez mais individual. Os sindicatos vêem sua base escorrer entre os dedos.
A taxa de sindicalização nos EUA nunca foi especialmente alta. Mas desabou nas últimas décadas. Em 2014, era de apenas 7% no setor privado, perto de 7,3 milhões de trabalhadores – um percentual que era de mais de 30% no meio dos anos 1950 e 20% mesmo nos anos 1980.
Para ‘ajudar’ o enfraquecimento dos sindicatos ocasionado pela fragmentação da classe, as empresas passaram a investir cada vez mais na contração de serviços especializados em “desbaratar”sindicatos e evitar criação de sindicatos, sua penetração nas empresas. Desenvolveram-se escritórios e equipes especializadas em conseguir isso das mais diferentes maneiras, incluindo as mais abjetas. Essa atividade – a chamada union-avoidance - virou uma verdadeira indústria. Nos anos 1960 havia uma centena de empresas desse tipo, as desbaratadoras de sindicatos – no meio dos 1980 já eram um milhar.
Essa ofensiva anti-sindicato se combinava com a burocratização e direitização das entidades trabalhistas, outro fenômeno muito forte nos Estados Unidos, quase uma marca do país. E isso se somou com a exclusão, histórica e reiterada, de negros e imigrantes. A racialização do conflito de classe como ferramenta de dominação.
Negros eram excluídos da legislação favorável aos trabalhadores do New Deal (anos 1930), por exemplo. A legislação sobre sindicalização, previdência social e direitos (como salário mínimo, p.ex.) era explicitamente negada, pela lei, a dois setores predominantemente negros: o trabalhador doméstico e o trabalhador agrícola. A lei não tinha cor, mas sua aplicação, na prática, era branca. Coisa similar, por outras vias, acontecia com a legislação e normas sobre acesso a crédito para casa própria e acesso a ensino superior. Ira Katznelson certa vez contou essa estória em um livro que comentaremos em outro artigo – When Affirmative Action Was White: An Untold History Of Racial Inequality In Twentieth-Century America. 2005, ed. W.W. Norton.
As restrições étnicas diminuíram com os programas de direitos civis dos anos 1960, mas não acabaram com muitos dos efeitos práticos da segregação.
Agora, aos negros, somam-se os latinos como os trabalhadores sem reconhecimento e sem direitos:
“Em algumas das maiores cidades americanas, imigrantes sem documentação batalham em nichos da economia em que o roubo de salários é crescente, pagamento abaixo do mínimo é usual, e trabalho abusivo e ambiente degradante são generalizados. Em cidades como Los Angeles, New York e San Francisco, o trabalho de imigrantes torna viáveis as muitas conveniências desejadas pela elite profissional afluente: manicures baratas, motoristas, entregadores de comida, cuidadores de crianças. E em todo o país, para americanos de todos os extratos sócio-econômicos, as safras da nação são colhidas majoritariamente por imigrantes.
Ironia número um: a política norte-americana de comércio, que envenena a sobrevivência de muitas famílias trabalhadoras do país, é também um fator determinante da imigração mexicana para os Estados Unidos.
No que diz respeito a imigrantes, aliás, uma ironia tétrica se junta a essa:
Ou seja, Hilary Clinton pede aos latinos que votem nela, com a perspectiva de, talvez, ter algum tratamento mais humano. Mas esse voto também autoriza Hilary a fazer aquilo que mais comprovou estar pronta para fazer: criar problemas nos países dos quais os imigrantes saíram (mas seus parentes seguem morando...). Vote em mim, quem sabe você não seja expulso. Em troca, dê-me o poder de bombardear sua pátria, sabotar o governo do seu país, assassinar suas lideranças.
Mais irônico ainda é que a segregação é bi-partidária:
Desindustrialização e preconceito de classe
Aquilo que há muito tempo se chama de ”desindustrialização da América” contribuiu decisivamente para uma certa ”invisibilidade” da classe trabalhadora, a percepção de que havia “desaparecido”:
“Quando as grandes fábricas norte-americanas eram fechadas e esvaziadas, algumas de nossas maiores cidades ganhavam áridas extensões de terra desolada. Aquilo que um dia simbolizava produtividade e engenho tornar-se-ia uma reminiscência anacrônica da América blue-collar, ou destinada à decadência ou convertida em caros lofts para uma nova e ascendente classe de profissionais”
Algumas cidades foram particularmente atingidas. Entre 1972 e 1982, N.York perdeu 30% de seus empregos fabris, Detroit perdeu 40% e Chicago nada menos do que 57%. Uma devastação.
Para a população negra foi particularmente dolorosa a “transição” para essa nova ”sociedade do conhecimento” mesclada, de fato, com uma onda de empregos precários, vulneráveis e mal pagos. Em 1970, mais de 70% dos trabalhadores negros tinham empregos manuais na manufatura; em 1987, isso baixava para 27%.
Nesse cenário de destruição de empregos, algumas corporações, como dissemos, sugeriam que seus funcionários se candidatassem ao “bolsa família”do Food Stamp para completar salários baixos. Ao mesmo tempo, porém, apoiavam políticos e campanhas políticas que atacavam esses programas sociais como atrativos para preguiçosos e aproveitadores.
Draut mostra, porém, que 40% das famílias que usavam o Food Stampo tinham pelo menos um dos adultos trabalhando – os outros eram crianças, idosos, deficientes de todo tipo. Simplesmente metade dos trabalhadores do setor de aimentaçao e dos cuidadores (home care) dependiam do Food Stamp para suplementar seus magros salários!
Mesmo assim, de acordo com muitos republicanos, o uso do Food Stamp demonstrava uma “falha moral”. Os brasileiros conhecem bem essse discurso. Mitt Romney ficou ainda mais famoso como plutocrata e predador cínico quando declaram, na campanha presidencial de 2012, que 47% dos americanos eram pessoas que desprezava, aqueles que acreditam que sáo vítimas.. que acreditam que têm direitos a cuidados de saúde, comida, casa, a tudo que podem imaginar”
Discursos como esses tinham eco em parcelas da população, que verbalizava coisas como estas: “Claro, não quero que os impostos que pago sejam destinados a viciados que se aproveitam do sistema”. E exigem “critérios” e “testes seletivos”para filtrar esses aproveitadores. Mas... não exigem testes de drogas para benefícios públicos que vão para pessoas mais aquinhoadas, como as deduções fiscais para pagamento de juros de hipotecas, por exemplo. Nem para incorporadores de imóveis que utilizam grandes abatimentos de impostos. Não há teste de drogas para pais de classe média que reivindicam créditos e deduções para contratação de cuidados para seus filhos. Provavelmente ninguém pensaria em tais “critérios” para pessoas como essas. Draut sintetiza a razão de tal visão seletiva: existem uma premissa implícita de que elas são melhores, mais responsáveis e cumpridoras das normas, pelo simples fato de serem “de cima”. Portanto, merecem tais benefícios por definição.
A classe trabalhadora vista de fora. Ou de cima.
Um outro lado da “invisibilidade” da classe trabalhadora, ou de seu suposto “desaparecimento”, é o tratamento a ela conferido pela mídia. Exemplo:
“Tome por exemplo o Washington Post. Nos primeiros anos da Grande Recessão, o Post não tinha nenhum artigo sobre como os despejos por falta de pagamento atingiam principalmente os negros e latinos. Contudo, o jornal considerou muito relevante – relevante para primeira página – como alguns desses processos estavam atingindo proprietários em condomínios de Silver Springs, um afluente subúrbio de Washington D.C. e como compradores de casas de milhões de dólares estavam enfrentando esses processos”
Drauft destaca a importância desse pequeno exemplo, já que o Washington Post tem papel relevante na chamada “agenda-setting”, a definição dos temas no debate público. É o jornal de referencia para as elites políticas, diz ela. É a leitura diária para quem quer que trabalhe no Congresso ou procure influenciar o que ocorre em seus corredores.
Draut menciona ainda outro aspecto que estimula a baixa visibilidade dos temas relativos à classe trabalhadora: a origem das elites culturais, dos políticos e de seus assessores, em geral bem distantes desses segmentos populares. E tem mais: isso também será excluído dos temas privilegiados pelos financiadores de campanha. Afinal, cerca de 0,0011% da população, diz ela, controla essas mensagens, controlando os fundos que as financiam.
Dada essa invisibilidade planejada da CT e de seus problemas, não surpreende que quando se fale em alguma “soluçao” ela venha sob a forma do embuste.
Quando Obama venceu sua primeira eleição, ele e alguns de seus porta-vozes insinuavam que estava por vir um novo New Deal, para retomar a esperança que um dia Roosevelt utilizou como alavanca para transformar o pais e retirá-lo da paralisia da depressão. Curiosamente, agora, alguns jornalistas dizem algo similar com relacão aos projetos de Trump para atender às angustias da white working class que andou bajulando: um New Deal.
Mas, tanto no governo Obama quanto nas novas medidas anunciadas por Trump nada de similar ao New Deal aparece. Nenhum aperfeiçoamento ou ampliação da seguridade social, nada de planos de empregos públicos e frentes de trabalho para recuperar a infraestrutura e recuperar a renda dos trabalhadores. Nenhuma medida que reforme a democracia no local de trabalho, para contrabalançar o poder dos executivos.
Draut conclui que seria difícil algo assim ocorrer, a não ser que o “gigante adormecido”, a classe trabalhadora, se mexa. E indica alguns sinais de que isso está em marcha. Mas isso fica para outra estória, que fica para uma outra vez. Uma estória, como se vê, que nos ensina a pensar algo, também, sobre o gigante adormecido de um outro país...