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Diário Liberdade
Domingo, 02 Abril 2017 12:18 Última modificação em Quarta, 05 Abril 2017 20:46

A verdadeira barbárie Destaque

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/ Batalha de ideias / Fonte: Diário Liberdade

[Alexandre Pimenta] Isabelle Stengers, em seu No tempo das catástrofes, recupera uma noção essencial de Rosa Luxemburgo para pensarmos o hoje: a barbárie. Tal noção não se refere apenas à odiosa tendência à guerra perpétua do capitalismo em sua fase imperialista, que, por si só, tem como horizonte a desolação de uma nova Roma a ruir. Isso não a diferenciaria de um humanista qualquer. A barbárie, para Rosa, diz respeito diretamente à incapacidade das classes revolucionárias de imporem fim ao caos imanente à ordem do capital, prolongando-a assim ao infinito. “Milhões de proletários de todas as línguas caem no campo da vergonha, assassinam seus irmãos, rasgam a própria carne com um canto de escravos nos lábios”. Eis a imagem da verdadeira barbárie.

Não é à toa que o texto citado por Stengers tem como título e tema principal “A crise da socialdemocracia”, de 1915. Ou seja, a crise, a capitulação, a recusa em aprender com os erros e derrotas, da alternativa ao “progresso” capitalista: o socialismo. Esse limbo tenebroso, da catástrofe que ameaça não findar com a concomitante insuficiência do novo para se firmar, foi também notado e enfatizado por muitos outros revolucionários, como Engels, Gramsci e Lenin. Este último, principalmente, colocou como central a tarefa a construção de um instrumento de sistematização das experiências das lutas populares que conseguisse forjar uma autonomia do proletariado no plano da luta de classes política e ideológica: o partido (à época, socialdemocrata). Tal elemento, a serviço das massas, seria imprescindível para a passagem de tal limbo, já que a crise dos de cima e a dos de baixo não seria condição suficiente para criar uma nova sociedade. O Diário Liberdade recentemente publicou um trecho preciso d’A Comemoração do Primeiro de Maio pelo Proletariado Revolucionário, de 1913, onde Lenin diz: “Nem a opressão dos de baixo, nem a crise dos de cima, são suficientes para produzir a revolução — a única coisa que produzirão será a putrefação do país — se o referido país não possuir uma classe revolucionária capaz de transformar o estado passivo de opressão em estado ativo de cólera e de insurreição”.

Tais lições permanecem extremamente atuais, mesmo que possamos depurá-las depois de passado um século de luta de classes – removendo seus ranços teleológicos e o que Stengers chama de "palavras de ordem triunfalistas encenando os fins da humanidade", por exemplo. Apesar de o caminhar sangrento do imperialismo necessitar sempre de ser objeto de espanto e mobilização, o mais preocupante deve ser a situação daqueles que poderiam dar uma resposta política à altura. Ora, o próprio imperialismo é uma máquina de gerar organismos transnacionais, resoluções e projeções que anunciam e planejam o caos mais ou menos administrável. Afinal, precisa de aparatos que ponham as coisas para funcionar da única alternativa (do) possível: a mais lucrativa. Não é sob essa dinâmica que se encontrará saída, mas no lado de cá – na crise dos de baixo, onde habita outra alternativa, aquela além do possível dado hoje.

Enxergar como verdadeira barbárie as falhas nos processos de aprendizagem e acúmulo das classes dominadas em sua luta, suas derrotas que abrem espaço para o inimigo retirar o que sobrou de sua moral e sua prática, pode nos levar a um fatalismo maior ainda, de fato. Afinal, pior que a catástrofe em si é a sensação de desaparecimento de seu antídoto. No entanto, esse é o encontro em que efetivamente nos defrontamos com o imenso trabalho a ser feito. Imenso do tamanho da crise do proletariado e sua vanguarda. Imenso, porém incontornável.

O texto de 1915 de Rosa foi escrito na prisão, enquanto proletários eram lançados na primeira grande guerra imperialista com o auxílio da socialdemocracia alemã em decadência. Trabalhadores de vários outros países também abraçavam o nacionalismo, o militarismo, e matavam seus companheiros de classe numa disputa de nações burguesas, em vez de se unirem para combater a sociedade que os explorava. A barbárie estava ali e era preciso encará-la, em todas as suas dimensões. “Na guerra mundial atual o proletariado caiu mais baixo que nunca. Isto é uma desgraça para toda a humanidade. Mas seria o fim do socialismo apenas se o proletariado internacional se recusasse a avaliar a profundidade de sua queda e a tirar os ensinamentos que ela traz”.

A seriedade dessa tarefa, a de resolver o incontornável, pode parecer óbvia, mas precisou ser repetida milhares de vezes pelos dirigentes em questão. Isso porque ilusões provindas da ideologia dominante se proliferam em qualquer organização revolucionária. Hoje, no entanto, já não podemos evocar (nem garantir) tal tarefa com a justificativa de o proletariado ser uma espécie de Messias da História. Mas sim porque ele é empurrado a tal pelas próprias estruturas e tendências desse modo de produção. E caso não o faça, não haverá nenhuma astúcia da razão na esquina para salvá-lo.

Assim, os procedimentos de autocrítica, no seio da verdadeira barbárie, vão muito além de uma necessidade formal. Estes se tornam vitais. “A autocrítica implacável não é apenas um direito vital para a classe operária, é para ela também o dever supremo”, diz Rosa no mesmo texto.

No mundo atual, após a miragem do fim da história vir abaixo com a crise global, o vazio da posição revolucionária e sua teoria, derrotada e quase completamente soterrada ao final do século XX, tem sido substituída por supostas alternativas de vertentes fascistas e suas já conhecidas construções de bodes expiatórios. Prometem que da automutilação do povo surgirá a dita retomada do crescimento, como nos pacotes de austeridade; ou que do extermínio dos não semelhantes virá a ordem, como no racismo/xenofobia; ou ainda que do egoísmo selvagem se poderá fugir do destino da grande massa, como na nova ethos das relações de trabalho ultraflexíveis. São as facetas da verdadeira barbárie renovada. "No aspecto político o imperialismo é, em geral, uma tendência para a violência e apara a reação" dizia Lenin, em seu livro Imperialismo. Tal jogo mortífero é o que resta se a crise não se reverte em crise revolucionária, e cada vez que se tenta apelar, como "filisteus assustados" (Lenin), para a tal democracia parlamentar, maiores elementos do povo, desiludidos, são engolidos por esse jogo.

Ao mesmo tempo em que se radicaliza a verdadeira barbárie hoje, abre-se uma brecha para combatê-la também radicalmente, caso não procuremos contornar as tarefas centrais. É uma espécie de oportunidade que os revolucionários russos viram com o estourar da primeira grande guerra. Repetir um gesto daquela ordem talvez seja a única chance para tornarmos a palavra amanhã em algo menos perturbador.

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