Desde o fim dos anos 1970, a reestruturação do capitalismo, ora em risco, envolveu mudanças profundas no modo de operação das empresas, na integração dos mercados e, sobretudo, nas relações entre o poder da finança e a soberania do Estado.
O verdadeiro sentido da globalização é o acirramento da concorrência entre empresas, trabalhadores e nações, inserida em uma estrutura financeira global monetariamente hierarquizada, comandada pelo poder do dólar.
Sob os auspícios do capital financeiro e de um sistema monetário internacional capenga, ocorreu a brutal centralização do controle das decisões de produção, localização e utilização dos lucros em um núcleo reduzido de grandes empresas e instituições financeiras à escala mundial. A centralização do controle impulsionou e foi impulsionada pela fragmentação espacial da produção.
A convergência entre a centralização do controle pela finança, a fragmentação espacial da produção e a centralização do capital financeiro alterou profundamente a estratégia da grande empresa.
Até os anos 1960 do século 20, a Revolução dos Gerentes estava comprometida com a obsessão pelo crescimento da grande empresa no longo prazo. Dotada de uma estrutura burocrática hierarquizada, a grande corporação abrigava com segurança os blue collars no chão de fábrica e, nos escritórios, acomodava a classe média white collar em bons empregos e saudáveis remunerações.
Naqueles tempos, a cada 12 dólares gastos na compra de máquinas ou construção de novas fábricas, apenas 1 dólar era despendido com os dividendos pagos aos acionistas. Nas décadas seguintes, a proporção começou a se inverter: mais dividendos, menos investimento nas fábricas e na contratação de trabalhadores.
A associação de interesses entre gestores e acionistas estimulou a compra das ações das próprias empresas com o propósito de valorizá-las e favorecer a distribuição de dividendos.
A isso se juntam a febre das fusões e aquisições, o planejamento tributário nos paraísos fiscais, o afogadilho das demonstrações trimestrais de resultados e as aflições das tesourarias de empresas e bancos, açoitadas com o guante da marcação a mercado.
A migração das empresas para as regiões onde prevalecem relações mais favoráveis entre produtividade, câmbio e salários desatou a “arbitragem” com os custos salariais e estimulou a flexibilização das relações de trabalho, na verdade a desqualificação e eliminação de trabalhadores impostas pelo avanço das tecnologias da informação e da automação na indústria e nos serviços. A evolução do regime do “precariato” constituiu relações trabalhistas que se desenvolvem sob as práticas da flexibilidade do horário.
A flexibilização das relações trabalhistas não só subordinou o crescimento da renda das famílias ao aumento das horas trabalhadas, como aprisionou definitivamente os gastos de consumo ao endividamento.
O circuito de formação da renda na economia como um todo começa a falhar. O desemprego e a queda dos rendimentos dos trabalhadores reduzem o gasto das empresas no pagamento de salários e também desestimulam a aquisição de meios de produção de outras empresas.
Em seu livro The Road To Recovery, o economista Andrew Smithers demonstra que, no período de 1981 a 2009, o investimento das empresas privadas calculado sobre o PIB caiu 3 pontos porcentuais nas economias desenvolvidas. O investimento deixou de apresentar o comportamento cíclico de outros tempos em que os gastos com Capex acompanhavam as flutuações da economia.
Assim, a grande empresa contemporânea move a economia capitalista na direção da concentração da riqueza e da renda. Enredada nas armadilhas da acumulação financeira e enfiada no pântano da liquidez curto-prazista, empurra a economia global para a estagnação secular, falhando com grande escândalo em sua capacidade de gerar empregos. Um curto-circuito nas cadeias de geração e de apropriação do valor.
As evidências indicam que a dinâmica da economia mundial aponta mudanças estruturais que descortinam uma nova fase, edificada entre tropelias e contradições. O ranger de dentes levou o FMI a questionar, neste mês, as ideias e princípios do neoliberalismo econômico.
O artigo “Neoliberalism: Oversold?” aborda especificamente os efeitos de duas políticas inscritas na agenda da globalização neoliberal, a remoção das restrições ao movimento de capitais (liberalização das contas de capital) e a consolidação fiscal (“austeridade” para reduzir déficits fiscais e o nível da dívida).
O estudo afirma que alguns influxos de capitais, como investimento direto estrangeiro, parecem impulsionar o crescimento no longo prazo, mas o impacto de investimentos de portfólio e, especialmente, de influxos de aplicações especulativas de curto prazo não estimula o crescimento e muito menos garante um financiamento estável do balanço de pagamentos.
A ocorrência, desde 1980, de aproximadamente 150 convulsões com influxos de capitais em mais de 50 mercados emergentes credencia a reivindicação do economista de Harvard Dani Rodrik de que esses “dificilmente são efeitos ou defeitos secundários nos fluxos de capital internacional, eles são a história principal”.
Segundo o estudo, as políticas de austeridade não só geram substanciais custos ao bem-estar pelos canais da oferta, como deprimem a demanda e o emprego. A noção de que a consolidação do orçamento pode ser expansionista (isto é, aumenta o crescimento e o emprego), por elevar a confiança do setor privado e o investimento, não se confirmou na prática.
Episódios de consolidação fiscal foram seguidos por reduções mais do que expansões no crescimento. Na média, a consolidação de 1% do PIB eleva a taxa de desemprego em 0,6% no longo prazo, e o Coeficiente de Gini (concentração de renda) em 1,5% dentro de cinco anos. O estudo conclui que os benefícios das políticas da agenda neoliberal aparentemente foram um pouco exagerados.
No aguardo de dias melhores e prestes a ser banido de quase todas as economias do globo, o neoliberalismo procura exílio em um país tropical com vista para o Atlântico.
Fonte: Carta Capital