Ao que parece, a potência caminha para o abandono dos princípios sobre os quais organizou-se a ordem internacional do pós-guerra. Temas sensíveis como direitos humanos, garantia da paz e valores “democráticos”, a partir dos quais justificou-se, nos últimos 70 anos, a existência das organizações internacionais e, mais propriamente, do sistema das Nações Unidas, vêm sendo desafiados pela nova orientação do presidente e sua equipe.
Uma análise, ainda que breve, deste um ano e meio de governo Trump, deve partir das razões que o conduziram ao cargo. É sabido que parte de seu desempenho eleitoral deve-se à rejeição, por quase metade do eleitorado estadunidense, dos resultados da chamada “globalização”. A expansão financeira veio combinada à descentralização industrial, levando as indústrias a instalarem-se em regiões onde a força de trabalho é menos custosa. O resultado disso é a transformação de cidades que foram, no passado, grandes e pujantes centros industriais, em cidades fantasmas. A financeirização da economia dos EUA, ao mesmo tempo em que ampliou imensamente as riquezas do 1% mais rico, jogou uma parcela considerável da população do país na pobreza, no emprego precário ou, mesmo, no desalento. Junte-se a isso o imenso desprezo do cidadão médio estadunidense à ciência, aos direitos humanos e ao resto do mundo e o resultado só poderia ser a eleição de uma figura como Donald Trump, munido de um discurso simplista e xenófobo, em que o jargão “America First” sai do plano meramente discursivo e assume contornos programáticos.
Porém, em apenas um ano e meio, nem o mais ousado dos governos poderia alcançar o “sucesso” de Trump em reorientar a política estadunidense rumo ao isolamento. A verdade é que, sob os polidos governos Democratas, com seu brilho intelectualizado e suas boas maneiras – reservadas, aliás, às reuniões do G7, nunca frente aos mais fracos -, a estratégia dos EUA de abertura de múltiplas frentes de conflito já vinha sendo colocada em prática. Trump assumiu o leme do porta-aviões já em plena rota de colisão com o mundo. Os EUA já chafurdavam no atoleiro – que eles mesmos criaram – das guerras do Oriente Médio, do Afeganistão, do Iraque, da Síria e da Líbia. O Departamento de Estado já financiava as desestabilizações nas fronteiras russas e ascensão dos nazistas na Ucrânia. O próprio governo Obama já manobrava estratégias de desestabilização na América Latina e fazia ameaças à Venezuela. Hillary Clinton, a candidata que chegava a apresentar-se como “feminista” (para espanto das feministas do mundo) já traçava um roteiro de guerra com a Rússia, apresentando-se com uma retórica de guerra explícita.
Trump, porém, não tem a finesse dos democratas e tem conseguido colecionar adversários dentro do seu próprio grupo de aliados. Coloca em risco, com suas atitudes pouco “amistosas” em relação aos mais fiéis aliados do capitalismo estadunidense – o capitalismo europeu do pós-guerra -, a aliança que sustentou sua ascensão como principal potência do mundo contemporâneo. A “tríade”, que como bem caracterizou Samir Amin, englobava EUA, Japão e Europa, controlou até recentemente a expansão do capital financeiro, mantendo sob seu domínio a maior parte dos ativos mundiais. Nas duas últimas décadas, com a acelerada mudança do eixo para a Ásia, sob a liderança chinesa, a força da tríade tem se reduzido. Acordos comerciais e tratados de cooperação com a China vinham garantindo à Europa e aos EUA a obtenção de vantagens, mesmo diante do crescimento exponencial do gigante asiático. A política dúbia dos democratas tratara, até aqui, de reduzir possíveis arestas com a China e garantir vantagens financeiras para o centro do sistema. Ao mesmo tempo, delineava-se uma estratégia de cerco e isolamento da Rússia, de maneira a enfraquecer sua posição relativa e dificultar a formação de um forte arco geoestratégico euroasiático.
Mas Trump conseguiu, nesta semana, dar início a uma guerra comercial com a China. Ao mesmo tempo, levou a reunião do G7 ao fracasso, parecendo querer empurrar a Europa para fora da órbita de aliados dos EUA. O “cerco à Rússia” acabou favorecendo uma aliança desta potência com a China, algo que os EUA procuravam evitar, com sucesso, desde os anos 1970. O dinamismo asiático hoje contrasta com a crise econômica euro-americana e torna-se cada dia mais evidente o deslocamento do eixo dinâmico da economia mundial para a Ásia.
Na coleção de medidas com potencial explosivo da “era Trump”, para além da recém-inaugurada guerra comercial com a China, destacam-se as investidas do governo estadunidense contra os princípios gerais de direitos humanos, traduzidos na intensificação do discurso do xenófobo dirigido aos imigrantes, claramente voltado ao “eleitorado” branco e conservador. Ameaças de construção de um “muro” na fronteira com o México, já desde a campanha e, agora, as medidas de “tolerância zero”, onde estão determinadas a prisão de imigrantes ilegais e, como se viu em imagens chocantes nos últimos dias, a criação de campos de concentração para crianças, separadas dos pais, os quais estão sendo enviados aos presídios federais. Na esteira da indignada reação mundial à crueldade explícita, Nikki Haley, a embaixadora dos EUA na ONU e “estrela” do neoconservadorismo cristão, anunciou, em conjunto com o secretário de Estado, Mike Pompeo, a retirada do país do Conselho de Direitos Humanos da ONU (CDH). Em seu pronunciamento, a dupla critica os posicionamentos do conselho em relação aos crimes de guerra de Israel. Haley diz, textualmente, que os EUA não podem “continuar fazendo parte de uma organização hipócrita, que se preocupa unicamente com seus próprios interesses e se esquiva dos direitos humanos”. Para a representante dos EUA, o CDH faz críticas injustas a Israel.
Sim, os neoconservadores estadunidenses consideram injustas as críticas dirigidas a Israel por assassinar manifestantes desarmados, prender crianças e adolescentes e destruir moradias de palestinos. Os EUA sempre defenderam as ações desproporcionais de Israel, mas agora, em que o curioso fenômeno político do cristianismo-sionista ocupa o centro do poder estadunidense, parece que suas velhas boas maneiras e o tradicional cinismo tornaram-se desnecessários. A saída do CDH vem logo após outra medida de claro enfrentamento com o status quo da ordem internacional: a mudança da embaixada dos EUA em Israel para Jerusalém.
Vinha sendo ponto pacífico, desde que se debate uma solução negociada para a região, a defesa de dois Estados, onde Jerusalém, como cidade sagrada das três grandes religiões monoteístas, seria respeitada como tal. Esta era a posição majoritária no âmbito das Nações Unidas e, apesar de apoiar incondicionalmente Israel, os EUA a respeitava, como parte de seu esforço de manutenção das aparências e legitimação do discurso democrático. No momento em que Trump acatou as pressões dos cristãos-sionistas encastelados em seu governo e mudou a sede da embaixada estadunidense para Israel, tomou um caminho perigoso: o do não reconhecimento da solução de dois Estados. Os protestos que se seguiram, por parte dos palestinos, a reação violenta de Israel, como vários assassinatos e prisões, e a subsequente saída dos EUA do CDH, caracterizam um verdadeiro “cavalo de pau” na orientação da política externa estadunidense.
Na lista de “inflexões” da política externa de Trump, não pode faltar a denúncia do acordo nuclear com o Irã, numa clara sinalização ao mundo de sua pouca ou nenhuma disposição em caminhar para uma distensão nas relações com a nação persa. Pelo contrário, o neoconservadorismo cristão-sionista parece apostar na escalada das tensões, para a qual contribui sua ação recente na Síria (bombardeios após notícias falsas de ataques com armas químicas), seu suporte indiscriminado aos agrupamentos terroristas que atuam na região e ao Estado terrorista da Arábia Saudita, que lidera uma “coalizão” que busca submeter o levante xiita no Iêmen (com requintes de crueldade, conforme já exploramos em outra ocasião) e o suporte à política de intensificação das ameaças de Israel ao Líbano e ao Hezbollah.
No começo de sua gestão, Trump deu algumas declarações criticando a OTAN, apontando que consumia excessivos recursos dos EUA e poucos dos demais aliados. Contudo, passados alguns meses de sua posse, o presidente estadunidense esqueceu-se de suas críticas. Ao contrário, intensificam-se os exercícios militares, especialmente na Líbia, região arrasada pelas tropas da OTAN, e busca-se estender seu rol de aliados. Conforme já apontamos em outro artigo, a Colômbia anunciou seu processo de adesão à OTAN, ao mesmo tempo em que a Argentina, “parceiro” da organização desde 1997, retoma a prática de exercícios militares conjuntos.
Para a América Latina, a política da “América First” traduz-se, para além das investidas de ampliação da OTAN para este território, o aprofundamento da guerra híbrida, já praticada pelos governos do Partido Democrata, com o apoio a grupos de desestabilização na Venezuela e Nicarágua, sanções econômicas e ameaças à Venezuela; retomada do controle da OEA, imprimindo-lhe novamente o velho perfil de “linha de transmissão” das orientações dos EUA; revisão dos acordos anteriores com Cuba; busca de acordos para o estabelecimento de novas bases militares (inclusive no Brasil) e investidas sobre as estatais latinoamericanas, como a Petrobrás, no Brasil e, a médio prazo, como já se delineia, o gás Boliviano e a água doce, presente em abundância em grande parte da América do Sul. Claro está que a ascensão da Ásia reacendeu, para os EUA, a necessidade de controle do território mais próximo, a partir do qual projeta sua influência sobre o mundo.
Concomitantemente, sem poder negar a ascensão do poder emanado da China, Trump investe em uma política de distensão com a Coreia do Norte, interpretada, por muitos analistas, como uma vitória da diplomacia chinesa, e não exatamente estadunidense. De todo modo, até aqui Trump colhe os louros de ser o primeiro presidente a efetivamente realizar um acordo com a RPDC, desde o cessar fogo de 1953. Aparentemente contraditória – em razão da recente renúncia aos acordos nucleares firmados com o Irã -, a política de distensão dos EUA com a RPDC relaciona-se muito mais com o poder da potência asiática e a necessidade, para o governo dos EUA, de aplacar as tensões na região. De todo modo, os EUA não deixaram de provocar a China em outros temas, como a questão dos direitos reivindicados pelos chineses nos Mares do Sul, onde os EUA seguem realizando manobras e ainda, como já destacamos acima, a recente intensificação da guerra comercial.
Mesmo diante da Europa, sua maior aliada, a política de Trump caminha, aparentemente, para uma mudança radical. A cúpula do G7 mostrou ao mundo o desdém do presidente dos EUA por seus mais ricos aliados, colocando em dúvida a durabilidade da aliança que perdura desde o pós-segunda guerra e abrindo à aliança sino-russa a possibilidade de disputar o espaço europeu na esteira da iniciativa denominada “um cinturão, uma rota”, lançada pelos chineses e que pretende chegar ao Velho Mundo. Ainda que os vínculos do capitalismo europeu com os EUA sejam fortes e, até aqui, a União Europeia venha aceitando as condições impostas pelos estadunidenses, é fato que o velho “atlantismo” europeu perdeu força com a saída da Inglaterra (principal aliada dos EUA) do bloco. As coisas se complicaram ainda mais diante do recente episódio de taxação de produtos, que atinge diretamente as economias europeias, particularmente a Alemanha, maior economia da região, e parece delinear-se uma situação de impasse que pode levar à ruptura. Por outro lado, Trump obedece a interesses mais fortes, das corporações militares, industriais e financeiras sediadas nos EUA, e é muito provável que em breve seja impelido a “consertar” suas medidas mais atabalhoadas, como já ocorreu em relação à OTAN.
Na medida em que a representação do poder estadunidense investe contra o próprio sistema internacional, que tem até aqui servido de esteio ao controle do Ocidente sobre a ordem global, é possível que o pós-Trump inaugure uma nova etapa, em que a ONU já não poderá desempenhar o papel que lhe foi reservado em 1945 e as alianças militares, como a OTAN, se sobreponham. Se é certo que nos EUA aprofunda-se a crise orgânica – crise econômica aliada a uma crise política profunda, na qual nenhum grupo político dispõe do apoio majoritário da população- é também certo que, dadas as suas dimensões e seu poder diante do mundo, não haverá uma “queda suave”, ou decadência isolada. Caso confirmem-se as tendências demonstradas, o enfraquecimento do poder estadunidense e a ruína do sistema internacional do pós-guerra nos arrastará, a todos (e especialmente as nações periféricas), a uma situação de insegurança e instabilidade que poderá durar, ainda, muitas décadas.
* socióloga, Dra. em Geografia e membro do Conselho Consultivo do Cebrapaz
Fonte: Desacato