Deixei metade da minha vida nas minhas terras persas, e quando aterrei nesta península de acolhimento, cativante plataforma de reclamação de pão e paz para todos, pus-me a exercer o desconcertante ofício de exilado: conhecer, aprender, admirar, transmitir, revelar e denunciar, estas últimas aproveitando as aulas da Universidade, os meios de comunicação e uma dezena de livros como ‘Rubaiyat de Omar Khayyam’ (DVD edições, 2004), ‘Curdistão, o país inexistente’ (Flor del viento, 2005), ‘Iraque, Afeganistão e Irão, 40 respostas ao conflito do Próximo Oriente’ (Lengua de Trapo, 2007) e ‘O Islão sem véu’ (Bronce, 2009).
“John McCain era um herói estado-unidense, um homem de decência e honra e um amigo meu”. Assim homenageou o senador republicano o suposto “socialista” do Partido Democrata Bernie Sanders, revelando que os estado-unidenses e o mundo inteiro têm um sério problema se até a ala esquerda do Partido Democrata é tão belicista e embusteira como a ala de extrema-direita do Partido Republicano. Na realidade, a maioria das guerras dos EUA contra outras nações foram lançadas por presidentes democratas, quando os republicanos eram “isolacionistas”. O que compartilham é a ideia de que “Deus salve América” e que o resto da humanidade não são mais que Untermensch «sub-humanos» e danos colaterais dos infames interesses das elites governantes.
O sentimentalismo reaccionário pela sua morte que invadiu a imprensa impede que se reconheça McCain como um dos políticos mais sinistros das últimas décadas nos EUA, e isso diz muito dele num país com o culto da guerra, cujos presidentes são valorizados pelo número das suas agressões militares contra outras nações.
Em 1973 outorgaram a John McCain o título de “herói” quando foi entregue aos EUA pelo Vietnam numa troca de prisioneiros. Tinha sido capturado em 1967 quando o seu avião de combate, depois de realizar 23 missões de bombardeamento, foi derrubado pelo exército vietnamita, caindo no lago Truc Bach em Hanói. Foi resgatado pelo senhor On, um guarda de segurança de uma fábrica de lâmpadas [que McCain vinha bombardear]. As mesmas pessoas cujas vidas destroçou sob as suas bombas cuidaram das suas feridas e devolveram-no são e forte ao seu país.
Durante a guerra, os EUA lançaram sete milhões de toneladas de bombas, 100 000 toneladas de substâncias químicas, como o agente laranja, matando cinco milhões de vietnamitas e deixando com graves sequelas outros 3 com os efeitos do napalm. Os heróis eram pessoas como On, não um impiedoso individuo que se converterá com honras em candidato à presidência dos EUA.
O falso herói
Se a superpotência foi derrotada por aquela pequena grande nação ¿que acto heróico tinham realizado militares como McCain? Se ir matar gente desconhecida com o risco de perder a vida é heroísmo, mais heróis foram Hitler ou Gengis Kan pela quantidade de cadáveres que deixaram no seu trajecto. Mas John não era um qualquer militar, mas o filho do almirante no comando da Frota do Pacífico, John S. McCain, e para maior constrangimento tinha sido apanhado a cooperar com o inimigo vietnamita, desonrando a saga heróica: segundo o jornalista estado-unidense Douglas Valentine, três dias depois da sua captura, para além de “cantar” informações, passou segredos militares sensíveis às milícias sob o comando de Ho Chi Minh. Em 4 de Junho de 1969, um telegrama militar concluía que “Songbird is Pilot Son of Admiral” (“o pássaro cantante é o filho piloto do Almirante”), segundo o diário digital Counterpunch em 2008. Como resultado os EUA tiveram que suspender alguns bombardeamentos. Talvez isto tenha sido a única coisa positiva que este personagem fez em toda a sua vida. O redactor do New York Times, galardoado com um Pulitzer, Sydney Schanberg afirmava que John McCain e também John Kerry fizeram todo o possível para bloquear qualquer investigação dos arquivos do Pentágono sobre os prisioneiros de guerra no Vietnam.
O vilão de seis guerras
Passou de militar a político, para a partir do Congresso e depois do Senado atacar os sectores mais pobres do seu país e também o resto do mundo, utilizando as suas medalhas de “herói de guerra”.
Enquanto recebia os melhores cuidados para o cancro de que padecia, lutou contra a Lei de Cuidados de Saúde Acessíveis (Obamacare), privando 22 milhões dos seus compatriotas de acesso a cuidados sanitários mínimos, e encabeçou a campanha a favor das sanções económicas contra a Síria, que incluíam a retenção do fornecimento de medicamentos básicos para a população. As guerras que apoiou mataram centenas de milhares de pessoas e feriram milhões, que não puderam sequer receber um analgésico.
Manipulou os que lhe davam ouvidos com um discurso contra as torturas: opunha-se a essas brutalidades, dizia, se fosse a CIA a realizá-las, mas não se fosse o exército. Em 2009 Obama aceitou a proposta de McCain e recusou a reivindicação de que fossem processados os agentes da CIA implicados no escândalo das torturas (como as de Abu Ghraib e Guantánamo), por terem sido realizadas de acordo com as leis do regime de Bush; tratava-se do afogamento (waterboarding), do “muro” (golpes repetidos contra as paredes), privação de sono, nudez e encerramento em ataúde durante horas, etc. Todos sabiam que um preso torturado proporciona informação falsa para deixar de sofrer mesmo que por uns instantes, pelo que o objectivo das torturas era simplesmente pedagogia do terror por parte de uns sádicos: por isso exibem Guantánamo, e o mantêm aberto.
McCain, em defesa dos interesses da indústria militar que o seu estado natal, Arizona, alberga - como Boeing, Raytheon, Lockheed Martin ou General Dynamics -, fez a apologia da guerra tanto quanto pôde, e participou activamente em desestabilizar Líbano, Granada, Panamá, Nicarágua, Iraque, Somália, Bósnia, Kosovo, Afeganistão, Líbia, Síria, e Irão.
Alguns dos seus crimes de guerra
Em África: Sob o pretexto da “guerra contra o terror” propôs enviar tropas para o Mali, Sudão (onde a sua esposa Cindy teve importantes negócios), derramou lágrimas de crocodilo pelas “meninas sequestradas da Nigéria” até o governo deste país se submeter à chantagem “humanitária” e autorizar uma base militar dos EUA.
Jugoslávia: A sua insistência em atacar um país europeu pela “questão do Kosovo” levantou tanta suspeita que o Washington Post, a 7 de Abril de 1999, a vinculou às suas aspirações presidenciais. Apoiou os “jihadistas” do Exército de Libertação do Kosovo, “estado” que hoje alberga a segunda maior base dos EUA no mundo. Desmantelaram o último governo socialista da Europa.
Afeganistão: McCain, que seguramente sabia quem e o quê estava realmente por detrás do 11S, apoiou o bombardeamento, a invasão e a ocupação do país mais estratégico do mundo, que deixou milhões de mortos, mutilados e refugiados.
Iraque: Sabendo que Saddam Hussein não dispunha de armas de destruição massiva, conspirou, mais ainda que Bush, contra um dos países árabes mais desenvolvidos.
Encabeçou uma campanha a favor das criminosas sanções contra esta nação enquanto incitava a mais bombardeamentos das infra-estruturas do país em 1991 e em 2003, que deixaram cerca de 5 milhões de mortos e mutilados, e 14 milhões de deslocados e refugiados. Apesar de os soldados estado-unidenses também estarem caindo aos milhares, pediu a Bush o envio de mais tropas para o Iraque: 300.000 soldados e dezenas de milhares de contratados pareciam-lhe pouco. A imprensa chamou “Doutrina McCain” à política de aumentar as tropas no Iraque.
Líbia: Em 14 de Agosto de 2009, McCain reuniu-se com Kadhafi em Trípoli para lhe vender armas. Depois da reunião afirmou ter passado “uma tarde interessante com um homem interessante“. Dois anos depois, pediu a sua eliminação do poder, porque tinha “sangue estado-unidense nas mãos“: não é que não se tivesse recordado que o atentado de Lockerbie sucedera em 1988, mas sim que via maiores lucros para as empresas armamentísticas numa grande guerra. Em Abril de 2011 entrou ilegalmente na Líbia para se reunir com os veteranos “jihadistas”, organização internacional de mercenários fundada pela CIA. Propôs a Obama uma invasão terrestre do país e reconhecer um governo no exilio, composto pelos mesmos terroristas que mataram tanto Kadhafi como o próprio embaixador dos EUA, Christopher Stevens. Obama rejeitou: um país em guerra é um negócio mais rentável.
Ucrânia: com o objectivo de provocar tensão com a Rússia e sabotar qualquer política de “coexistência pacífica” com este país – o único com capacidade militar para enfrentar os EUA -, McCain participou na elaboração do golpe de estado de Fevereiro de 2014, organizado pelos neonazis, que derivou na guerra que destruiu a vida de milhões de ucranianos. Nesta linha, foi um firme defensor da integração da Geórgia e Ucrânia na NATO, apesar da reticência dos generais mais belicistas.
Síria: McCain foi o impulsionador da “retirada de Assad do poder”, desintegrar a Síria, desmantelar o terceiro estado árabe e, de caminho, servir os interesses de Israel.