De momento o que parece é que a intervenção russa marcou pontos. O que não garante de forma alguma que se esteja mais próximo de qualquer solução, quanto mais não seja porque uma das ramificações da questão poderá passar pelo que venha a suceder a Trump.
1. Quem semeia ventos colhe tempestades, insinuou o embaixador russo na ONU, Vasili Nebenzia, sobre a dramática situação dos curdos após o ataque militar da Turquia de 9 de Outubro no norte da Síria: “Nós incentivámos os curdos a terem um diálogo directo com o Governo sírio, mas eles preferiram outros protectores e agora podem ver o que sucede”. Depois, na votação do Conselho de Segurança, recusou-se a condenar a agressão militar ilegal turca contra a Síria “soberana” e apenas pediu ao agressor “máxima contenção”. Por outro lado, Donald Trump, para se defender dos que o chamam “traidor dos curdos”, disse que esses “não são anjos” e que alguns líderes do PKK são piores que o Daesh e deveria ser-lhes dado tempo para lutarem entre si para depois ir separá-los, deixando uma porta aberta para reocupar a Síria. Traidor? Não foi uma equipa da CIA e a Mossad quem capturou no Quénia o líder curdo Abdullah Öcalan e o entregou à ditadura turca em 1999?
2. Seis dias depois, - tempo suficiente para que os líderes curdos se desesperassem com a morte de uma centena de pessoas (entre elas a lapidação da dirigente Hevrin Khalaf) e a fuga espavorida de dezenas de milhares dos seus lares, abandonassem suas exigências nacionalistas -, Moscovo chegou a um acordo com Erdogan e com os presidentes da Síria, EUA e Irão para realizar patrulhas conjuntas na fronteira entre a Turquia e a Síria. Trump está tão feliz com esta solução que levantou as últimas sanções que impôs a Ancara. Com essa jogada de mestre, Moscovo conseguiu:
3. Evite um banho de sangue curdo.
4. Impedir que a Turquia ocupe território sírio e instale bases militares como tinha planeado.
5. Forçar os curdos a chegarem a um acordo com Damasco e Assad a aceitar um certo grau de autonomia curda.
6. Provocar fissuras nas forças curdas: uma facção aceitou pactuar com Damasco, outra apostou em resistir a nada menos do que o conjunto das tropas da Rússia, Turquia e Síria.
7. Exigir ao Partido da União Democrática (PYD) que renuncie ao PKK e chegue a um acordo com Ancara, como fizeram os curdos iraquianos, com os quais Erdogan tem magníficas relações, o que desmente a curdofobia do Sultão, que na opinião geral se tornou o seu modus vivendi.
8. Que as tropas sírias entrassem no norte sem disparar uma única bala.
9. Oferecer a Erdogan o fim da autonomia curda em troca de devolver a província árabe-sunita de Idlib a Damasco, que ocupou com milhares de rebeldes e “jihadistas” (com numerosos chechenos nas suas fileiras) e depois assumir o seu controlo. É um acordo magnífico para Erdogan que não quer 1) mais bombardeamentos da Rússia e da Síria contra esses grupos nos quais ele investiu milhões de euros (e servirão para um novo uso no futuro) e 2) a entrada na Turquia de outros milhares de refugiados Idlibíos aterrorizados.
10. Ressuscitar o Acordo de Adana assinado entre Ancara e Damasco em 1998, que compromete a Síria (antiga sede do PKK) a não abrigar os “terroristas” e autoriza a Turquia a entrar em solo sírio até cinco quilômetros para os perseguir. Com isso, a Rússia propõe fortalecer a segurança nas fronteiras da Síria, em vez de estabelecer uma zona-tampão, como a Turquia exigia.
11. Tranquilizar o Irão, a Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos, que declararam inaceitável a ocupação de uma região síria pela Turquia: será mais fácil, num futuro próximo, expulsar os turcos do que as tropas norte-americanas.
12. Pactuar com Erdogan a retirada gradual dos seus homens, para serem substituídos pelo exército sírio, e certamente com a aprovação de Trump (não dos EUA, o que acentua a natureza provisória desta situação).
13. Salvar a Europa da ameaça de Erdogan de enviar milhões de refugiados, como em 2015, se o tivesse castigado por matar curdos. Putin mostrou como tratar o “honrado” Erdogan, enquanto Trump chamava “tonto” ao caudilho turco.
14. Proporcionar uma saída “digna” à Turquia de um terrível pântano onde iria cair. Agora e depois de ver os seus sonhos neo-otomanos quebrados na Síria - por não ter conseguido derrubar al Assad, nem instalar uma teocracia de Irmãos Muçulmanos em Damasco, nem expandir ali a sua influência na região -, Erdogan não tem outro remédio senão suportar o presidente sírio durante mais algum tempo, engolindo sapos. Ancara, além da Síria, perdeu a oportunidade de influenciar o Sudão e a Líbia, sem ter ainda recuperado da derrota no Egipto, pelo que ganhar ao que chama “mercenários curdos pró-americanos ” era uma questão de honra para consumo interno Esse presente a Erdogan – de afastar os curdos da fronteira turca - fortalece a associação da Rússia com um parceiro da NATO sem prejudicar al Assad.
15. Melhorar ainda mais a posição da Rússia para decidir o futuro da Síria.
16. Converter-se no árbitro principal das relações turco-curdo-sírias.
17. Esta mudança ocorre porque Trump impôs a sua vontade na Casa Branca, apesar da pressão dos sectores mais agressivos do Estado Profundo (incluindo o complexo militar industrial, a AIPAC e a comunidade dos serviços de informações), por sua recusa em 1) lançar uma guerra contra o Irão e aplicar uma contenção branda à Turquia; e 2) dinamitar a Síria e o Iraque para formar um Curdistão tutelado pelos EUA, Europa, Arábia Saudita e Israel, com outra década de guerras, envolvendo além disso a Turquia e o Irão, que resistirão a esse plano macabro. Trump regressa à narrativa da CIA, que apresentava aos curdos que não há muito tratava de “terroristas” nas primeiras páginas da imprensa direitista ocidental como heróis e heroínas. Desde 2012, os curdos apoiados pelo Pentágono enfrentaram os “rebeldes e jihadistas” organizados pela CIA como carne de canhão para converter a Síria num Estado falhado. Mas Trump não é mais do que uma anomalia no poder dos EUA: não leu o livro de Lénine sobre o imperialismo. A política tradicional dos EUA impor-se-á, ou este país deixa de existir como tal.
18. Última notícia: a ofensiva contra Trump avança e pode haver “Impeachment”, especialmente agora que “ele entregou a Síria à Rússia e ao Irão”: Dissemos já que Trump é agente do Kremlin! O “Estado Profundo” também tem as suas “gargantas profundas” e pode apresentar mais provas sobre a traição do presidente. Ninguém se lembra de que Obama também permitiu que a Turquia e o Irão abortassem a autonomia curda no Iraque em 2017.
Moscovo e os curdos
Para a Rússia, as mudanças no interior de um país são assunto interno desse estado, o que não significa indiferença face aos grupos “insurgentes” dos estados que a rodeiam. Moscovo, que sofre o extremismo islâmico dentro e fora das suas fronteiras (”jihadismo” foi inventado para destruir o socialismo e a União Soviética), apesar de não ter uma “política curda”, vê os curdos como um factor de contenção a essas forças tanto na Síria como no resto da região. A carta curda também foi utilizada pelo Kremlin:
19. Em Fevereiro de 2016, em apoio às aspirações curdas sírias, é aberto em Moscovo um serviço de representação curdo e Putin convida-os para negociações sobre o futuro da Síria no âmbito de sua política de criação de influência de natureza dupla: a vertical, nas instituições estatais, e a horizontal, com a sociedade e suas entidades. Um gesto que pretendia enfraquecer o seu rival turco, além de fazer com que Damasco e Ancara dependessem da Rússia para influenciar essa minoria étnica.
20. Em Julho de 2016 há uma mudança radical nesse cenário: a tentativa de golpe de Estado contra Erdogan é possivelmente frustrado pela Rússia, e o Sultão acusa os EUA de querer derrubá-lo e atentar contra a integridade territorial da Turquia, armando os curdos sírios. Assim, os EUA apoiam os curdos afastando-se da Turquia, enquanto a Rússia recolhe um Erdogan destroçado. A partir de agora, a “autonomia curda” será considerada por Ancara “a base militar dos EUA” e os curdos como outro instrumento do imperialismo, juntamente com o “jihadismo”.
21. A Rússia começa a dar um apoio tácito às agressões militares turcas na zona curda da Síria em 2016, e em 2018 dias depois de os EUA anunciarem expandir a sua presença militar nessa região e com dois objectivos: forçar os curdos a pedir socorro a Damasco, coisa que não aconteceu, e distrair a Turquia da sua intenção de derrubar al Assad.
22. Mas, em 2017 a Rússia, de forma matizada, apoia a independência do Curdistão iraquiano, onde tem importantes negócios de petróleo. Aqui, são os EUA quem se opõe: não era a hora.
23. A Rússia defende uma autonomia cultural e administrativa limitada para os curdos sírios. Resta saber se o grosso das guerrilhas curdas, os Peshmarga (termo persa-curdo que significa “quem abraça a morte”) se dissolverão ou se converterão em unidade do exército sírio no norte.
24. A diplomacia do Kremlin, baseada em uma aplicação delicada e subtil de pragmatismo e realismo, fez com que “a Rússia se tornasse novamente grande “, além do mais a baixo custo e acompanhada pela China, impedindo que os EUA recuperem o seu curto período de reinado unilateral sobre o mundo: começou em 1991 e terminou em 2001, ano da formação da Organização de Cooperação de Xangai, liderada pela China e pela Rússia.
A aproximação entre Turquia e Síria, duas repudiadas da Europa, não significa uma mudança radical no tabuleiro: essas alianças são furtivas e tácticas, enquanto prosseguir a guerra na Síria, esse Afeganistão da Eurásia, destroçada por um conflito a três dimensões.