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Diário Liberdade
Segunda, 14 Novembro 2016 19:21 Última modificação em Domingo, 20 Novembro 2016 09:01

A ordem natural das coisas Destaque

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País: Estados Unidos / Institucional / Fonte: Abril Abril

[José Goulão] O sistema de poder mais fiscalizado, filtrado e policiado do mundo jamais se enganaria na escolha daquele que interpreta os seus interesses e exigências num determinado momento e nas circunstâncias existentes.

Não confundir sistema de poder com sistema político. Os dois universos estão normalmente em consonância, porque disso cuida a estabilidade fundamental para os magnos interesses que enformam a estrutura que comanda. Porém, quando esta não se sente confortável nem segura com os caminhos da política interna, e externa, é óbvio que se vê obrigada a recorrer ao exterior da estrutura tradicional, abrindo caminho a um outsider, tornado insider enquanto o diabo esfrega um olho.

É o caso da entronização de Donald Trump em detrimento da senhora Clinton, que tantas etapas queimou para corresponder ao que o sistema de poder actualmente exige de um presidente que se esturricou a si mesma, numa sucessão de malfeitorias com as quais o establishment tem muitas dificuldades em lidar perante a opinião pública, por muito condicionada esta seja.

As circunstâncias em que decorreu o presente episódio eleitoral nos Estados Unidos exibem o nível mais reles da política. Nada do que aconteceu tem a ver com democracia, com uma ideologia que não seja a não-ideologia, com debate de ideias ou esclarecimento da situação social.

É certo que nada de substancial poderia ser discutido, porque o sistema chegou a uma fase em que a sua própria sobrevivência, tal como ele se conhece ou funciona, já não é compatível com debate, ideias e transparência, impõe subserviência e conformismo como nunca exigiu – isto é, um poder forte e autoritário comandando um exército de desiludidos receptivos a radicais promessas de mudança e melhoria de vida, ainda que pressintam falsas.

Não é novidade que, desde meados da década de setenta do século passado, a ortodoxia neoliberal tomou conta das rédeas do capitalismo, promovendo o mercado a entidade suprema da sociedade, malignizando o Estado, exorcizando qualquer sistema de apoio e solidariedade social, libertando o trabalho de quaisquer amarras, direitos e vínculos, uma solução que temos ouvido definida na forma do slogan «liberalização do mercado laboral».

O capitalismo, para seu próprio desenvolvimento e progresso na fase de boom tecnológico que exibe o esplendor do mercado nos salões do casino financeiro em que rolam milhões de milhões virtuais, e vai tornando a economia subsidiária da especulação, precisou de cortar quaisquer amarras com o seu passado keynesianista.

Isto é, deixaram de existir condições lucrativas satisfatórias para se falsificar um qualquer «rosto humano» do capitalismo. O capitalismo necessita de ser absolutamente livre, de dispor de acesso sem peias aos recursos humanos, às matérias-primas, ao território global – isto é, exige ausência de restrições políticas, sociais, humanistas e estratégicas; e não tolera obstáculos à conquista de espaço vital, também por isso se fala tanto em globalização.

Como, ainda assim, a crise continua a miná-lo devido a resistências várias, sejam de povos ou nações, e também devido às contradições própria das rivalidades das ganâncias à solta, há muito que o capitalismo se incompatibilizou com o que resta de democracia.

O que é válido para o templo mais sagrado do capitalismo, os Estados Unidos da América, é-o igualmente para o resto do mundo, principalmente para a moribunda União Europeia, e disso falam bem as nossas experiências pessoais e institucionais.

Afinal, não é uma humilhação dos direitos dos cidadãos, e da sua liberdade de voto, o facto de um governo português ter de submeter o orçamento aprovado pelos eleitos dos portugueses ao exame com poder deliberativo de fiscais não eleitos, algures em Bruxelas, Berlim e sabe-se lá mais onde? Conseguem descortinar a democracia no meio da teia de artimanhas de bastidores onde até são possíveis acordos secretos de burla como entre o senhor Hollande e a Comissão Europeia?

Trump surge na ordem natural das coisas estabelecida pela cavalgada neoliberal para o «fim da História», porém tornada escorregadia por uma crise até agora indomável.

Na sua não-ideologia ideológica, há muito que o sistema global capitalista identificou o funcionamento dos mecanismos democráticos como o principal problema a remover. Por isso, o baixo espectáculo político dado pelas eleições norte-americanas já nem escondia a realidade da não-escolha.

Obama e Clinton, «príncipes democratas» de pura cepa, promoveram mil e uma acções de aniquilação da democracia e de expansão do espaço vital, na esteira do republicano fascistóide George W. Bush: o golpe fascista na Ucrânia; o incentivo à ressurreição dos fascismos e militarismos, arcaicos ou renovados, no Leste da Europa; o crescimento e globalização da NATO e o seu funcionamento agressivo e arbitrário, recorrendo, quando considera necessário, a grupos terroristas islâmicos como divisões operacionais; a aniquilação da União Europeia – sempre «bom aluno» de Washington – através do TTIP, do enfeudamento a rígidos e expansionistas compromissos atlantistas e da tragédia dos refugiados; o incentivo à guerra, ao militarismo e a situações de caos regional ao serviço do crescimento económico através da indústria militar e do acesso, sem restrições, às mais importantes fontes de matérias-primas e de recursos energéticos; o estado de excepção em França e a ascensão de movimentos fascistas, populistas, xenófobos e racistas através da Europa, decorrente da convergência de efeitos das guerras de expansão, do terrorismo e dos problemas criados pela vaga de refugiados; a tomada e manipulação da ONU por Washington. Tudo isto marca os tempos modernos, com as assinaturas indeléveis de Hillary Clinton e Barack Obama.

Apesar das provas dadas pela senhora Clinton, o sistema de poder escolheu Trump. Os serviços prestados pela candidata deixaram rastos incómodos, mesmo numa opinião pública ferreamente manipulada.

Donald Trump surge de novo e de fora, mas do interior do sistema de capitalista, do capitalismo «de sucesso». Diz o que a doentia sociedade da «América profunda» deseja ouvir, trabalhada pelo fascismo das seitas protestantes, pela estupidificação burilada sistematicamente pela comunicação social e pela degenerada indústria cinematográfica, educada pela violência do entretenimento e dos lobbies securitários e das armas, assustada pelos pregadores obscurantistas, aterrada pela insegurança social, física e pela falta de perspectivas, minada pelas acicatadas e artificiais contradições entre grupos sociais e étnicos mergulhados nas desigualdades.

Assim se construiu o discurso «novo» de Trump sobre a cama, há muito preparada, do descrédito das ideias políticas (a ideologia) e do nível zero da democracia. A resultante do discurso do sistema de poder capitalista, o discurso vencedor de Trump, é agora uma mensagem fascista.

Iremos confrontar-nos, a seguir, com o conteúdo prático que assumirá tal programa ainda disperso, anárquico e oportunista, elaborado para vencer num dado momento e circunstâncias.

Embora suspeite de que, necessitando de derrubar barreiras nesta ânsia de atingir o estado supremo neoliberal, em que também joga a própria sobrevivência, o capitalismo descartou de vez qualquer réstia de democracia. É a ordem natural das coisas.

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