Jackson também falou de reviver uma "coalizão arco-íris", mas apesar de ser associado com o radicalismo negro por grande parte do país, ganhou quase 50% dos delegados Democratas na convenção de Atlanta, com um apelo explícito que transcendeu a questão das raças, e invocou a questão das classes. O próprio Jackson não é líder provável do Partido Democrata, mas o modelo dele é um dos que os Democratas bem fariam se considerassem, se querem reconquistar a maior parte do país, que perderam nas eleições da semana passada.
Em grande medida, Bernie Sanders compreendeu e avaliou esse aspecto, embora, como hoje sabemos, os doadores de Wall Street/Vale do Silício, o bloco que doou dinheiro ao Comitê Nacional Democrata, assustaram-se com isso e puseram-se a operar ativamente para sabotar a campanha de Sanders. Quando afinal chegamos à eleição geral, a mensagem do partido já estava diluída e turva, em algumas disputas focada exclusivamente em questões de gênero e ataque à falta de 'adequação' de Trump, ao cargo.
Não há dúvidas de que Donald Trump fez forte apelo a racistas, homofóbicos e misóginos, e por mais que seus colegas Republicanos tenham manifestado cenográfica indignação, tampouco há dúvidas de que Trump só fez tornar explícito o que os Republicanos fazem há décadas – desde os dias de Nixon em 1968. Só trocaram o apito de chamar cachorro, por um berrante de chifre.
Mas só isso não explica o sucesso de Trump. Como escrevi em artigo anterior, "Trump phenomenon", ele se tornou a voz de número crescente de norte-americanos, que se veem com os que mais perderam por conta da globalização e do livre comércio. Nas eleições, os políticos norte-americanos dos dois partidos fingem preocupação com as questões que preocupam os cidadãos e depois convenientemente passam a ignorá-las, quando chegam ao poder. Lá chegados, imediatamente se põem a implementar políticas do mesmo Consenso de Washington que domina há 40 anos. Por isso tantos norte-americanos simplesmente pararam de votar (2016 não foi diferente: apenas 57,9% dos que podem votar e ser votados compareceram às urnas). É possível que Trump não passe de populista demagogo interesseiro, que usa as iscas e as táticas certas, mas fato é que a campanha dele foi explicitamente dirigida aos que foram marginalizados pelas políticas neoliberais dominantes nos dois partidos.
A diferença dessa vez é que, depois que o senador Bernie Sanders perdeu a indicação nas primárias, os Democratas pouco se esforçaram para reconquistar seus seguidores. Isso, em grande parte, porque a indicação do partido recaiu sobre a própria encarnação das mesmas políticas do establishment que criaram tanta miséria para aqueles cidadãos, e Hillary Clinton nada tinha a dizer aos milhões que vivem no que a imprensa condescendentemente chamou de "país a ser sobrevoado" [ing. flyover country]. Esses eleitores então se encaminharam na direção do candidato da mudança, ainda que a plataforma dele não tivesse toda a coerência do, digamos, programa de Sanders; e em muitos sentidos possa tornar ainda pior a posição dos miseráveis. Mas se você vive em Youngstown, Ohio, ou Scranton, Pennsylvania, e virtualmente não tem nenhum interesse investido no sistema existente, absolutamente não surpreende que você escolha pôr suas fichas num agitador bombástico.
Nem se discute que há hoje uma espécie de pessimismo generalizado que transcende o econômico. Além da crescente desigualdade e concomitante estagnação dos salários para a classe trabalhadora e os estratos médios da sociedade, o 11 de setembro e o que veio depois com certeza também contribuiu para aquele pessimismo, fazendo as pessoas sonhar com os Anos Dourados do Capitalismo Gerencialista do pós-2ª Guerra Mundial, que foi período dinâmico de grandes conquistas econômicas e da Pax Americana. Destilado tudo isso em filmes (versão norte-americana de critério de avaliação), a visão de época dos norte-americanos hoje é um estranho misto de Bladerunner, Mad Max e Reality TV – com os personagens sonhando com Ozzie e Harriet Nelson, muito improvável receita para trazer esperança de futuro positivo.
E se o Partido Democrata é honesto, terá de conceder que até o incompetente e popular atual presidente muito contribuiu para aumentar e aprofundar o desespero que levou a maioria dos norte-americanos a eleger um radical como Trump. O governo Obama rapidamente rompeu com suas "Esperança" e "Mudança em que você pode acreditar", no instante em que nomeou para cargos de conselheiros econômicos mais próximos alguns dos arquitetos da crise de 2008, os quais, por sua vez, deram a Wall Street resgate amigável dos bancos, o qual efetivamente restaurou o status quo ante (e recusou-se a prender banqueiros, um, que fosse, por mais que muitos estivessem envolvidos em atividade explicitamente criminosa).
Depois disso, foi o resgate da indústria dos seguros privados de saúde sob o disfarce da legislação da chamada "reforma da atenção à saúde", a Lei do Cuidado "que se pode pagar". (Essa lei nada dizia ou fazia sobre conter o custo dos oligopólios dos seguros-saúde, porque a "opinião pública" marginal foi excluída do texto final, cortesia dos lobbyistas convidados a elaborar as leis). Todos os Rubinites foram trazidos de volta para comandar a economia. Wall Street e a bolsa de valores tiveram seu boom, mas os salários continuaram em estagnação, e a vasta maioria de todos os ganhos foi diretamente para o 1% dos mais ricos. Todos os demais norte-americanos foram deixados para trás.
Assim se deu força à ideia de que o governo não passava de um ninho de víboras cheio de capitalistas cúmplices uns dos outros, a qual por sua vez ajudou a desencadear a demagogia populista de direita (com a esquerda ou marginalizada ou cooptada pelos seus doadores de Wall Street/Vale do Silício). Assim ganhamos Trump. Acrescentem-se os baixos instintos da política externa neoconservadora de Hillary, que poderiam ter-nos posto em guerra contra a Rússia, e, afinal, os norte-americanos podem não ter errado tanto quanto talvez pareça.
Os eleitores norte-americanos leram os odiosos e-mails de Podesta, como todos poderiam ler. (De fato, independente da fonte dos vazamentos, todos devemos ser gratos por esses e-mails hackeados, que nos permitiram descobrir que a mídia-empresa de nosso país opera diretamente com um dos grandes partidos políticos dos EUA, para distribuir noticiário manipulado sobre quem seja o candidato deles e o candidato adversário, induzindo simpatia e votos para o escolhido.)
Obama é pessoalmente agradável, mas realmente nos deu qualquer coisa grande e duradoura como recebemos de FDR nos anos 1930s? A lei da 'Saúde que se pode pagar' foi, de fato, RomneyCare (com problema comparável, de que não há nenhum meio para controlar os custos dos seguros privados de saúde, fato que foi cruelmente revelado a todos os cidadãos poucos dias antes da eleição, quando foi anunciado aumento de 25% no preço dos planos de saúde).
Assim também, a lei Dodd-Frank não passou de piada em termos de reforma financeira, sobretudo se se compara com a legislação que emergiu da Grande Depressão (e que permaneceu inalterada por mais de 40 anos). A Comissão Pecora (estabelecida imediatamente depois da Grande Depressão) teve carta relativamente branca para investigar as causas da crise e para punir a fraude. Grande número de falências e bancarrotas varreram boa parte da dívida do setor privado. O setor financeiro foi reduzido e permaneceu várias décadas em posição relativamente de pouca importância.
The establishment, especialmente o do Partido Democrata, continua a insistir em reforçar as medidas que dividem, mais do que as medidas que unem o povo, porque abraça as políticas de identidade e ignora a questão da classe. Claro, a maioria das mulheres sentiu-se ofendida pela "conversa de vestiário" [orig. "locker room talk"], mas uma larga fatia delas votou em Trump apesar das ofensas. E mais hispânicos votaram em Trump que em Romney.
Será que tudo isso sugere que as política de identidade chegaram a uma espécie de limite? Que podem estar esgotadas? Por que não buscar compreensão melhor e pontos de interesse comum na interpretação por classes, mais que por gênero ou cor da pele?
Como escreveu Vicente Navarro, ex-conselheiro de Jackson: "O objetivo da 'classe bilionária' é cooptar os afro-descendentes e as mulheres para dentro do sistema, de modo a aproximá-los e alinhá-los com a classe dominante. O fato de que tão pouco se fale de classe nos EUA explica-se, por que a classe bilionária não quer que o povo pense ou fale em termos de classe."
É porque, também é difícil argumentar para que um homem compreenda seus próprios interesses depois de ele ter engolido um punhado de Oxycontins e tê-los mandado para baixo com meia garrafa de Wild Turkey. Mas enfatizar políticas baseadas na classe, mais do que soluções baseadas em gênero ou raça, alcançará maior número de eleitores que, compreensivelmente, rejeitaram a política identitária da 'neoliberalite', que foi tudo que os Democratas ofereceram, mais uma vez. É verdade que a classe dos doadores de dinheiro 'eleitoral' trabalhará contra esse processo, e talvez seja preciso esperar por mais uma crise financeira, antes que o poder deles possa afinal ser derrotado.
Os eleitores anseiam por ação efetiva que reverta o declínio da economia no longo prazo e a sempre crescente desigualdade, mas ninguém nem cogitou até agora de lhes oferecer o que lhes falta, na quantidade que lhes falta, não, com certeza, os dois grandes partidos movidos a dinheiro. Tudo isso só fará acelerar a desintegração do sistema político e do sistema econômico, até que o problema do elefante na sala – a classe –, seja ampla e honestamente enfrentado.