As infindáveis lamúrias do floquinho de neve – perdemos a presidência por causa do FBI «do mal», WikiLeaks, os russos, etc. – eram previsíveis. Mesmo assim, parece que nenhum dos apparatchiks corruptos até a medula do Comitê Nacional Democrata jamais leu A Sociedade do Espetáculo, de Guy Debord. Ou não sabem como funcionam o showbiz – e programas de rádio.
Há quem diga que Paris é a capital mundial do pensamento crítico. Círculos intelectuais parisienses perplexos pelo menos já descobriram que a atual crise pan-ocidental não tem a ver só com economia, política, finança, segurança e imigração: tem a ver com o próprio «discurso político».
O diagnóstico fácil dos cafés chiques é que a vitória de Trump é sintoma de linguagem que joga com as emoções e distorce a realidade. É verdade que o complexo discurso racional já não faz o que promete. As massas não leem ensaios de 3 mil palavras; são coisa para as elites e autoproclamados «especialistas». Mas, sim, as massas regem a tuítos ofensivos. Mais do que nunca, realidade é o que se percebe como tal.
Daí o amálgama entre Trump e a Frente Nacional (FN) na França, liderada por Marine Le Pen, também comunicadora mestre, capaz de converter emoções primárias em realidade. Não surpreende que o blog «suprematista branco» Breitbart News – Ministério informal da Informação de Trump – planeje ampliar sua presença da França e apoiar Le Pen.
Mas o debate parisiense percebe corretamente que o isolacionismo nacionalista em todo o ocidente – servindo-se de amálgamas e atalhos terminológicos espertos – tornou-se solução crível para «curar» identidades nacionais. Daí o apelo que tem o desmonte da UE entre incontáveis europeus, como alternativa crível contra o desemprego, e como meio para aumentar a segurança. É a síndrome de Trump remixed: arame farpado (metafórico e de aço) como escolha possível para relançar o crescimento econômico.
Com a vitória de Trump analisada como a derrota do discurso político, ou a vitória da palavra controversa, o debate parisiense absolutamente não vê que conclamações a que todos nos «reconciliemos com a complexidade» não podem ser a única solução. De fato, o desafio é como oferecer nuances e complexidade em apenas poucas palavras de cada vez.
Palavras, palavras, palavras
O que sofisticadas análises intelectuais não veem é que a Equipe Trump converteu em estratégia um espetáculo de reality show ao vivo e criou – o que mais seria?! – uma marca. Diálogo, o mínimo possível, um tuíto. O próprio Trump deu a chave: «São só palavras». A máquina Clinton (de dinheiro) caiu na armadilha e tomou as palavras em sentido literal. Nunca passaram de metáforas – compreensíveis para criança de 4ª série e disparadas por um «garoto homem» interpretando um colegial.
Na entrevista à CBS domingo passado, Trump admitiu o óbvio: venceu graças ao poder das redes sociais, apesar de a máquina Clinton de dinheiro ter consumido «muito mais dinheiro que eu». Trump tem mais de 28 milhões de seguidores somados de Twitter, Facebook e Instagram. Essa suposta «minoria oculta» driblou todos os modelos de pesquisa existentes. Fora da Av. Beltway e de Hollywood, estavam em todos os lugares.
Trump aperfeiçoou a arte do discurso político simplificado dispensando o intermediário – ao mesmo tempo em que reduziu a mídia-empresa mainstream, no processo, a nada além de patética nota de rodapé. The New York Times – «todas as notícias irrelevantes demais para serem impressas»? – foi triste chanchada de si mesmo, prometendo, publicamente que doravante «noticiará mais acuradamente as notícias».
Não que Trump não tenha avisado publicamente: «Sou muito bem educado, Conheço palavras. Tenho as melhores palavras». E sabe como extrair efeito máximo de investimento (em palavras) mínimo. O megainvestidor Peter Thiel compreendeu tudo. Disse no National Press Club em Washington que «a mídia sempre toma Trump ao pé da letra, literalmente».
Thiel destacou, logo depois da eleição que «muitos eleitores que votam em Trump o tomam a sério, mas não literalmente. Quando ouvem coisas como o comentário contra muçulmanos, ou a conversa do muro, o que eles questionam não é 'o senhor vai construir um muro parecido com a Grande Muralha da China? ou 'Como exatamente o senhor vai aplicar esses testes?’ A única coisa que ouvem é que teremos política de imigração menos doentia, mais sensível».
E daí que Trump assassine a sintaxe nos seus altos brados inarticulados? O significado sempre foi claro. Os muitos instrumentos de retórica explosiva sempre visaram a tocar na emoção nua. É o que explica a avalanche de «nós e eles»; superlativos «enooooooooormes» («incrível!», «tremendo potencial», «maravilhoso»); todas as hipérboles; repetir, repetir, repetir; gagueira calculada, para reforçar sua marca de falas «de improviso»; e um mar de eufemismos («pegar mulheres pela b*ceta?» Naaaaaaaaaada, só velha «conversa de vestiário»).
Entrementes, os floquinhos de neve foram ininterruptamente reconfortadas(os) pela interpretação padrão: Trump como artista safado inventado pela mídia de massa que apareceu primeiro num reality show e depois fez da política, circo. Os floquinhos não o viram capitalizar os dólares da propaganda monstro, dos números. Não viram que quanto mais a mídia-empresa (detestada) o atacava, melhor ele parecia aos olhos da «minoria invisível»; e não viram como a marca trumpiana de «realismo mágico» operava todos os tipos de truques com a «realidade».
Darwinismo social enlouquecido
Zygmunt Bauman, que construiu o conceito de modernidade líquida – e forte influência em meu livro de 2007 Globalistan – observou corretamente o quanto Trump ofereceu ocasião única, irrepetível, para condenar-se, sem recurso ou apelo, todo o sistema político, inteiro.
Bauman acerta um nervo quando vê o modo como mecanismos tradicionais como a divisão dos poderes à Montesquieu entre Executivo, Legislativo e Judiciário, e também o sistema anglo-saxão de pesos e contrapesos, podem ir sendo cada vez mais privados de qualquer significado, de modo que favorece uma aglutinação de todos os poderes num só poder, e autoritário.
Bauman compreendeu perfeitamente como Trump casou política de identidades e angústia econômica – condensando todos os aspectos da angústia existencial que consome o que restou da classe trabalhadora e da classe média. Daí o sucesso da solução 'relâmpago' – expulsar o etnicamente diverso.
Os norte-americanos que se deram o trabalho de votar – importante: 43% não votaram – podem ter arranjado, segundo Bauman, um líder forte, não como veneno, mas como antídoto; um "homem que faz" capaz de oferecer soluções instantâneas com efeitos imediatos. Se e como conseguirá entregar o que promete é outra história.
O que é certo é que a gangorra que sobe e desce em todo o ocidente, ou conservadores ou social-democratas, já não é o que antes foi. Quando no poder, todos só reproduziam mínimas variações de neoliberalismo.
Fato é que, como se viu, o liberalismo sofreu um forte golpe no plexo – mesmo que a chamada Esquerda progressista ainda não tenha conseguido «vender» às massas sequer alguma crítica séria, com base histórica, do neoliberalismo.
Entrementes, a guerra civil – nacional e global – sangra por todos os lados: darwinismo social enlouquecido. Temos um muro atlanticista – do Brexit ao Rio Grande – em processo de construção contra o sul global. Temos o declínio do Homem Branco contra minorias que em muitos casos passaram a ser maiorias. Temos elites ocidentais armadas contra «Islã» – absurdo, porque o inimigo real é o jihadismo salafista, derivação do wahhabismo. E por fim temos o Predador Absoluto – o homem – que incansavelmente destrói a natureza.
Num sentido gramsciano, a velha ordem colapsou completamente, mas a nova ordem ainda não nasceu. Talvez seja uma nova ordem baseada nos BRICS – principalmente Rússia, Índia e China. A Esquerda progressista tem de encontrar o mapa conceitual do caminho para participar – e influenciar a nova ordem.
Até lá, viveremos entre as ruínas produzida por Dispositivos Explosivos Improvisados da Trumpolítica. Os EUA inventaram o politicamente correto. Trump bombardeou o politicamente correto. Os EUA orgulham-se da mídia-empresa. Trump bombardeou a mídia-empresa. Só até aí, já são duas importantes vitórias.
Trump abriu o capital da Casa Branca, lançou uma initial public offering (IPO). Agora, é o Executivo-em-chefe. Se – e é imenso "se" – conseguir fazer da coisa uma empresa bem-sucedida, pode ser bom negócio não só para os EUA, mas para todo o planeta.