E como em terra de cegos, quem tem olho é rei, Marcial Dorado ia no periscópio. Da viagem pouco me recordo senão que chegámos à Ria de Arousa e fomos recebidos em Rianxo pela orquestra da Guardia Civil que interpretava a canção Teknotrafikante de Os Papaqueixos. O que fazia eu com o digníssimo presidente da Xunta? Parece ter-lhe chegado aos ouvidos que gosto muito de polvo galego e entre prostitutas, riscos de cocaína e garrafas de Vega Sicilia vi-me metido à força num filme de Kusturica.
Mas de repente já não estava no submarino. Atravessava as montanhas do Larouco rumo ao Couto Misto e ao meu lado seguia um tal de Manuel que dizia ser meu bisavô. Apanhei-o justamente quando se encontrava fugido da polícia. Sabia que havia tomado a convicta decisão de desertar quando o primeiro-ministro Afonso Costa ordenou que fosse dar a vida nas trincheiras de outro país, durante a I Guerra Mundial, longe dos seus filhos, dos animais e do contrabando. Foi ele que me falou da sua avó, a polveira de Ruivães.
Do nada, ouço uma voz com uma forte pronúncia italiana. Sentado numa pedra, vejo que me chama Corrado Cattani que me conta a bizarra história de como tinha deixado de lutar contra a máfia. Lembrava-me dele da série Polvo. Agora era partigiano e combatia nas fileiras de uma estranha organização chamada União do Polvo. Pelo caminho, parámos numa velha bodega, onde a taberneira nos garantiu que a autoria da ginjinha era galega e, para que ficasse claro, os matraquilhos também.
Juntavam-se dezenas de mulheres e homens ao capitão Manuel que encabeçava a UP. Eram os velhos desertores portugueses, os guerrilheiros antifranquistas, os patriotas galegos e um jovem que me parecia familiar. «Tu não és aquele actor norte-americano, o Charles Bronson?», perguntei. «Nom, eu som Moncho. Moncho Reboiras». Todos, distintas gerações misturadas, em uníssono, formavam uma coluna vertebral pelas montanhas galaico-portuguesas. Até o sapateiro comunista galego que um dia se escondeu junto da vitela Mimosa, a preferida da filha de Manuel, a minha avó. Entre eles não existiam fronteiras e caminhavam unidos por esse sorriso justiceiro a que chamam dignidade. Levavam braçadeiras vermelhas e pela noite guiavam-se pelas estrelas. Quando o dia se perdia na cordilheira, um dos patriotas galegos, o de barbas brancas, trocava o fuzil pela guitarra e todos sonhavam com a revolução.
Dentro de uma antiga casa de pedra, a polveira de Ruivães recebeu-nos curvada pelo tempo e agradeceu-me. Tardei em perceber que não era eu que os acompanhava. Eram eles que me acompanhavam. Aquela era a líder do grupo armado. Aquele polvo galego cozinhado pelas mãos de uma mulher do Couto Misto seria levado por um português até Compostela. Ela olhava para mim enquanto batia no molusco com um pau de madeira: «Foi assim que os portugueses conquistaram a independência. Os galegos deviam saber que os polvos não servem apenas para comer. Quem aprende a chorar por algo também aprende a defendê-lo». Sim, a minha tetravó citou o grupo punk basco Barricada. Ninguém disse que os sonhos deviam fazer sentido. Mas fez.
Como o polvo que une a força dos seus tentáculos para se defender de quem o ataca. Como a indestrutível fortaleza do povo que não termina em si mesmo quando acrescenta à força de cada um a força de todos. Como a força que um dia há-de brotar das meigas, dos mariscadores, das operárias, dos camponeses e das polveiras naquele que um dia foi o fogar de Breogan.
Fonte: Terra sem amos.