Se sim, eu padeci de tal ingenuidade. Contudo, confesso que, mesmo na impossibilidade de me desvencilhar da certeza subjetiva de que Teori foi morto pelo governo golpista, eu invejei a prudência daqueles que acharam que, objetivamente, tratava-se apenas de um acidente, pelo menos até ser provado o contrário. Contra a racionalidade que sustentava que “às vezes um acidente é só um acidente”, eu ainda insisto no fato de que “às vezes uma queima de arquivo é só uma queima de arquivo”, principalmente quando parece um acidente. Afinal, mafiosos oligarcas poderosos se valem desse tipo de expediente, não é mesmo? Se, como bem apontou Foucault, o poder tende a preservar a si próprio, quando esse poder é espúrio, outrossim degeneradas serão as suas estratégias de automanutenção.
Mesmo assim, uma primeira denúncia deve ser feita contra os que, como eu, aderiram à teoria de que o governo golpista conspirou a morte de Zavaski: a materialização da tal “pós-verdade” – neologismo pós-moderno referente à “verdades” fundamentadas não em fatos objetivos, mas em emoções ou crenças pessoais. O desejo ou a crença subjetivos de que Temer tenha matado Teori, se não falou por todos, ao menos gritou mais alto e primeiro. Mesmo que a morte do ministro relator tenha sido um acidente de fato, o “fato alternativo” (apelido que a equipe de Donald Trump deu à pós-verdade essa semana), isto é, o seu assassinato previamente conspirado, certamente teve apelo incontrolável.
Pós-verdades à parte, se não temos como saber a verdade a respeito da morte de Zavaski (se acidente ou conspiração), ao menos devemos saber quem a sabe. Até o presente momento, somente os golpistas suspeitos detêm essa verdade: se conspiraram a morte do ministro, sabem que não foi acidente; se, todavia, não conspiraram, sabem que foi apenas um acidente. A brecha pós-verdadeira se abre justamente porque, se Teori foi de fato assassinado pelos golpistas, o poder e as estratégias destes podem facilmente ocultar esse fato com o “fato alternativo” de que foi acidente. E se pelo menos parte dos brasileiros não sustentar a teoria conspiratória de que Teori foi “queimado” pelos golpistas, esse fogo terá sido acidental desde o princípio, mesmo que propositalmente ateado.
A virtude das Teorias da Conspiração está precisamente em tentar dar voz àquilo que, de antemão, deve estar absolutamente silenciado. No início do Holocausto, por exemplo, quando Hitler dizia publicamente que seu projeto não era outro senão fazer a Alemanha “Great Again”, foram as teorias da conspiração, à época obscuras e desacreditadas, que em primeiro lugar insistiram que, na verdade, tratava-se de um genocídio judeu. Como, por conseguinte, a História mostra que que seis milhões de judeus foram exterminados, às vezes… apostar nas Teorias da Conspiração é investir na verdade.
No caso Zavaski, a Teoria da Conspiração não é absurda: é apenas a impertinência de defender uma verdade que, se de fato verdadeira, todavia nasceu planejada para ser eternamente ocultada. Ora, se a pragmática golpista, na manutenção do seu podre poder, já “matou”, ao vivo e em cadeia nacional!, a própria democracia no Brasil, “queimar um arquivo” humano no meio do percurso é apenas burocracia menor e subsequente. Todavia, mesmo que o povo, e sobretudo os inimigos dos golpistas nunca saibam se a morte de Teori foi acidental ou conspirada, a publicizada foto dos golpistas em torno do caixão do ministro que poderia comprometê-los já é uma mensagem de poder que, como li em outro lugar, nem Al Capone enviaria com tanto êxito.
Mas se a Teoria da Conspiração foi tão pertinente no caso do Holocausto, assim como parece ser no caso Zavaski, por que então foi dito no início que era ingênuo embarcar nela? Porque, conforme uma afirmação de Slavoj Žižek em “Às portas da Revolução”, hoje em dia não há a menor necessidade de teorizarmos sobre uma organização oculta dentro de uma organização explícita: “a conspiração” – diz o filósofo – “já está na organização ‘visível’ como tal, na forma capitalista, na forma como o espaço político e os aparelhos de Estado agem”.
Ora, se, longe de serem conspirações secretas, as ações aparentes do poder na sociedade capitalista globalizada já dizimam, e publicamente, populações inteiras, seja em função de petróleo (mundo árabe), seja em busca de novas terras à agricultura (África), achar que esse mesmo poder precisa obscurecer-se, conspirar secretamente para fazer o mesmo com um singelo indivíduo que se lhes oponha é, sem dúvida, tolo. Talvez o fato de a “conspiração oculta” já ser a ação explícita é que seja insuportável.
Pode ser que o atual reinvestimento tupiniquim na Teoria da Conspiração vise justamente a manutenção da velha ilusão de que as obscenas ações do poder não possam se dar de modo tão explícito, como cada vez mais se apresentam. Aqui chegamos ao ponto de supor que defender uma conspiração secreta por parte do poder nada mais é que pedir a esse poder que ao menos mantenha o velho modus operandi de agir como se ocultasse as suas vis estratégias. Algo como: “por favor, já que estão agindo somente em função de si mesmos, ao menos finjam que isso é vergonhoso demais para ser explicitado”; em outras palavras: “mantenham nas suas vilanias reais a possibilidade de elas serem abordadas somente como teorias, e não como tácitas práticas efetivas”.
Como bem apontou Žižek, “as teorias da conspiração são o oposto da convicção iluminista de que a Razão governa o mundo”. E se ainda teorizamos sobre conspirações, é porque, de fato, o mundo não é governado pela Razão, mas, em troca, pela lógica abjeta do capital, que a tudo e a todos consome indiscriminadamente para mais-valorizar-se incessantemente. E essa lógica governante é poderosa a ponto de poder dispensar os expedientes das conspirações secretas para se apresentar em forma de ações cruas e explícitas. São justamente os que padecem dela que, paradoxalmente, inventam mentiras “factuais alternativas”, “pós-verdades” para mentirem a si mesmos que o poder não é tão evidentemente vil; que ele ao menos ainda exercer a sua vilania tentando escondê-la.
Em suma, as Teorias da Conspiração, por um lado, existem para dar voz ao que é intencionalmente reprimido – e nesse sentido vale lembrar a inversão žižekiana da máxima wittgensteiniana: “do que não se pode falar, deve-se guardar silêncio”, para “o que não se pode falar, não se pode calar”. Todavia, por outro lado, elas disfarçam as ações reais e evidentes do poder em sua sempiterna manutenção de objetos de teoria, escondendo o que de fato são: práticas sistemáticas desavergonhadamente objetivadas.
Talvez as Teorias da Conspiração sejam essencialmente controversas mesmo. Aqui, teorizando sobre verdades aparentemente reprimidas, para, logo ali, essas verdades, uma vez desbravadas, jazerem enquanto teoria mesmo, e não enquanto práticas reais que afrontam insuportavelmente. Teorizar sobre conspirações no mundo atual não é outra coisa que desejar que as ações mais aviltantes ao menos sejam praticadas como se fossem aviltantes.