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Diário Liberdade
Segunda, 08 Mai 2017 20:02 Última modificação em Quinta, 11 Mai 2017 00:13

Na visão de Darcy Ribeiro, “fomos nós que criamos o problema indígena”

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Roberto Bitencourt da Silva

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[Roberto Bitencourt da Silva] Em meio às notícias de horror e de ameaças de extermínio das populações indígenas, como recentemente ocorrido no Maranhão, notícias que nos chegam parca e timidamente das regiões distantes do nosso autocentrado mundo sudestino, não é exagero afirmar que os graves problemas que envolvem os nossos coirmãos pátrios são absolutamente desprezados pelas luzes da agenda midiática massiva e comercial. Ocioso mencionar as razões.


Raras são as notícias produzidas e veiculadas ao eixo mais urbanizado do País. Quando nos chegam são as mais pavorosas possíveis, expressando os agudos conflitos de terras que têm no agronegócio, nas madeireiras e na grilagem os personagens centrais das atrocidades e ilegalidades que assombram as vidas dos povos indígenas. Estes, costumeiramente, abandonados pelo Estado, destituídos do abrigo protetor da lei e da justiça.

Nesse sentido, tropeçando na leitura de fecundos escritos de Darcy Ribeiro (1922-1997) – grande pensador social, militante político e antropólogo brasileiro, notório estudioso das populações indígenas brasileiras – reproduzo abaixo curto fragmento de texto seu.

Redigido e publicado no início da década de 1990, o texto do então senador Darcy Ribeiro (PDT/RJ), infelizmente, parece ter sido escrito há poucos dias. Evidentemente não tendo sido, nem por isso deixa de iluminar antigos e renitentes problemas que afetam a vida indígena. Problemas que são de responsabilidade do conjunto da sociedade brasileira, como oportunamente chama a atenção Darcy. As soluções, igualmente. O texto segue abaixo.

​Roberto Bitencourt da Silva – historiador e cientista político.

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“Integração sem assimilação”

Extraído do livro O Brasil como problema, de Darcy Ribeiro, São Paulo, editora Global, 2ª edição, 2015 (1ª edição de 1995), páginas 91-93.

Quando voltei do exílio, anos atrás, a primeira batalha que tive no Brasil, na minha velha luta em defesa das populações indígenas, foi tão estranha que custei a situar-me e entender o que se passava. O presidente [Ernesto] Geisel, descendente de pais alemães, se considerava um bom brasileiro, tão bom que chegara à presidência da república, mas estranhava muito que os índios teimassem em permanecer índios. Desencadeou, assim, um movimento chamado ‘emancipação dos índios’, uma das coisas mais brutais de que tive notícia.

Geisel dizia: ‘Por que esses índios se mantêm nessa mania de serem índios? Meu pai e minha mãe são alemães. Eu falei só alemão até os 12 anos de idade e hoje sou um brasileiro. Esses índios teimam em ser índios, provavelmente porque são induzidos a isso pelos missionários e pelos funcionários do serviço de proteção’. Concluía disso que lhe cumpria decretar imperialmente que as tribos indígenas aculturadas deixassem de ser indígenas para passarem a ser comunidades brasileiras comuns. Essa ‘emancipação’ compulsória importaria para os índios na perda de suas terras, na perda de qualquer direito ao amparo compensatório e, portanto, em sua dizimação.

Diante de povos indígenas que sobreviveram a séculos da opressão mais terrível, cuja simples existência pareceria inverossímil se eles não estivessem aí a nos mostrar que sobreviveram, nos cumpre uma atitude mínima de respeito. A falsa emancipação geiseliana seria uma nova onda de perseguição. Embora já não contando com as armas maiores da guerra, da escravidão e da contaminação propositada, contava com todo o poder opressivo de um Estado moderno, deliberado a destruí-los.

A maioria dos povos indígenas se acha integrada na sociedade nacional que os envolve e submetida ao seu sistema de dominação política, que não os incorpora à brasilidade, nem os assimila à cultura e à etnia brasileiras. Mas mantém com eles uma interação ativa, seja no plano comercial que os obriga a produzir mercadorias que lhes permitam comer e comprar o que necessitam; seja no plano social, que os submete à autoridade de um prefeito, de um delegado de polícia; seja no plano jurídico, que cai sobre suas comunidades como uma camisa de força; seja no plano burocrático, que os submete a um órgão de proteção com o poder total de ampará-los ou de aniquilá-los.

A grande novidade do estudo que fiz na década de 1950 para a Unesco foi mostrar que não há nenhuma assimilação indígena. Esperava-se de mim que mostrasse que as relações dos índios com os não índios no Brasil constituíam um padrão de democracia racial. Tal se supunha que ocorresse, também, com os negros. Nossa pesquisa mostrou que, em nenhum lugar, nenhuma comunidade indígena se converteu, jamais, numa comunidade brasileira. Cada grupo indígena permaneceu com sua identificação étnica, por mais aculturado que chegasse a ser.

O índio vive a situação desesperada de quem não quer identificar-se com a sociedade nacional, de quem se nega a dissolver-se nela, mas que precisa, igualmente, do seu amparo compensatório. E é um amparo que só o Estado pode dar e deve dar, mesmo porque o problema indígena somos nós, que invadimos suas terras e destruímos suas vidas. Fomos nós que criamos o problema indígena. Somos nós os agressores. Nós, em consequência, é que lhes devemos esse amparo oficial e legal – o único que pode garantir condições de sobrevivência.

Como sobreviveram e aí estão, nos cabe a nós atentar para eles, saber o que reivindicam primariamente, ouvir suas vozes a nos dizer: ‘Estamos aqui. Somos os primeiros. Somos habitantes originais dessas terras. O que necessitamos é que não nos persigam tanto, que nos reconheçam a posse das terras em que estamos assentados. É o direito de viver, segundo nossos costumes’. Esse é o seu drama. Essa é a questão indígena do Brasil, hoje, aqui, agora.

Darcy Ribeiro.

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