O Caminho dos Tormentos, de Alexei Tolstoi, ao fazer-me repensar o sentido da existência, foi determinante para a minha adesão ao Partido Comunista Português.
A leitura de Pedro I – biografia romanceada do czar que tirou a Rússia da Idade Média – contribuiu para aumentar a admiração que me inspirava o escritor. Ambos os livros foram tema de filmes de muita qualidade, aclamados pelo público e a crítica.
Foi portanto naturalmente com surpresa que li há dias o romance A Máquina Infernal do Engenheiro Garín*. Parece coisa de outro escritor.
Alexei Tolstoi pretendeu escrever um romance de ficção científica. Alguns críticos identificam nele sobretudo uma estória de aventuras destinada à juventude.
Não consigo inseri-lo em qualquer desses géneros.
A Máquina Infernal do Engenheiro Gárin carece de qualidade literária mínima. É um livro dececionante, mal construído, que não deixa transparecer sequer um esforço de investigação científica.
Segundo o prefaciador e tradutor brasileiro, o escritor Eduardo Sucupira Filho, Alexei Tolstoi «mantem viva no coração dos seus interpretes-Shelgá e Ivan- aquela chama imortal de que falava Wells, que, acima das angústias e dos desencantos momentâneos, alumia o caminho de um sonhar cósmico, a conquista definitiva do homem, até então alienado em uma existência miserável.»
Não encontrei nem a chama nem o sonho. As personagens, incluindo Garin (o sábio satânico), a cortesã Zoya e o milionário americano Rolling, são mal desenhadas e o seu comportamento é incoerente, com frequência grotesco ou inverosímil. O desenvolvimento da estória é confuso, desconexo. Conclusão dolorosa: subliteratura.
A deceção levou-me a recorrer à Internet em busca de opiniões sobre o livro, que golpeara rudemente a minha admiração pelo autor.
As que encontrei são todas elogiosas, o que acentuou a minha perplexidade.
Mas nessa pesquisa chamaram-me a atenção referencias a um escritor também soviético, Evgeni Zamiatin, qualificado por um crítico literário de «pioneiro da ficção científica».
Despertaram tanto o meu interesse que, dias depois, tinha em mãos a tradução francesa de um romance do autor, Nous Autres ,enviada de Paris por Jean Salem.
A obra e o escritor são encantatórios. Esperava algo semelhante aos livros de ficção científica de Asimov ou Ray Bradbury. Mas Zamiatin move-se noutro andar da literatura. Pensei em Kafka.
Matemático e engenheiro, tinha uma formação científica muito sólida. Mas não sabia viver sem escrever, como informou numa carta a Stalin em que lhe pedia autorização para emigrar temporariamente. Stalin, por intervenção de Máximo Gorki, amigo e admirador de Zamiatin, atendeu-lhe o pedido, e em 1931 Zamiatin viajou para França onde faleceu em 1937 com 51 anos, na miséria, depois de ter exercido em Paris diferentes profissões.
Na juventude foi preso e deportado por ter participado na Revolução de 1905. Em l908 aderiu ao Partido Bolchevique e, como comunista, trabalhou em diferentes projetos após a vitória da Revolução de Outubro.
Os seus problemas começaram quando lhe recusaram a publicação de Nós. O livro, escrito em 1920-21, foi editado clandestinamente.
Em l922,num ensaio sobre Julius von Meyer, um dos criadores da termodinâmica moderna, Zamiatin reagiu às restrições que principiavam a atingi-lo como ficcionista. Escreveu então: “O mundo desenvolve-se unicamente em função das heresias, daqueles que rejeitam o presente, na aparência indestrutível e infalível. Somente os hereges descobrem horizontes novos na ciência, na arte, na vida social; somente os hereges rejeitam o presente em nome do futuro, são eles o eterno fermento da vida e garantem o movimento infinito da vida para a frente».
Lenine ainda vivia, mas as contradições entre a literatura, a arte em geral e o poder politico eram já identificáveis. Admirador de Wells, Zamiatin faz do seu romance uma arma contra a deformação do homem num país (sem nome) onde situa uma sociedade desumanizada.
Thomas More na sua Utopia ideou uma ilha onde todos, sem conflitos, atingem a suprema aspiração do homem: a felicidade possível. Tinha em mente pelo contraste as sociedades europeias do seculo XVI, devastadas por guerras religiosas, apodrecidas pela corrupção e ambição dos poderosos. Mas More limitou-se na Utopia a esbçar a sociedade ideal, tal como a concebia.
Em Nós, uma contrautopia, Zamiatin ilumina o homem que dúvida, primeiro, e tenta rebelar-se, depois, contra as engrenagens da sociedade que o transformam em robot. Essa luta interior dos insubmissos confere ao livro uma dimensão diferente das novelas de ficção científica.
Huxley e Orwell reconheceram que a fonte de inspiração do Admirável Mundo Novo e de 1984 foi para ambos o romance de Zamiatin.
O leitor é agarrado desde a primeira página. Numa atmosfera de suspense sente-se introduzido num mundo assustador pela mão da personagem principal que regista num diário, a cada dia, o seu quotidiano, semeado de dúvidas e angustias. É um matemático, responsável pela construção do Integral, um engenho prodigioso concebido para uma viagem de exploração pelo universo.
Paradoxalmente, permanece formatado e, apesar da sua inquietação interior, não foge à admiração generalizada pelo Benfeitor, o semi -deus que governa o Estado Único.
Ele é o D-503. Vive, como todos os habitantes do país, num dos gigantescos edifícios de paredes transparentes onde cada movimento seu pode ser acompanhado pelos vizinhos do apartamento próximo. A intimidade tem limites inultrapassáveis no Estado Único. As relações sexuais são permitidas, mas em dias e horas fixos, com parceiros programados. A procriação animal é crime punido com a pena de morte na Máquina do Benfeitor. Shakespeare, Goethe, Cervantes, todos os clássicos da literatura são recordados pela propaganda do Estado Único como aberrações de uma era de barbárie anterior à guerra de 200 anos que abriu as portas à civilização e à felicidade humana. A nova literatura não ultrapassa uma monótona glorificação do Estado Único e do Benfeitor.
Inesperadamente, D-503 conhece uma mulher que o fascina. Ama-a e odeia-a. Ela fuma, bebe álcool (crimes abomináveis), faz-lhe conhecer um patamar superior do sexo. I (o seu nome é apenas uma letra) é uma rebelde belíssima, sensual, que não despreza a história dos bárbaros que vivem do outro lado do Muro Verde que isola e protege o Estado Único da terra da barbárie, habitada por homens antigos.
D-503 é presumivelmente um mestiço em cujas veias corre sangue de algum bárbaro infiltrado no Estado Único. Mas não tem consciência da sua diferença. Acredita que está doente, mas gradualmente é envolvido na conspiração promovida por I.
O desfecho de Nós, angustiante, é a antítese do happy end.
A rebelião fracassa. D-503 é submetido à Grande Operação, uma cirurgia não dolorosa que robotiza ainda mais os cidadãos do Estado Único, humanoides
submissos, objetos sem emoções, nem ideias. Conduzido ao Benfeitor, conta-lhe tudo sobre a conspiração, revela o que «sabia dos inimigos da felicidade».
I, na sua presença, é torturada na Camara Pneumática para «confessar». Mas ela resiste. Morre, executada na Máquina do Benfeitor.
D-503 não sofre. Sente que venceu a doença; redescobriu a felicidade.
Nous Autres * foi publicado pela primeira vez em França em 1929,mas então passou quase despercebido. Reeditado pela Gallimard em l971, a crítica saudou-o como uma obra-prima. Na União Soviética apareceu em 1988.
Hoje, traduzido numa dezena de idiomas, é considerado por críticos de prestígio um dos romances mais importantes do seculo XX.
*Alexei Tolstoi, A Máquina Infernal do Engenheiro Garin, Ed.Brasiliense,1959, São Paulo,Brasil
**Evgeni Zamiatin, Nous Autres,Gallimard , 1971, Paris