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Diário Liberdade
Quinta, 18 Mai 2017 14:03

História de uma indocumentada: a travessia do deserto de Sonora-Arizona - Capítulo 5

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Ilka Oliva Corado

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Por Ilka Oliva Corado

Tradução de Raphael Sanz

Não sei quantos quilômetros de distância há entre Água Prieta e a fronteira com o Arizona. Não caminhamos em linha reta, a rota foi serpenteando, em instantes parecia que o caminho era para voltar a Água Prieta ao invés de nos dirigir ao Arizona. Sei a quantidade de quilômetros que percorremos porque o coyote levava um aparelho tipo um relógio de pulso que também era uma bússula e mantinha um registro da distância percorrida.


Às doze da noite, em ponto, deram o sinal para cruzar a linha e foi quando uma viagem tranqüila se tornou um pesadelo; centenas de migrantes começaram a saltar os cercos de alambrado em tentativas de chegar ao outro lado sem serem interceptados pela Patrulha Fronteiriça, pessoas de todas as idades, crianças, adolescentes, adultos e idosos. Pessoas maiores de 70 anos de idade também estavam ali naquele monte de gente tratando de saltar. A desorganização total, a angustia e o medo transformaram aquele alambrado de arame em armas brancas que se encheriam de sangue fresco: pedaços de carne ficavam espetados, pele e cabelo.

Se escutava perfeitamente quando a pele se desgarrava e o arame cortava  carne, em ocasiões chegando até os ossos. Os gritos de dor eram contidos mordendo pedaços de trapos. Crianças eram atiradas de um lado a outro para caírem sem amortecimento algum sobre um chão de pedras, os idosos que caíam eram pisoteados pela turba. Eram quilômetros e quilômetros de pessoas saltando cercos de alambrado.

A lua iluminava a noite como se fosse um grande lampião nos caminhos da vila. Mais além das silhuetas se distinguiam os rostos e podiam serem lidas as caras e os olhares de medo e angústia. Não foi difícil para mim saltar as cercas de alambrado, cresci entre barrancos e realizando expedições de matagal com meus amigos de infância – os 16 Homens da minha Vida – entre os ranchos, as vilas e as fazendas.

Busquei um dos troncos podres que sustentavam o alambrado e me sujeitei a ele com ambas as mãos. Utilizei as linhas de arame como se fossem degraus de escada, e, chegando na parte mais alta da cerca, pulei para o outro lado. As pessoas faziam o contrário: queriam utilizar o sistema antigo de colocar um pé sobre a linha mais baixa e com uma mão levantar a que seguia, para passar inclinada. Isso já não funcionava por conta da quantidade de gente que passava ao mesmo tempo e o nível de desorganização disto. Cada qual saltava como podia e utilizava o método que sabia, causando com isto uma aglomeração e as feridas que ainda hoje têm suas correspondentes cicatrizes na pele e na alma de centenas de milhares ao longo dos anos. Essa coisa dos doze milhões de indocumentados nos Estados Unidos é uma tremenda treta, cruzam-se milhares a cada minuto por água, terra e ar.

Saltamos a primeira cerca e corremos para cruzar a ferrovia. Colocamos os suéteres e os capuzes sobre a rua e voltamos a correr em fileiras. O último do grupo recolheu as roupas e nos entregou quando chegamos ao outro cerco que já estava em território estadunidense. Curioso e real que a cerca do lado mexicano parecia aquelas de aldeia latino americana, onde a única pena era de que não passassem animais selvagens para dentro das hortas. Uma tremenda diferença para as cercas do lado estadunidense que foram construídas com maquinário de última geração.

Ao invés de troncos de madeira, havia vigas grossas de aço. As linhas de arame farpado estavam mais firmes e ajustadas – “tilintes”diríamos em minha terra natal, Jutiapa – o que fez com que aquela massa humana, indo saltar daquela maneira, deixasse um pouco mais de pele e derramassem um pouco mais de sangue antes de terminar de cruzar a fronteira.

Não havia maneira de colocar o pé e fazer baixar a linha de arame, que não cedia. Não cedia porque estava ajustada em uma forma inverossímil com juntas grossas soldadas às estruturas. Desconheço se este cerco estava somente em certa parte ou era ao longo da fronteira do deserto. As pessoas optaram por lançar-se, mesmo com as pontas, como se o que os esperava adiante fosse um pouco de rio. A roupa ficava presa a toda a pele, o cabelo ou a pele era empurrado pela turba que não media conseqüências, assim foi como deixaram pedaços de lábios, nariz e pele, penduradas em pontas de alambrado.

Vi pessoas que perderam olhos porque as pontas se incrustavam nas pupilas, homens que rasgavam os testículos. Nesse cerco ficaram dezenas de pessoas que se negaram a seguir porque não podiam cruzar e outras que pelo tamanho das feridas resultou impossível que continuassem.

A segunda cerca do lado estadunidense estava mais ajustada ainda e se transformou em outra espécie de moedor que deteve a outras centenas de pessoas, entre eles idosos, mulheres grávidas, feridos e exaustos. Vi coyotes puxarem facas de açougueiro e degolarem as pessoas que gritavam de dor por conta das feridas feitas pelas cercas. Os coyotes não queriam que nenhum lamento atraísse a Patrulha Fronteiriça, pois se fossemos descobertos, além das conseqüências para os migrantes, o negócio deles cairia e, se alguém os denunciasse, podiam ir para a cadeia por décadas. Com essas facas de açougueiro e pistolas, os coyotes ameaçavam as pessoas, a todos por igual, e com esta ação fizeram a todos nós pensarmos duas vezes antes de nos queixarmos de algo.

Gotas de sangue saltavam dos pescoços cortados e caíam na roupa de outros que, aglomerados, tentavam vencer o medo e superar a terceira cerca enquanto os feridos se desfaziam e caíam no chão em agonia, que a ninguém importava, que ninguém queria pensar a respeito. Todos estávamos muito assustados e preocupados com a própria sobrevivência, algo gerado pela situação que só pode compreender quem já cruzou a fronteira na clandestinidade. Nesses instantes de apreensão uma pessoa se dá conta de como cantara Don José Alfredo Jimenez em seu Camino de Guanajuato: “A vida não vale nada, a vida não vale nada, começa sempre chorando, e assim chorando se acaba, por isso é que nesse mundo, a vida não vale nada”.

O que faz a Patrulha Fronteiriça é levar os corpos para o necrotério dos povoados mais próximos e há aqueles que os lançam do outro lado da cerca, para que apodreçam em território mexicano e com isto não gastem o dinheiro do governo dos Estados Unidos com enterros de corpos aleatórios. Se são encontrados por migrantes e coyotes sucede algo similar, são tirados do caminho para que não estorvem as tentativas de outras pessoas.

É assim que ficam os corpos que voltam ao pó, unindo-se à erosão do deserto. Aqueles que morrem de sede, de fome, de cansaço e os centenas de milhares através dos anos que padeceram feridos, sangrando até morrerem totalmente vazios de laços e lembranças, buscam na agonia o abraço longínquo daqueles que ficaram a esperar seu regresso.

Eu também vivi a depressão pós fronteira, durante anos inteiros me habitou a Síndrome de Ulisses. Foi me consumindo minuto a minuto e me ensimesmou, roubou muito de mim; da minha alegria e do fato de ser extrovertida, passei ao silêncio total que me transformou em uma pessoa obscura e ensombrada. Em um bloco de gelo que se encerrou em exaustivas horas de trabalho, para não pensar e para não sentir, mas me foi possível, a fel me invadiu por completo.

A vida na fronteira não é nada, saberei eu. Por essas e outras razoes não há ninguém que me faça tirar os pés do chão e nenhum ego teve os devidos espinhos para me olhar de frente. Por mais lábias que me passem hoje, chamando-me poeta e escritora, buscando utilizar minha letra como mercadoria para fins póstumos, minha consciência não se vende. É fiel aos invisíveis porque vem de uma deles.

Cruzamos a terceira cerca e vimos como ficavam dezenas de pessoas presas entre os arames farpados e o desconcerto da orfandade migratória. Começava outro trajeto em minha vida, entre os cactos e a adversidade.

Glossário:

Coyote – Pessoa que em troca de dinheiro auxilia migrantes a cruzarem a fronteira entre México e EUA.

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