Já as distopias, isto é, lugares ou estados de extrema opressão e infelicidade, estes, mais infelizmente ainda, conseguem se fazer presentes. A série norte-americana The handmaid’s Tale (Crônica de uma Serva), de 2017, adaptação do romance distópico escrito pela canadense Margaret Atwood em 1985, mais do que mostrar um futuro inacreditavelmente opressor, apresenta, no entanto, algo mais raro no mundo ficcional, qual seja, o processo através do qual uma distopia social é produzida. Para nós, brasileiros já insatisfeitos com apenas os primeiros metros da “Ponte para o Futuro” golpista, elitista, machista, racista e homofóbica que está nos conduzindo a um futuro indubitavelmente asfixiante, a Crônica de uma Serva é cruelmente distópica: apresenta a incontornável impotência dos oprimidos diante dos opressores.
A ficção de Atwood apresenta um mundo no qual a poluição esterilizou quase todas as mulheres e o terrorismo é a maior ameaça. Em resposta a isso, os homens norte-americanos mais ricos e poderosos dissolveram o congresso, aboliram a Constituição, fizeram das forças militares milícias suas, e transformaram as pouquíssimas mulheres férteis que restaram em servas pessoais cujos úteros geram os seus filhos. E tudo isso regado ao mais radical fundamentalismo religioso. Os EUA e a sua mui celebrada democracia desaparecem dando lugar à República de Gilead, uma teocracia totalitária cristã. Em Gilead, uma nação dominada por homens ricos que precisam se reproduzir, os homossexuais são tratados como bestas abomináveis. Os gays são enforcados sumariamente. As lésbicas só escapam deste destino quando são férteis, todavia, tendo os seus clitóris extirpados para então serem enviadas às famílias ricas e servirem de útero escravo.
As servas são propriedade, são coisas reprodutoras de seus “comandantes”, isto é, de seus “donos semeadores” casados com mulheres estéreis. Não podem se dirigir a qualquer homem, nem mesmo aos seus donos. São proibidas de andarem sozinhas. Sempre saem acompanhadas de outras servas, para que umas sirvam de olho espião do “grande outro teocrático” às outras. Não há liberdade às mulheres em geral, férteis ou inférteis. Com efeito, tudo na história gira em torno da necessidade dos aristocratas masculinos de levarem seus genes e fortunas adiante em um mundo que, contudo, parece se recusar a dar prosseguimento natural à raça humana. Estranha e sábia natureza!
O que, entretanto, acho mais urgente apontar em The Handmaid’s Tale é o violento e rápido processo pelo qual sua distopia foi implantada. Offred, a serva protagonista da série, conta esse processo através de suas traumáticas memórias. Tudo começou quando o presidente dos EUA foi assassinado por terroristas – mote para a teocracia totalitária cristã ser instaurada. Poucos dias depois, um bando de milicianos armados entra na empresa na qual Offred trabalha para comunicar a nova lei do novo Estado, segundo a qual todas as mulheres estavam proibidas de trabalhar. Em seguida, vê que sua conta bancária foi bloqueada, e isso porque as mulheres foram também impedidas de terem propriedade. Tudo delas foi transferido para seus maridos. As que ão eram casadas tiveram seus patrimônios confiscados pelo Estado. Pior ainda, todas as mulheres passaram a ser propriedade dos homens; ou de seus maridos, ou dos que comandam a sociedade.
Offred e as suas contemporâneas, acostumadas a usufruírem da liberdade do dito “país mais democrático do mundo”, até se organizam em resistência imediata contra a mudança social que furtou delas todo e qualquer direito. Entretanto, a violência desmedida das forças milicianas que defendem o totalitarismo impede qualquer avanço delas. Civis são sumariamente assassinados ao expressarem a menor discordância em relação ao novo sistema. Offred e seu marido, desesperados, resolvem fugir com a filha do país. No entanto, a milícia os captura, mata o marido, sequestra e separa mãe e filha para que sejam escravizadas por famílias ricas estéreis. Offred é levada a um campo de concentração onde é fortuitamente treinada para ser produtora de bebês para a aristocracia, a despeito de sua resistente consciência a respeito do absurdo em que se transformou a realidade. Para uma mulher até então livre e realizada, a impossibilidade de controlar seu destino a obriga a permanecer livre somente na solidão isolada de seus pensamentos.
E porventura não é mais ou menos isso que nós, cidadãos brasileiros, estamos sendo obrigados a fazer diante da involução forçada que a falocracia oligárquica golpista está produzindo no nosso país? Com efeito, estamos vendo um podre poder avançar pujante e violentamente em função exclusiva de si esmo, furtando verticalmente nossos direitos, liberdades e futuro, sem que nada possamos fazer para barrar, quiçá reverter o distópico quadro. Até nos manifestamos coletiva e indignadamente contra tudo isso, mas, como a experiência vem mostrando, a interlocução do inimigo é sempre acachapante, em forma de cada vez mais bombas de efeito imoral e crânios rachados. Estamos sendo obrigados a engolir a seco esse amargo presente, e qualquer doçura utópica que ainda resta só sobrevive nas nossas imaginações, sem chance de ter lugar no real.
O grande problema é que este presente distópico, opressor e infeliz não se abate sobre todos, mas apenas sobre a maioria que não tem como evitar a opressão. Na verdade, essa imensa e assaz democratizada distopia é o alto preço a ser pago pela utopia, liberdade e felicidade de uma minoria opressora. A correlação com a desigualdade econômica é total. A riqueza dos 1% custa a miséria do restante. Simples, desumano e cruel assim. E enquanto o poder econômico puder comprar as melhores e mais mortais armas, tanto as servas de The Handmaid’s Tale, quanto nós, brasileiros neo-servos de homens brancos ricos golpistas estaremos todos condenados a mais amarga distopia para, com ela, sustentarmos a utopia de nossos algozes.
The Handmaid’s Tale não aponta saídas para essa vil conjuntura. Antes, deixa claro que não há saída. É uma bofetada na cara de todos nós que ainda cremos que o inimigo pode ser contido em sua ignomínia. Entretanto, talvez esteja aí a grande virtude do romance distópico de Atwood: fazer com que a inescapável insuportabilidade de uma distopia produza, subversiva e subterraneamente, um gigante Frankenstein utópico incontrolável capaz de, na sua bestialidade, matar o médico fascista que o criou. Contra toda opressão, resistência é fundamental. Se ela, contudo, ainda não pode ser exercida fisicamente, que seja ao menos cultivada metafisicamente, nas ideias secretas dos oprimidos, assim como faz Offred, que, se por um lado é serva da elilte, por outro ainda é senhora de seus ideais. E como na nossa atual distopia nós, os oprimidos, somos a imensa maioria, nosso primeiro trabalho revolucionário conjunto deve ser formar uma imensa constelação com os nossos ideais utópicos, e deles fazer as armas de nossa urgente jihad.