“Uma crítica à jurisprudência burguesa, do ponto de vista do socialismo científico, deve tomar como modelo a crítica à economia política burguesa, como o fez Marx. Para isso ela deve, antes de tudo, adentrar no território inimigo, ou seja, não deve deixar de lado as generalizações e as abstrações que foram trabalhadas pelos juristas burgueses e que se originaram de uma necessidade de sua própria época e de sua própria classe, mas, ao expor a análise dessas categorias abstratas, revelar seu verdadeiro significado, em outras palavras, demonstrar as condições históricas da forma jurídica.”PASHUKANIS, Evguiéni B. “Teoria Geral do Direito e Marxismo”. Boitempo Ed. Pg. 80.
No momento em que escrevemos esta Resenha a Operação Lava Jato segue o seu curso e o momento político do Brasil está numa situação de indefinição e expectativa: se há algo que se pode extrair das revelações do furo de reportagem da Rede Globo de Televisão acerca de delação de empresários da JBS envolvendo gravemente o presidente Temer é que a notícia da última quarta feira (17.05.2017) foi uma intervenção orquestrada junto ao poder judiciário e especificamente à Operação Lava Jato, responsável pela investigação. Foi assim também com relação à revelação da interceptação telefônica envolvendo Lula e Dilma, ao atropelo da lei, em conluio com a mídia, em particular com a Rede Globo, revelando uma relação de cumplicidade entre promotores, Juizes e mídia no sentido de subverter mesmo a ordem legal para incriminar o ex-presidente e impedir àquele momento uma eventual nomeação de Lula à Casa Civil.
Que o poder Judiciário se soma aos demais poderes como parte integrante do Estado, sendo de uma forma geral aparato repressivo-ideológico a serviço da classe dominante não deveria ser uma surpresa àqueles que compartilham a “visão social de mundo” ou o pressuposto teórico-metodológico marxista, marxista-leninista ou remotamente crítico. O problema é que especificamente o problema do direito e do judiciário, em face da crise brasileira, vem se acentuando de tal maneira que, parece-nos, a militância que se dedica a lutar e educar o povo e os trabalhadores para os grandes embates envolvendo a nova etapa da luta de classes que esxurge com a tomada do poder pelos golpistas[1]precisa ela mesma de uma nova educação.
Este livro é um importante instrumento de esclarecimento acerca do processo judicial envolvendo o ex-presidente Lula e as arbitrariedades promovidas pela operação Lava Jato. Foram convidados diversos juristas da área de Direito Constitucional, Direito Processual Penal e Direitos Humanos para dar detalhamentos acerca do problema jurídico envolvendo a defesa de Lula.
Lula é digno de críticas pela esquerda em face de governos que deixaram a desejar num sentido de ruptura anticapitalista: foi um governo reformista quase sem reformas, em que pese algumas medidas democráticas paliativas que num país como o Brasil estão longe de serem insignificante com as políticas de redução da miséria, a começar pelo Bolsa Família.
Mais do que isso, e independente de suas qualidades ou defeitos pessoais, Lula é produto de uma importante etapa de reorganização do movimento operário e greves dos últimos 3 anos da década de 1970 que criou as bases para um ascensão de diversos movimentos populares que fez esmorecer a ditadura militar e deu condão para um processo contraditório de redemocratização: por um lado através de leis como a de anistia em que houve o esquecimento das torturas e bestialidades praticadas pelos torturadores – lei considerada constitucional recentemente pelo STF; e por outro a consecução de uma constituição relativamente garantista, que incorpora uma série de direitos, por exemplo o das crianças, do meio ambiente e o da função social da propriedade, e que só poderia ser resultado de um momento em que os movimentos sociais, pastorais, movimentos do campo e partidos de esquerda estavam em reais condições de intervir na cena política.
Lula é o principal dirigente do PT e é uma peça estratégica do tabuleiro político – um líder popular que na atual situação pode canalizar um programa numa orientação diametralmente contrária à agenda de medidas de devastação da economia nacional, retirada de direitos sociais e privatizações. As arbitrariedades jurídicas que Lula sofre revelam algo: o aspecto jurídico aqui apenas denuncia algo. Como a passagem supracitada do grande jurista soviético, este “algo” não pode ser buscado na norma jurídica mas numa análise materialista, na análise da história que situa a Operação Lava Jato em primeiro lugar como um instrumento central da operação golpista que está em curso[2].
Infelizmente, mesmo setores da esquerda estão presas em seus sensos comuns e a demagogia da luta contra a corrupção faz vítima nas fileiras do movimento popular: não seria de se estranhar que “movimentos de massa” como os da Ucrânia ou os que presentemente infestam a Venezuela, patrocinados por provocadores a soldo do imperialismo, arrastassem bem intencionados lutadores[3]. Daí ser necessário alguns esclarecimentos básicos, mesmo jurídicos.
A Operação Lava Jato tem como inspiração a Operação Mãos Limpas (década de 1990) de Itália. Seu procedimento na Europa foi em muito semelhante ao que acontece no Brasil: criações de “forças tarefas” com mobilização aparatosa e midiática o que em si fere de morte a presunção da inocência; uma perspectiva de eliminação pelo descrédito de toda a classe política através das denúncias de corrupção; e a popularidade do Procurador Di Pietro e Juiz Giovanni Falconni. Desde a Itália, aliás, o Brasil importa institutos jurídicos como o da delação premiada, além da prisão cautelar com a finalidade da delação e a execração pública mancomunada com a mídia. O resultado na Itália da operação Mãos Limpas foi um vácuo dentro da classe política criando condições para a ascensão do semi- fascista Sílvio Berlusconi em 1992. Não há notícias de que a corrupção tenha diminuído na Itália desde então: apenas de que ela tenha se tornado mais sofisticada e difícil de se combater. A Itália continua sendo um dos países onde se detecta na população maior sentimento de impunidade em face deste tipo de crime.
O grande problema da Corrupção é que este tem sido utilizado como carro mote para o recrudescimento do aparato repressivo-ideológico do estado que implicará num endurecimento do regime político como um todo: é o que vem sendo ora proposto ora aplicado na prática como a relativização da proibição do uso de provas ilícitas o que permitiria o uso de grampos ilegais como forma de obtenção de prova atropelando a lei, ou mesmo a obtenção de uma confissão por meios de coação ou tortura, como em tempos sombrios de ditadura; violação do princípio do juiz natural com a ilícita prorrogação da competência do processo de Lula para Curitiba e mesmo do princípio primário da imparcialidade judiciária, quando até em entrevistas para imprensa, o Juiz Moro, fora dos autos, vem demonstrando qual é o seu lado na lide.
Aliás, de tão parcial a posição do Judiciário, restou claro o apoio ao ex-presidente no último dia 10.05.2017 com um ato com 50 mil pessoas em frente ao 4º Tribunal Regional Federal de Curitiba. Estamos aqui diante de um momento importante: desde os rudimentos mais elementares do marxismo, sabemos que a função ideológica mais primária dos tribunais é zelar ao menos nas aparências pela imparcialidade. Quando se escancara a parcialidade do Tribunal ao ponto de uma manifestação angariar milhares, além de transformar Curitiba num palco de manifestação militar, com praças desfilando, denota-se que há um desajuste, uma crise.
Todavia, a esquerda precisa avançar, e avançar aqui significa entender que “a luta pela afirmação dos direitos fundamentais no Brasil” não é um problema jurídico. Os autores suscitam a Lei Processual Penal e criticam o modelo em que o Juiz que conduz a investigação seja o mesmo que julgue. Fala-se mesmo em Processo Penal do Espetáculo (Guy D.) diante das conhecidas relações promíscuas entre mídia e poder, podendo se suscitar a abusiva condução coercitiva de Lula (sem nenhum amparo legal, desde que nunca se recusou ao comparecimento perante o juízo do 4ª TRF) transmitida em todos os telejornais com o fito de desmoralizar o adversário político. Suscita-se mesmo a tese do jurista Carl Schmitt de Estado de Exceção quando numa inusitada decisão sobre eventual punição disciplinar envolvendo o Juiz Sérgio Moro e a sua ilícita revelação das interceptação telefônica, absolve-se o magistrado pois o desembargadores entenderam que a Operação Lava Jato é uma “exceção” e não se enquadra no procedimento comum – e de acordo com o jurista alemão, com alguma razão, quem decide o que é a exceção, detém o poder[4].
Todavia, a tradição marxista avançou bastante nos conhecimentos sobre o fenômeno jurídico e hoje mais do que nunca, precisamos estudar com mais afinco e profundidade o direito: são juízes e promotores que estão conduzindo junto às frações subordinadas ao imperialismo o atual rumo da história brasileira e do golpe de estado no país. Para além de duas divisas – por um lado o reformismo e o socialismo jurídico que irá buscar soluções no sistema jurídico através de reformas, o que surge na maioria dos artigos, e por outro lado, pela simples negativa com a ideia da representação em fetiche do estado como uma ideologia – é tempo de se voltar ao velho Marx e Pashukanis, dois autores que deram uma concretude ao direito, situando-o não dentro de uma velha escolástica de “estrutura” e “superestrutura”, mas no próprio DNA do capitalismo.
O Direito é um fenômeno especificamente capitalista. A forma jurídica deriva da forma mercantil. A compra e venda da força de trabalho esteve lastreada pelo liame jurídico dos contratos e de seu pressuposto, pessoas dotadas de uma capacidade jurídica que referimos como Subjetividade Jurídica. Foi necessário que rompessem com relação de dependência e domínio pessoal que marca o modo de produção escravista e feudal e se conformassem no mercado como sujeitos de direitos aptos a livre negociarem a força de trabalho como mercadoria para sua compra e venda.
A existência do Direito é sistema de uma sociabilidade voltada à acumulação lastreada em exploração do trabalho assalariado e atravessado por contradições de classe.
Em Pashukanis, o Direito não é só ideologia e fetiche, portanto, mas também é um fenômeno real.
Diria o grande jurista soviético que do mesmo modo que a riqueza da sociedade capitalista assume a forma de uma enorme coleção de mercadorias, também a sociedade se apresenta como uma cadeia ininterrupta de relações jurídicas.
Para além da contraposição estrutura e superestrutura, o direito é dialeticamente considerado forma do processo real de troca – o direito está no plano da troca, ou em termos marxianos, é parte da sociedade civil.
A especificidade da relação jurídica gira em torno da relação social engendrada entre proprietários de mercadorias. A crítica à jurisprudência burguesa do ponto de vista do socialismo científico deve tomar como modelo a à crítica da economia política burguesa.
Nestes termos, há algumas consequências: a luta pelo fim do capitalismo é a luta pelo fim do direito; não há espaço para ilusões acerca de promoção de justiça ou combate de corrupção através do direito burguês, a não ser num âmbito limitado, contraditório e que deve estar em primeiro lugar livre de ilusões jurídicas. O direito não é o terreno dos trabalhadores e do povo: deve ser utilizado como um instrumento de defesa, no âmbito da tática e no limite como forma para revelar as suas próprias contradições quanto ao seu particular e específico caráter ideológico.
Ganhar a disputa ideológica acerca da corrupção será uma árdua batalha de entendimento do que é o Estado e do que é o Direito. De outro modo, sempre ter em mente que não se trata de uma discussão moral mas de um problema de base, ou do que Althusser chama de determinação.
Ademais, a curta experiência da Comuna de Paris nos trás sim algumas lições que nos servem como referência mesmo para enfrentar por fora do âmbito da moral o debate sobre corrupção: naquela revolução, cada representante do povo recebe a remuneração média de um trabalhador, nenhum centavo a mais; controle popular sobre os mandatos e revogabilidade a qualquer instante dos cargos eletivos; eletividade do cargo de juízes; fim do trabalho noturno; separação da religião do estado e fim do ensino religioso. O sistema igualitário com uma perspectiva de fim de sociedade cingida em classes sociais.
Foram apenas 72 dias e esta curta experiência é um lapso que dá conta da originalidade de uma nova forma de fazer política para além das fronteiras do direito burguês e seu corolário, a sociedade pautada pela produção de mercadoria e pela lei da acumulação.
[1] Setores lastreados por afinidades junto ao imperialismo que no presente momento identificamos mas ainda não sabemos dosar com precisão. Cerca de 25% do PIB brasileiro está vinculado à moeda internacional. É um bom ponto de partida para se perceber a origem de uma base de deslocamento da burguesia que irá romper com o governo Dilma e assumir um posicionamento mais radicalmente associado aos interesses externos.
[2] Muito errado portanto o pensamento de que o Golpe de Estado se exauriu com a retirada de Dilma R. da presidência. Mais do que isto, a palavra de ordem que deve unificar a frente única (que não é um programa político) é a luta contra o golpe, pela anulação de todas medidas tomadas pelos usurpadores golpistas e pela restituição do mandato. Só este pode ser o sentido de “Fora Temer!”.
[3] No Brasil CST/PSOL e PSTU sempre apoiam o imperialismo e seus agentes provocadores. Quem leva esta político ao extremo é o grupelho universitário MNN.
[4]
LEI Nº 9.296, DE 24 DE JULHO DE 1996. Art. 10. Constitui crime realizar interceptação de comunicações telefônicas, de informática ou telemática, ou quebrar segredo da Justiça, sem autorização judicial ou com objetivos não autorizados em lei.
Pena: reclusão, de dois a quatro anos, e multa.