«Recordo que em São Paulo, ao tomar o avião para Lisboa em 2015, disse à minha companheira: esta será a minha última travessia do Atlântico, o oceano que cruzara dezenas de vezes. Era uma decisão e uma certeza.
Há dias, ao dizer adeus a Paris, estava consciente de que não voltaria ali.
Desta vez a certeza de que aquela fora a última viagem a França nascia da consciência de um envelhecimento galopante que inviabiliza deslocações ao estrangeiro.
Foram múltiplas, entrelaçadas e com frequência nebulosas as minhas meditações neste fim de ano em Paris.
Recordei a primeira visita há 66 anos, um reencontro com o imaginado através da história e da literatura. Ao descer do avião conheci uma jovem funcionária do turismo francês que me impressionou pela beleza: a minha futura mulher, mãe dos meus três filhos.
Viajamos juntos pelas praias da Normandia; ao largo avistavam-se ainda, encalhadas, as carcaças dos navios britânicos e americanos destruídos durante o desembarque de junho de 1944. (...)
Paris confrontou-me comigo nestes dias. Eu também não me reencontro no homem que visitou a cidade dezenas de vezes.Apoiado numa bengala, seria hoje incapaz, sem a minha companheira, de me movimentar na rede do metro que antes me era familiar, de caminhar sozinho pelos grandes boulevards, de me orientar num trânsito febricitante. A surdez agrava-se progressivamente; a visão enfraquece,a memória cai a cada dia.
Atravessei a ponte para o Novo Ano em reencontro com a minha filha e netos, mas marcado pela certeza da aceleração do envelhecimento.
Saí de Paris uma única vez para rever em Versailles Jean Salem e Marie Pierre, a companheira que o tornou feliz. O filho de Henri Alleg, eminente filósofo marxista, é hoje o mais íntimo dos amigos que me estimam no vasto mundo que percorri. Nevava nesse dia e, ao atravessar os subúrbios brancos no RER, senti com força a dor e a consciência do fim da vida útil.»
Talvez sejam os limites biológicos da nossa condição de homens e mulheres. Ou talvez seja só a simplicidade desassombrada com que olhava a morte. O que é certo é que o Miguel se esquecera de um pormenor importante.
O Che Guevara, que o Miguel conheceu, dizia que «onde quer que a morte nos surpreenda, será bem recebida, desde que o nosso grito de guerra seja escutado». O grito de guerra do Miguel ecoa hoje nos cinco continentes, não mais com a sua voz gentil, mas com milhões de vozes de indígenas, jovens, mulheres, trabalhadores, desempregados, comunistas, revolucionários, portugueses, cubanos, colombianos, galegos, franceses, brasileiros e de tantas mais nações quantas forem as razões para lutar.
Por isso, que fique assente, Miguel: o teu grito foi escutado. Morreste, nas tuas palavras, como o «macedónio Alexandre, que morreu jovem sem conhecer uma só derrota»: as tuas ideias têm a juventude de todos os jovens que nelas encontram justiça. Morreste sem que nem o reformismo, nem a fama, nem a ambição, nem o dinheiro, nem a desesperança, nem o medo te conseguissem derrotar. Como te agradecer isto?
Eu, que só te conheci superficialmente, leio-te há muitos anos e, muitos anos depois da tua morte física, vou continuar a ler-te, a estudar-te, a concordar e a discordar de ti, mas, sempre, a admirar-te. E como eu, a juventude do mundo continuará a ler-te e a contigo desbravar selvas ao lado das guerrilhas dos pobres levantados em armas. Contigo continuaremos a percorrer os túmulos escuros das antigas civilizações esquecidas. Contigo continuaremos a resistir, por muito que nos doa, como os comunistas dignos desse título.
Colosso intelectual, Miguel Urbano Rodrigues foi um dos mais importantes pensadores e jornalistas portugueses: das quase duas dezenas de livros que deu à estampa, sobressai uma cultura enciclopédica, uma compreensão cristalina dos caminhos da história humana e, sempre, um compromisso com a classe trabalhadora, com a justiça, com a revolução social.
Ao longo da sua vida longa, viajada e cheia, nas redacções do Diário de Notícias, da brasileira Visão, do Diário Ilustrado, do Avante! ou de O Diário, nos parlamentos de Portugal ou da Europa, nas mil e uma aventuras que nos deixou escritas, o Miguel viveu como um exemplo: honesto, transparente, generoso, trabalhador, amigo. E, mais que tudo, Miguel Urbano morreu comunista, fiel ao seu partido de sempre, o Partido Comunista Português. Leu e escreveu, literalmente, até ao fim.
No Alentejo do Miguel, canta-se: «Eu sou devedor à Terra / A Terra me está devendo / A Terra paga-me em vida / Eu pago à Terra em morrendo». É assim com uma parte maior das mulheres e dos homens, mas não com o Miguel. Tudo o que o Miguel devia à Terra, pagou-o em vida. Saibamos devolver-lhe o favor, lutando, com ele e como ele, até ao fim.
Fonte: Manifesto74