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Diário Liberdade
Segunda, 31 Dezembro 2018 18:43

2018, Ano Marx (e XII) / Mais marxismo para armar a crítica galega

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Mauricio Castro

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Nesta comemoraçom dos 200 anos de Karl Marx, vimos abundantes referências a quem já muitas vezes demonstrou a vigência do seu pensamento, nem que seja pola constatada impossibilidade de ser eludido enquanto teoria social.


Quase sempre, no pensamento burguês dominante, ele é trazido de volta à atualidade para o atacar ou, no máximo, admitir a sua valia intelectual… para o século XIX. Inclusive por parte da esquerda atual, maioritariamente afastada do seu pensamento, o recurso a Marx nom passa de declaraçons protocolares sobre “o guia para a açom”, traduzido quase sempre em princípios moralizantes mais próximos de Kant ou Rousseau, quando nom de reacionários branqueados pola pós-modernidade, como Nietzsche, liberais apologetas da propriedade privada como Locke, ou do imperialismo, como Weber. Por trás de uns e outros estám as defesas formais e abstratas dos chamados direitos humanos, o moralismo, a redistribuiçom da renda, o individualismo metodológico, o romantismo, o irracionalismo… som várias as propostas e tendências que, pretendendo partir da análise marxista, ficam presas em ilusons e idealismos sobre um inexistente capitalismo “mais humano”.

Nos textos precedentes desta série já referimos criticamente algumhas dessas tendências no seio da esquerda atual, tentando divulgar várias categorias e aspetos relevantes do pensamento de Karl Marx, cuja validade atual se prende com a própria vigência do princípio fundante do capital, hoje como no século XIX. Referimo-nos à valorizaçom do capital como eixo de todo o sistema, entendo por tal a articulaçom crescente de umha relaçom social baseada na exploraçom da força de trabalho, para que aqueles abocados a viverem dessa venda (os trabalhadores e trabalhadoras) criem “livremente” o valor necessário para dar continuidade ao processo alargado de produçom e acumulaçom de capital orientado para o mercado.

mais-valia, apropriada privadamente por um segmento cada vez mais minoritário e poderoso de umha populaçom só no papel “livre e igual”, fruto da concentraçom e centralizaçom do capital, resulta desse processo (trabalho nom pago) e permite o crescimento económico. Ao seu serviço, conteúdos e formas existentes já em anteriores modos de produçom fôrom subsumidos e incorporados polo capital com umha nova funcionalidade. É o caso do sexismo, do racismo ou da opressom étnica e nacional. Também atividades de produçom centrais noutros modos de produçom, como a protagonizada pola pequena propriedade camponesa ou mesmo a escravatura, assi como outras a ganhar um protagonismo sem precedentes, como a crescente destruiçom ambiental em grande escala, imprescindível para garantir a continuidade de um processo determinado e dominado no seu conjunto pola Lei do Valor.

Começamos, por isso, pondo de relevo que se trata de um processo objetivo, construído em torno da exploraçom de umha classe social por outra, e nom da maldade ou voracidade de uns indivíduos contra outros, o que conduziria ao já referido moralismo. Nom que a questom nom mereça avaliaçom moral, mas é preciso fazer a distinçom entre isso e a avaliaçom objetiva do desenvolvimento dos processos históricos.

É isso que vemos repetidamente em Marx (e Engels), mas nem sempre é bem compreendido. Temos um exemplo na tam debatida abordagem da irrupçom do capitalismo, que eles julgam como progressiva. É sabido que ambos considerárom o modo de produçom em que viviam e em que nós ainda vivemos como um avanço histórico em relaçom ao feudalismo e a outros modos de produçom anteriores, apesar da imposiçom do novo sistema a ferro e fogo através de mecanismos de acumulaçom origináriacomo o colonialismo. Porém, esse reconhecimento factual nom impede que fagam umha crítica demolidora da brutalidade dos processos coloniais concretos, condenando-os e pondo-se do lado dos povos e etnias oprimidas (Irlanda, Polónia, Argélia, Índia, China...).

Da mesma forma, a defesa da democracia política em abstrato nom pode ocultar a sua natureza exploradora. Quer dizer, o conteúdo das relaçons de produçom poderá adotar formas mais ou menos democráticas, em funçom das possibilidades concretas para a lucratividade do sistema em cada etapa. Isso explica que as crises sejam marcadas polo endurecimento dos regimes políticos que servem aos mecanismos de exploraçom, como estamos a ver na atualidade em todo o mundo, na seqüência da última grande crise, detonada umha década atrás.

A reclamaçom de “mais democracia política” ou “mais direitos humanos” costuma deixar fora a reclamaçom do fim da exploraçom como conteúdo necessário para possibilitar novas formas de democracia qualitativamente diferentes. A esquerda atual assumiu maioritariamente a impossibilidade de ultrapassar a chamada “economia de mercado” como sistema, limitando assi a sua atuaçom às medidas compensatórias dos efeitos mais brutais do capitalismo. No entanto, fica cada vez mais clara a impossibilidade das vias reformistas, pola deriva autodestrutiva do sistema, magistralmente analisada por Marx na sua teoria das crises.

Tentamos portanto apelar à integridade do pensamento marxiano enquanto conceçom e método de análise para a transformaçom social. Gostava de que este conjunto de artigos nom fosse interpretado como umha espécie de “catálogo de temas tratados por Marx”, como se a sua obra se limitasse a um elenco temático. Apesar da dimensom e variedade de aspetos da sua obra, o carácter inconcluso e aberto da mesma convida a que a consideremos como ponto de partida para novos contributos, aprofundamentos e críticas da própria obra. Isso porque é o seu carácter científico, dialético, crítico e histórico o que lhe dá a validade que conserva até hoje. Sendo umha análise ontológica de um modo de produçom em que ainda estamos inseridos, a sua vigência parte da correspondência entre a análise e a realidade de que parte, pois no estudo científico o objeto tem sempre prioridade sobre o sujeito.

Na medida que o capitalismo venha a ser substituído por umha nova sociabilidade histórica –e será, se a nossa espécie nom for entretanto conduzida à autoextinçom– poderá a conceçom marxista perder utilidade na abordagem de um mundo capitalista já ultrapassado. Até aí, os novos contributos para aprofundar a crítica do sistema virám enriquecer os de Marx, sem lhe tirar validade no fundamental, como até hoje ficou comprovado.

Talvez a categoria de totalidade seja, junto à de historicidade, a fundamental na hora de compreender o pensamento marxiano. A realidade é um complexo de totalidades cujo estudo e apreensom críticos possibilitam o protagonismo humano no andamento histórico. Isto é assi desde que a nossa espécie se afirmou como ser social, através do trabalho como especificidade humana.

Tendo evoluído a história, só recentemente, para a divisom social do trabalho a partir de um certo nível de desenvolvimento das forças produtivas (localizado na chamada Revoluçom Neolítica), a categoria de classe ganha a máxima importáncia frente ao indivíduo particular. Temos a partir daí a evoluçom de um complexo social que hoje pode ser reconstruído. Parafraseando Marx, é a anatomia do ser humano que permite estudar a do macaco; da mesma forma, é a anatomia do capitalismo que permite estudar a dos modos de produçom anteriores.

O capital, surgido do desdobramento histórico do comércio e da acumulaçom de capital na Europa, fica em posiçom hegemónica frente a outras variadas vias de desenvolvimento histórico anteriores, expostas por Marx no chamado Caderno Kovalesvki (1879) e nos seus extensos Apontamentos etnológicos (1880-1883): feudal, escravista, comunal-agrária, comunal-estatal, ancestral, agrária-privada..., espalhado a todo o planeta mediante o domínio capitalista, na etapa imperialista atual, por parte de um grupo reduzido de potências imperialistas.

A historicidade do processo é um dos grandes contributos de Marx para a sua compreensom, já que a burguesia tenta, a partir da sua instalaçom como nova classe dominante e sob ameaça do movimento operário, passar a ideia de que se trata de umha condiçom natural e essencial da sociabilidade humana.

A crítica da economia política inaugurada por Marx (e Engels) ajuda a compreender, mediante o estudo sistemático e o método materialista e dialético, que o capitalismo constitui um modo de produçom, nem o único possível nem o definitivo, ficando aberta a partir do seu próprio desenvolvimento histórico a sua superaçom.

Nos artigos anteriores tentamos deitar algumha luz sobre questons veladas pola ideologia dominante, que limita a democracia e a liberdadea formalismos ao serviço do domínio da classe burguesa. Ética, política e ideologia tornam máscaras de umha alienaçom com base e existência material, sendo fundamental compreendermos que som os interesses materiais das classes e a correlaçom de forças entre elas que determinam a forma institucional-estatal em cada momento, os termos da democracia ou ditadura possíveis e os princípios ético-morais imperantes.

O capital representa um alto grau de desenvolvimento das forças produtivas nos estados imperialistas, cujas burguesias submetem a grande maioria da humanidade às condiçons necessárias para garantir o avanço do processo de acumulaçom de capital que fundamenta o sistema. Nesse senso, afirma Marx, tam alienada está a classe burguesa como a trabalhadora, pois ambas som personificaçons dos interesses do capital: umha criaçom humana que se impom sobre o seu criador para lhe impor umha forma de sociabilidade baseada na compra-venda de força de trabalho, na produçom de mercadorias e na mercantilizaçom crescente da vida.

Nada escapa ao domínio do capital: as relaçons interpessoais, o meio natural, a saúde, a habitaçom, a alimentaçom, a cultura, os tempos livres… todo fica subsumido às suas necessidades, construindo toda umha rede de justificaçom ideológica e institucional ao seu serviço.

Nom será o puro voluntarismo, individual ou coletivo, desconectado das possibilidades reais oferecidas por cada momento histórico, mas tampouco quaisquer predeterminismos mecánicos, os que possibilitem a conquista de umha nova sociabilidade baseada na centralidade dos valores de uso (as necessidades humanas). Será a conquista de novas formas de relaçons de produçom, socializando a propriedade do excedente e democratizando a atividade produtiva, prévia derrota da classe capitalista dominante, que crie umha perspectiva de verdadeira liberdade, baseada no igualitarismo e na possibilidade efetiva de escolha.

Permitam-me concluir esta série divulgativa e comemorativa apelando à importáncia do estudo da realidade social, como Marx fijo, tendo em conta diferentes níveis de abstraçom. Se bem o capital tem umha série de leis gerais que o presidem como modo histórico de produçom, o estudo concreto da sua realizaçom em cada espaço de acumulaçomlevará a captar as particularidades de cada formaçom social no seu movimento histórico.

Nestes textos apresentamos unicamente algumhas características e categorias pertencentes a um nível mais geral ou abstrato, mas é necessário descer ao concreto do conteúdo e da forma do capitalismo, no nosso caso o realmente existente na Galiza, com todas as suas especificidades. É claro que o nosso país, como realidade etnonacional, é anterior ao próprio capitalismo; porém, foi no ascenso do capital como sistema hegemónico que a formaçom social galega ficou relegada enquanto apêndice do projeto nacional espanhol e com um papel subordinado na divisom internacional do trabalho.

Cabe entom formular perguntas ainda nom cabalmente respondidas, tais como: Que caracteriza o tantas vezes apontado “atraso galego” frente a outras naçons oprimidas europeias? Porque a nossa burguesia se incorporou ao projeto nacional da burguesia espanhola? Como caracterizar hoje a forma do capitalismo galego e a sua inserçom no capitalismo espanhol, europeu e mundial?

Trata-se, sem dúvida, de um trabalho pendente que só pode ser abordado adequadamente a partir das categorias e do método de análise do marxismo, hoje praticamente banido dos espaços académicos e políticos da Galiza. A grave carência de um campo de estudo sério com essa perspectiva tem simultaneamente como premissa e como resultado o escasso desenvolvimento de um movimento revolucionário galego.

Foi com o intuito de fomentar a reflexom concreta e coletiva sobre a nossa problemática nacional de classe que apresentamos esta reivindicaçom, achamos que racionalmente argumentada, do pensamento de Karl Marx, a partir da firme convicçom de que constitui a principal ferramenta para um rearmamento crítico da classe trabalhadora galega.

Galiza, dezembro de 2018. Ano do Bicentenário do nascimento de Karl Marx.

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