As classes dominantes europeias, muito afeitas a grandezas de primeiros lugares, tiveram de se acocorar na posição adestrada de imperialista-adjunto. Mas não sem bile: «Eles têm o dinheiro, mas nós temos a talha dourada! Eles têm o poder, mas são nossos os passaportes dos inventores e artistas emigrados!».
É um rancor antigo e verdadeiro, malgrado rebuçado quando o patrão está a ver, mas que vem à tona, em toda a sua desfaçatez, quando se trata de fazer troça das supostas incultura e estupidez dos EUA.
«Realmente aqueles americanos... só um país muito estúpido é que pondera mesmo eleger o Trump...» É isto que, nas mesas de jantar em frente aos televisores, se sói ouvir no rescaldo da coroação de Trump como o candidato republicano. A comunicação social europeia tem tratado o fenómeno de Trump como uma alegoria da estupidez alheia, uma piada de mau gosto que faz menear sofisticadas e condescendentes cabeças. Na verdade, Trump e o seu país são um espelho, ainda que distorcido pelo oceano que nos separa, de tudo o que é hoje a Europa.
Que nenhum europeu se choque com o populismo de Trump; não temos também nós um Boris Johnson? Que nenhum europeu se escandalize com o discurso racista e xenófobo de Trump; ou esqueceram-se da Hungria, da Dinamarca, da França, da Polónia... Que ninguém se ria da representação nacional de Trump, ou acham que os portugueses têm andado nessas matérias melhor servidos? Estranhamente, o desdém por Trump contrasta, na comunicação social da classe dominante, diga-se novamente, com a simpatia por Hillary Clinton.
A maioria dos sofisticadíssimos capitalistas europeus já votou por Hillary Clinton, a testa-de-ferro do Walmart que há não muito tempo descrevia os jovens negros como «super-predadores»; a multi-milionária enterrada até ao pescoço em negócios nebulosos com farmacêuticas e fundos de especulação; a arquitecta da guerra na Líbia; o falcão do holocausto na Síria; a secretária de Estado do governo que mais imigrantes deportou na História dos EUA. É ela, não Trump, a escolha de Hollande, Barroso, Schulz, Tsipras, Juncker, Dijsselbloem e Draghi. É essa a única explicação para o retrato caricatural de Trump, pela comunicação social europeia, que obvia a compreensão de um fenómeno com raízes profundas e de cuja compreensão depende o futuro do globo.
Trump não é, ao invés da tese do aglomerados de comentadores de turno, um candidato «anti-sistema». Representa, na verdade, os interesses de sectores específicos da alta burguesia, actualmente minoritários, procurando uma aliança de fachada proto-fascista com a pequena e a média burguesia em torno da indústria, dos serviços e do imobiliário. No discurso, esta oscilação permite o extremar do racismo, do conservadorismo cultural, da religião e do anti-comunismo. A nível externo, corresponde a um modelo neocolonial semelhante à política estado-unidense da primeira metade do século XX.
Clinton, por seu turno, não desdenha nenhum destes propósitos: é simplesmente mais favorável ao «capital fictício», para usar a expressão de Marx, da especulação financeira e da integração económica prevista no âmbito do TTIP e do TTP. Mais sucintamente, escolher entre Clinton e Trump é o mesmo que escolher entre a Pepsi e a Coca-Cola, entre a Exxon Mobil ou a Bank of America, entre invadir a Coreia ou orquestrar um golpe de Estado na Bielorrússia...
As incríveis semelhanças entre as duas candidaturas conheceram, esta semana, um momento catártico, quando Melania Trump, esposa do respectivo, plagiou descaradamente o discurso de Michele Obama, esposa do respectivo. A comunicação social europeia celebrou o ensejo apontando, graciosa, a burrice da imigrante eslovena e do seu esposo xenófobo, mas o que importa do episódio é só isto: quando os radicais de extrema-direita coincidem tanto com os moderados que lhes copiam e repetem, palavra por palavra, os discursos importantes... então das duas uma... ou os moderados são mais radicais do que parecem ou os radicais são, no fundo, moderados disfarçados.