Caso a abertura do processo seja confirmada, o Brasil dará mais um passo rumo ao rompimento da estabilidade institucional – que nunca foi lá tão instável assim, diga-se. Impeachment sem provas contra a presidenta é golpe branco. Trata-se de um problema real e concreto para a classe trabalhadora, para os movimentos populares e para a esquerda em geral. A quebra da democracia através desse golpeachment traz à tona um estado de exceção que já existe na prática na base da sociedade, dificultando ainda mais a construção de avanços e das transformações de que a maior parte da população necessita. Porém, é preciso ter claro o seguinte: com ou sem golpeachment, o retrocesso já começou.
Temos vivido, especialmente nos últimos meses, graves retrocessos tanto no campo político quanto na esfera social. O fascismo mostra a sua cara todos os dias, a violência como prática política fere nossa liberdade e desestimula os que lutam por uma sociedade mais democrática. O avanço do respeito à diferença em alguns setores tem recebido como resposta conservadora o ódio. E é esse ódio que tem tomado as ruas com violência – inclusive física – contra os que pensam ou agem diferente do que o senso comum – ignorante e intolerante – espera. O fascismo está aí, a intolerância está aí, e, com ou sem golpeachment, vai demorar para desaparecer – e parece provável que ainda cresça bastante antes de ser vencido.
Já na esfera política, o retrocesso tem vários nomes e números. Eduardo Cunha é uma boa representação de boa parte deles, mas também dentro do governo o retrocesso já está instalado há tempos. As medidas de ajuste fiscal nada mais são do que isso. O PLP 257/2016, proposto pelo próprio governo, é a mais recente parte desse conjunto de ações, e traz uma série de possibilidades profundamente preocupantes, com medidas que enfraquecem o Estado, atacam os trabalhadores e sugerem um novo avanço da iniciativa privada sobre os direitos e serviços públicos. E não se trata de um projeto isolado, mas inserido em um contexto no qual o governo faz acordos para rifar o pré-sal, aprova a Lei Antiterrorismo – que criminaliza os movimentos sociais – e, em um ano de grave crise política, sinaliza positivamente para a direita a todo instante para tentar retomar algum nível de estabilidade no Congresso. Também os retrocessos no âmbito político institucional não irão parar tão cedo, com ou sem golpeachment.
No domingo, com manifestações pró e contra o impeachment em várias cidades do Brasil, teremos mais um exemplo concreto da luta de classes em desenvolvimento. O que não quer dizer que o governo esteja ao lado dos trabalhadores, não é disso que se trata. Mas teremos de um lado os movimentos populares organizados, o povo, os que defendem avanços democratizantes para o país; e, de outro, as elites econômicas e políticas e os setores da classe média que vinculam-se predominantemente ao pensamento dos “de cima”. De um lado, os que defendem mais direitos, mais pluralidade, mais igualdade. De outro, os que querem menos direitos para os outros, os que buscam ampliar a exploração da classe trabalhadora e o afastamento entre o povo e a política. Essa representação da luta de classes se dará nas ruas, não no Congresso, não na política institucional.
Com Dilma, Temer ou Aécio, seguiremos com a economia voltada para o grande capital, com ataques aos direitos dos trabalhadores e com uma sociedade crescentemente intolerante. Seguiremos com um Congresso extremamente conservador e corrupto. Lamentavelmente, em três mandatos e um pouco mais à frente do governo federal o Partido dos Trabalhadores não buscou modificar a forma de se fazer política no país. Pelo contrário, mostrou-se ainda mais competente do que seus antecessores mais próximos em atuar em meio ao jogo político dos “de cima”. Construiu políticas sociais importantes, é verdade, e que estão, sim, colocadas sob ameaça – com ou sem Dilma, mas principalmente sem. Mas não fez a reforma política, não fez a reforma fiscal, não democratizou a mídia, não fortaleceu os movimentos populares. Como governo reformista sem reformas, como intermediário descartável, caiu em um brete.
Isso não quer dizer que não seja necessário dizer não ao golpeachment. Como escrevi no início deste artigo, o rompimento da estabilidade democrática mínima abre precedentes perigosos e enfraquece todos os que lutam por transformações estruturais no país. Porém, não se pode acreditar que, caso o processo política contra Dilma seja derrotado domingo na Câmara ou mais tarde no Senado, estaremos todos bem e o país passará a avançar. Não há saída mágica e tampouco deve haver esperança depositada em uma possível continuidade do governo Dilma. Devemos defender a democracia, mas o fato é que temos um governo que, em si, é indefensável.
É fora da política institucional, portanto, que se encontra a única saída real – o que não quer dizer que esse caminho não deva incidir sobre a institucionalidade. É preciso dizer não ao golpeachment, mas sem a ilusão de que, caso a trama seja derrotada, estaremos em mares favoráveis. O momento é de as esquerdas se reacomodarem e voltarem-se para suas bases. A eterna corrida eleitoral em que se transformou a disputa política no Brasil não favorece a construção de alternativas e de caminhos em direção a mudanças robustas e duráveis. É necessário e urgente começar a reconstruir a luta de baixo para cima, de forma democrática, dialogada, verdadeiramente emancipatória. Apenas assim, sem a imposição dos jogos eleitorais e da política institucional, poderemos construir um país capaz de vencer alguns de seus principais males.