A estratégia do golpe: ter transformado em crime uma prática corriqueira de governança, muito usada pelos golpistas aliás, seja em governos passados, seja nos atuais. Estamos falando de manobras fiscais, que, entretanto, na linguagem do golpe é chamada de “pedaladas fiscais”. Crime, obviamente, não para todos, muito menos para os próprios golpistas, mas apenas para Dilma. E para quê? Ora, para que eles, e somente eles, possam seguir “pedalando fiscalmente”, contudo, diferente de Dilma, é preciso frisar, contra os interesses populares.
Agora, sejamos sinceros: quem, cotidianamente, não comete espécie de “pedaladas fiscais” com suas finanças pessoais? O crédito, essência do mundo capitalista, é a “pedalada fiscal” legal e institucionalizada por excelência. A mais democrática aliás. E para que não seja crime, basta pagar em tempo o que se tomou a crédito. Para Dilma, entretanto, essa regra universal não deve funcionar. A presidente afastada, em 2015, fez manobras fiscais, isto é, pegou dinheiro de onde tinha, colocou onde não tinha, e, antes da conta vencer, pagou 72,4 bilhões de reais, saldo acumulado até dezembro de 2015. Mas...
Para a primeira mulher a governar o Brasil, contudo, é negado aquilo que nossos cartões de crédito e cheques especiais nos oferecem insidiosamente. Mais grave, a espetacular criminalização das manobras fiscais de Dilma é a magia política que não só oblitera o fato de que os criminosos golpistas que afastaram a presidenta sempre agiram da mesma forma, como também, e principalmente, purifica-os estrategicamente, para que, doravante, eles possam seguir manobrando o fisco brasilis do seu modo antidemocrático de sempre. Só que agora com o privilégio de um Cristo político espetacularizado, Dilma, que passa e incorporar simbolicamente os pecados deles.
Dilma, com efeito, foi transformada em espécie de Cristo. Pagou com a sua carne política os pecados fiscais de todos, não só os dos que vieram antes dela, mas também os de seus contemporâneos “pedaladores”. Assim como Jesus, que na cruz redimiu a humanidade da inobservância às leis e à existência de Deus, a crucificação política de Dilma outrossim redime os golpistas da velha inobservância às leis que os fazem ser quem são. Agora, a corrupta oligarquia política brasileira pode mentir a si mesma e ao povo brasileiro que está limpa, purificada justamente pelo banho de sangue com o qual inundou a arena política do país e mediante o qual afastou Dilma do lugar que a maioria dos cidadãos a colocaram.
Dilma Rousseff, crucificada e destituída, traz uma mensagem universal: pedaladas fiscais, na verdade, nunca foram, não são, nem serão crime. Basta ver os antecessores e os atuais crucificadores da presidenta afastada. Todavia, criptografado nessa antidemocrática mensagem está que tais manobras financeiras serão crimes sim, oportuna e pontualmente, para alguns bois-de-piranha simbólicos, senão para que a manada “pedalante” e golpista siga atravessando ilesa –pela tal “Ponte para o futuro”- o mar de lama que ela mesma produz e onde se sente em casa.
Entretanto, se há uma verdade duramente aclarada com a “crucificação” de Dilma, é que, a despeito dos nossos ideais democráticos, no fim das contas governa quem tem mais poder, que, com efeito, no mundo capitalista, é quem tem mais dinheiro, e não mais votos. Essa é a intragável verdade à qual devemos atentar se quisermos que, no futuro, 422 votos oligarcas&golpistas não tenham mais poder que 54.501.118 votos cidadãos. Melhor dito, se realmente desejarmos viver em um verdadeira democracia, e não em uma oligarquia plena cujo apelido estratégico, não obstante, calhou de ser “democracia”. Até lá, infelizmente, Dilma e outros iguais a ela serão Cristos funcionais aos novos projetos da velha oligarquia brasileira.
Foto: Lula Marques / Fotos Públicas