Tratados sempre separadamente pela comunicação social, atenuados pelos comentadores de serviço e finalmente votados ao esquecimento, os dois casos merecem ser postos lado a lado porque mostram aquilo que sempre se procura esconder: os abusos de poder, as arbitrariedades, a violência física, o racismo fazem parte do modus operandi das autoridades.
Os factos apurados falam por si. Eis o resumo de cada uma das investigações.
Dezanove militares do Regimento de Comandos estão acusados pela morte, em Setembro de 2016, de dois instruendos do curso de comandos. Sete deles foram acusados dos crimes de abuso de autoridade e ofensas graves à integridade física, agravados com a morte dos instruendos Hugo Abreu e Dylan Silva. São eles um tenente-coronel, um capitão, um capitão médico, um sargento enfermeiro, dois tenentes e um sargento.
Na investigação veio ainda a lume e está sob inquérito o facto de o comandante do regimento, coronel Dores Moreira, ter mantido preso por três dias um outro instruendo que quis desistir do curso após a morte dos dois colegas, tendo sido ameaçado de ser considerado desertor. Diz a procuradora encarregada da investigação que muitos outros dos formandos quiseram igualmente desistir do curso na sequência daquelas mortes, mas foram impedidos de o fazer.
O mesmo comandante é acusado de falsificação de documentos por ter apresentado aos investigadores um guião sobre o racionamento da água dada aos instruendos que referia o limite de 5 litros por dia, quando na realidade eram 3 litros. Pretendia com isso atirar para cima dos instrutores a responsabilidade pela desidratação dos formandos e com isso ilibar os oficiais superiores, ele incluído.
Foi ainda determinada a investigação criminal aos cursos de 2014 e 2015 por agressões praticadas sobre instruendos.
Num outro caso, dezoito agentes da polícia, incluindo um chefe, da esquadra de Alfragide (que controla o bairro da Cova da Moura, com maioria de população cabo-verdeana) foram acusados de tortura, sequestro, ofensa à integridade física qualificada, ódio e discriminação racial, crimes estes praticados sobre seis jovens negros entre 5 e 7 de Fevereiro de 2015. Há ainda acusação de falsificação de relatórios e de autos de notícia e de testemunho.
Diz ainda o Ministério Público que todos os polícias da esquadra participaram nos crimes, uns activamente outros por cumplicidade, pelo que também uma subcomissária e uma agente estão acusadas de omissão de auxílio e de denúncia.
Por se mostrarem sem fundamento e falsas, foram arquivadas as queixas feitas pelos polícias, segundo as quais os jovens teriam querido invadir a esquadra para libertar um amigo.
De acordo com relatos dos jornais, os jovens, presos arbitrariamente, foram espancados no interior da esquadra a ponto de terem de receber tratamento hospitalar e de uma agente ter de lavar o chão da esquadra para eliminar as manchas de sangue. Foram ainda sujeitos às mais soezes agressões verbais, todas de índole racista, incluindo ameaças de morte e de extermínio.
Esta investigação do MP sucede a uma outra, conduzida pela Inspecção Geral da Administração Interna (entidade encarregada de velar pelas boas práticas dos agentes da autoridade...), que tinha mandado arquivar as queixas feitas contra a actuação dos polícias.
Foi a persistência dos jovens agredidos (com o apoio da Associação Moinho da Juventude, actuando no bairro) que permitiu reabrir a investigação e dar crédito aos testemunhos das vítimas.
Apesar da gravidade dos factos apurados por qualquer uma das investigações, não é garantido que haja condenações dos responsáveis na proporção das consequências conhecidas. Mil e uma atenuantes hão-de vir a terreiro na tentativa de ilibar não só os directos implicados, mas também as instituições. E se não for possível inocentar ambos, ao menos far-se-á tudo para salvar o bom nome das instituições — para que a máquina continue a funcionar.
Aliás, essa manobra está sempre em curso, na medida em que se procura — pela atenuação dos factos, pelo esquecimento, pela fragmentação dos casos — dar cada caso como uma excepção, fruto quando muito de “erros” ou de “exageros” de quem está “no terreno”.
A individualização das culpas, segundo a sempre útil teoria da maçã podre, é o recurso de última instância para salvar os dedos das instituições, quando não é possível salvar os anéis.
Estes factos, que incomodam o poder por revelarem o que vai por detrás das aparências, são a ponta de um iceberg de violência e de abuso, sempre sob a capa da “legitimidade democrática”. Mas é nestes casos que se vê a verdadeira face do poder, de como é exercido o domínio sobre as classes de baixo, entre que tipo de gente são recrutados e como são treinados os agentes encarregados da violência — de como é mantida “a ordem”.