Terminado o estágio, e tendo-me sido oferecido ficar sem aumento de custos, isto é, ficando a receber o salário mínimo por um trabalho que fazia há quase dois anos por um valor acima desse, não aceitei. Acabava-se o estágio, acabava-se o dinheiro do Estado, e voltávamos ao salário mínimo. Há uma década atrás, eu já era aquilo que agora se pode chamar um “falso estágio”. Porquê falso? Não fui estagiar naquela empresa. Fui trabalhar naquela empresa. Já lá trabalhava antes, e o que havia a aprender estaria resolvido em um mês no máximo. O meu empregador da altura usufruiu de um trabalhador qualificado e capacitado para o emprego por um salário mínimo. Hoje é pior. Hoje eu não teria recebido tanto valor de estágio nem teria tido um estágio tão longo. Gostei do trabalho que fiz mas não aceitei continuar a fazê-lo por metade do salário.
Infelizmente, desde essa altura, e particularmente no último Governo, os estágios foram utilizados para garantir exatamente essa camuflagem, com dinheiro proveniente dos fundos estruturais europeus. Entre os grandes beneficiários estiveram os grandes patrões — a SONAE, a EDP, a PT, o BPI, o BCP, o BANIF e unidades de saúde privadas —, que organizaram através de esquemas bem montados, o pleno usufruto do dinheiro público para financiar a contratação precária de dezenas de milhares de pessoas (principalmente jovens).
Para conseguir que houvesse mais estágios com o mesmo dinheiro, o Governo Passos-Portas reduziu a duração dos estágios e diminuiu o valor das bolsas de estágios. Depois da sangria dos despedimentos na função pública, foram foram ainda utilizados para suprir as necessidades dos serviços do Estado: através do Programa de Estágios Profissionais na Administração Local (PEPAL) e do Programa de Estágios Profissionais na Administração Pública Central (PEPAC).
E chegámos a Outubro de 2015: Governo novo, vida nova. Ou nem por isso? As recentes notícias do assalto diretamente feito por patrões a estagiários revelam a extensão do à-vontade com que quem emprega e já conhece o IEFP põe e dispõe não só dos salários dos seus empregados como do dinheiro público que lhe é entregue para ajudar a sua empresa. Não é mais do que isso que fazem os falsos estágios: ajudar empresas a contratar pessoas, fingindo que as vão formar, quando a única coisa que vão fazer é trabalhar. Lia-se há poucos dias no Facebook um sócio proprietário e sócio gerente de uma empresa de engenharia postar a seguinte mensagem: “Preciso de ENGENHEIRO CIVIL ESTAGIÁRIO pelo IEFP para trabalhar (não é emprego, é trabalho mesmo) em escritório”. É a normalização dos falsos estágios que permite não só ao dono desta empresa cometer uma perversão como anunciá-la no seu perfil pessoal de Facebook.
O resto, os crimes de patrões que roubam o salário aos estagiários, o assalto à mão armada dos que os mandam ir levantar o dinheiro ao multibanco para lhes dar em numerário, que os obrigam a pagar a sua contribuição para a Segurança Social, só podem ser tratados como os crimes que são: e quem os faz tem de cumprir a pena adequada ao assalto e à fraude. Esperemos pelos resultados do Ministério Público. Da auditoria do Instituto de Emprego e Formação Profissional espera-se pouco: está há demasiado tempo a ser gerido como um coutada de "boys" que serve para camuflar os números de desemprego quando dá jeito e garantir que as mesmas empresas privadas que dizem que há Estado a mais continuem a viver à conta deste.
Sem novas regras para os estágios, eles apenas servirão para introduzir no mercado de trabalho mais precariedade e mais roubo, ilegal ou legal, à mão armada ou através dos falsos estágios.
Artigo publicado em p3.publico.pta 5 de setembro de 2016