«Após semanas a entregar currículos em sites de emprego, supermercados, lojas e restaurantes, foi com grande entusiasmo que recebi o telefonema de uma empresa de outsourcing que me convocava para uma entrevista na sua sede, onde estaria o representante de uma empresa de telecomunicações. Lembro-me de nesse dia ter festejado com os meus amigos, e de como fiquei expectante uns dias mais tarde, depois de ouvir o que ouvi na entrevista.
Na sala estava cerca de uma dúzia de candidatos; fizemos uma breve apresentação individual, onde descobri ser o candidato mais novo e com menos experiência profissional. Recordo-me do desespero de um pai de família desempregado que tinha de alimentar a filha, e que para isso pedia “qualquer trabalho, nem que fosse a lavar o chão”. A avaliar-nos estavam duas pessoas da empresa de outsourcing – a Work4Now – e o representante da Vodafone, “a melhor empresa de telecomunicações do mercado”. De facto, o discurso não poderia ser mais cativante: um part-time de 4 horas por um salário-base de 300 e poucos euros, a que se somavam as comissões de vendas – que fariam ascender o rendimento mensal a um valor não inferior a seiscentos ou setecentos euros, segundo nos foi dito. A minha ingenuidade não me permitia desconfiar daquelas palavras; mais tarde descobriria que, no mundo das vendas, o copo vê-se sempre meio cheio, no pior dos pontos de vista.
Nesse mesmo dia recebi uma resposta positiva da Work4Now, e dois dias depois estava numa custosa formação de fieldmarketing, onde em poucas horas tive de engolir nomes e características de produtos de que nunca ouvira falar. A formação começou pelas 11 horas da manhã; quando de lá saí, já anoitecia, trazia comigo o desconsolo de saber que havia perdido um dia e que teria de voltar, daí a uma semana, pois não passara na avaliação final.
Assinei um contrato de formação de 2 meses com a Work4Now no início de Dezembro. Entre as cláusulas estipulava-se um vencimento base de 252 euros, mais 3 por cada refeição, para um horário de 4 h (das 18 às 22h), deixando-se as comissões ao critério da Vodafone, juntamente com o poder de rescindir arbitrariamente o contrato. Depressa me apercebi que aquele não era o trabalho para o qual me candidatara animadamente.
Vi o part-time de 4 horas cair por terra logo no primeiro dia, quando me pediram para estar no escritório às 16 (e não foram poucas as vezes em que tive de lá almoçar, chegando às 13 ou 14h). Aí organizava a minha pasta, reunia o material e preenchia os flyers com o meu contacto, chateava pessoas com telefonemas e chateava-me a mim também, até às 17 ou 18 horas, altura em que partíamos para o terreno. É claro que estas horas extra não eram pagas, as horas a mais não eram contadas e tudo se passava na informalidade. Ouvi dizer algumas vezes que a Vodafone recorria também a equipas de vendas independentes, e que eram elas as primeiras a ser enviadas para “zonas virgens” em detrimento das equipas internas. Verdade ou mito, a verdade é que era rara a porta onde batia que não tinha sido já importunada duas ou três vezes, quer pela Vodafone, quer por empresas concorrentes, e assim multiplicavam-se as hipóteses de me deparar com um morador maldisposto e impaciente. Todas as técnicas que aprendera com outros vendedores e toda a boa-disposição que conseguia encontrar serviam-me de pouco face à apatia (na melhor das hipóteses) das pessoas perante um produto tão igual àquele que elas já possuíam, tanto que a maioria dos clientes que conseguia angariar não dispunha de qualquer serviço TvNetVoz. Percorríamos repetidas vezes os mesmos prédios, perscrutávamos bem cada porta, e por volta das 22h recolhíamos ao carro. Chegava a casa pouco antes das 23h, exausto e enervado com o meu insucesso.
Tínhamos de fazer obrigatoriamente 7 instalações mensais, sob pena de despedimento, sendo que as comissões só eram entregues no segundo mês, caso nesse mês também se cumprisse com o número mínimo de instalações. Aqueles que, como eu, não conseguissem vender 3 pacotes durante a semana, tinham também de ir trabalhar ao Sábado. Era estimulada a competição entre grupos e entre membros de um grupo, com a divulgação de estatísticas e indicadores de toda a espécie, com o enaltecimento dos melhores vendedores, e com a recepção constante de mensagens que davam conta do número de vendas de cada pessoa e de cada grupo. Por vezes tínhamos de contornar as ordens dos superiores e operar secretamente em zonas interditas, para cumprir com as metas; outras vezes fazíamos acordos com vendedores de outras operadoras, prometendo dinheiro em troca de clientes.
No final de cada mês, o valor do “salário-base” transferido para a minha conta ia diminuindo sem qualquer justificação. Inicialmente nos 312 euros, desceu para os 295 euros em Janeiro e para os 211 em Fevereiro. Depois de endereçar vários emails à Work4Now a pedir uma explicação para o corte, devolveram-me 58 euros.
Saí da Vodafone no final de Fevereiro, um mês depois de ter assinado o contrato de trabalho. Durante esses três meses, vi aparecerem e desaparecerem muitas caras. Nessa altura o descontentamento dos trabalhadores era palpável, não só por se estar numa má época para vendas, e pelo aperto do controlo da direcção sobre o desempenho individual, mas também pela insatisfação quanto às zonas de trabalho e ao próprio produto.
Não pude deixar de suspirar de alívio quando voltei as costas, pela última vez, aos telefones, aos papéis com contactos e às escadas de centenas de prédios. Talvez já não suspirem dessa forma os muitos vendedores que, ao contrário de mim, tenham uma família para sustentar.