A “geringonça” sobreviveu ao seu primeiro ano e a esquerda institucional pode reclamar para si alguns sucessos da fórmula encontrada. Para quê procurar outro caminho?
Há, sem dúvida, uma mudança sensível no ambiente político do país. Onde, há dois anos, nos perguntávamos todos os dias o que mais iria o Governo Passos-Portas inventar amanhã para roubar o povo, e o que mais iria inventar amanhã para engordar as grandes fortunas, hoje passou-se a discutir, ao menos, prazos e ritmos da reposição do poder de compra.
Afrouxamento da orgia austeritária
O que foi roubado está roubado, e podemos admitir que a discussão sobre reposições seja em larga medida hipócrita. Mas o vício paga à virtude esse tributo porque se atingiu um ponto de saturação e foi necessário voltar a fingir que o Estado tem funções reguladoras.
Finge-se novamente que o contrato social prevalece sobre a luta de classes – essa, que víamos ultimamente, em versão rapina insaciável dos ricos. E retoma-se um discurso de “preocupações sociais”, de “protecção dos mais fracos”, entre outros eufemismos. Ao discurso das “preocupações sociais” junta-se além disso o que postula as virtudes económicas de uma certa reanimação da procura interna.
Paralelamente, o Governo questiona alguns fundamentos das privatizações mais escandalosas, como é nomeadamente o caso da TAP, e refreia a voracidade demasiado pressurosa dos vários candidatos à privatização da Caixa Geral de Depósitos.
Mais: a “geringonça” não sai apenas favorecida numa comparação com o Governo Passos-Portas, ela ganha também aos pontos quando comparada com outras experiências europeias. Ao passo que a fórmula portuguesa sobreviveu ao seu primeiro ano, outras tentativas de afirmar perante Bruxelas uma alternativa ao fundamentalismo austeritário fracassaram ou estão à beira do fracasso.
Na Grécia, o Governo do Syriza apostou em convencer a Comissão Europeia sobre a viabilidade de um acordo em que todos ficassem satisfeitos. Esqueceu a luta de classes e, quando ela lhe caiu sobre a cabeça na forma de um ultimato do inimigo, capitulou. Hoje, manda a polícia dispersar pensionistas e idosos à bastonada e a gás lacrimogéneo.
Em Espanha, o Podemos apostou em obter uma votação que o colocasse como segundo partido mais forte no parlamento. E apostou que, com esse trunfo, repetiria em versão melhorada a fórmula da “geringonça”: ele próprio a governar, acolitado pelo PSOE. Falhou no cálculo eleitoral e falhou na solução de recurso que seria a de um Governo de Pedro Sánchez.
Num momento em que Victor Orbán revê autoritariamente a Constituição húngara, Marine Le Pen surge como séria candidata à Presidência francesa e Boris Johnson gere a vitória xenófoba do “Brexit”, num momento também em que o Syriza traiu e o Podemos perdeu um importante primeiro assalto, fica portanto de pé a modesta aliança parlamentar portuguesa, que Portas, a babar-se de fúria e desprezo, tinha classificado como “geringonça”.
Aritmética parlamentar ou luta de classes?
A mudança do ambiente político não é um mérito do PS. Tinha sido um Governo do PS, liderado por José Sócrates, a abrir as portas à orgia austeritária de Passos-Portas. Por sua vontade, Costa retomaria o mesmo curso do compatriota socialista e imitaria, no Governo, a orientação de outros correligionários europeus, como foi notoriamente o caso do PASOK na Grécia.
No que dele depende, o Governo do PS tem limitado drasticamente a reposição do poder de compra de assalariados e pensionistas. O prometido aumento do salário mínimo prossegue a conta-gotas, uma gota em cada ano, e os aumentos de pensões mínimas roçam o ultraje.
Ao longo do ano, outros episódios, como a nomeação dos administradores da CGD ou a impunidade política dos secretários de Estado que viajam à boleia da GALP foram traindo a natureza do Governo Costa. A manifestação dos velhos tiques de prepotência e favorecimento pessoal do PS só se vê inibida por este governar, desta vez, em minoria.
Se Costa não é, na essência, muito diferente de Sócrates, e se o Governo Costa é de seu natural tão inclinado como o PASOK a seguir as ordens de Bruxelas, a explicação da trégua muito relativa na ofensiva austeritária tem de estar noutro lado. Há quem a tenha procurado, precisamente, na aritmética parlamentar. O factor de contenção representado por comunistas e bloquistas seria, nesta explicação, a chave para entender que Costa mantivesse o rumo apesar das pressões de Bruxelas.
A teoria das virtudes da governação em minoria pretende mesmo esclarecer um paradoxo notório: com as mãos atadas pelos seus compromissos à esquerda, Costa mantém uma governação mais independente de Bruxelas do que o Syriza, que começou mais à esquerda mas capitulou e lançou às malvas todo o seu programa.
O que esta teoria não explica é por que motivo o PS, depois de ter feito uma campanha eleitoral de direita, acabou por aceitar esses compromissos à esquerda. Enquanto partido de insuspeita lealdade à burguesia, o PS podia muito bem ter recusado a via da negociação com BE e PCP, como o PSOE a recusou com o Podemos. Depois, ficaria com o dilema de se abster ou votar contra uma nova edição do Governo Passos-Portas. Mas podemos supor que Costa, com a sua reconhecida versatilidade política, entenderia mais rapidamente do que Sánchez que fechar a porta à esquerda implicava abri-la à direita. E não perderia, para tirar conclusões, tanto tempo como o seu correligionário espanhol.
Ora, foi precisamente a sua lealdade à burguesia que levou o PS, em circunstâncias diferentes, a optar por uma via diferente do PSOE e a abrir um diálogo à esquerda que o partido espanhol recusou. O PS tinha acabado de perder as eleições contra uma direita odiada por bons motivos. Entre o original e a cópia que se anunciava no discurso de Costa, houve mais eleitorado a votar no original. E houve mais eleitorado a votar comunista e sobretudo bloquista, para significar a vontade de uma viragem autêntica.
O resultado eleitoral era um efeito diferido do grande susto que abalou a burguesia entre 15 de Setembro de 2012 e 3 de Março de 2013. Que no lapso de seis meses uma pequena capital como Lisboa fosse inundada por duas manifestações com um milhão de pessoas, era um sinal inequívoco do abismo onde podia conduzir a política austeritária de Passos-Portas. Em 2015, socialistas e direita pensavam que essa onda teria passado. As eleições vieram recordar-lhes que não. A fórmula da “geringonça” foi aceite pela burguesia como meio profiláctico, para impedir novas explosões que ameaçariam conduzir a uma autêntica primavera ibérica.
Faz falta uma alternativa de luta?
Voltamos assim à pergunta inicial. Dir-se-á que faz falta uma alternativa ao PS, mas que a esquerda parlamentar tem mostrado capacidade para cobrar os compromissos que negociou com ele. Acontece que a profilaxia de novas explosões deixará de pesar na política de Lisboa e Bruxelas logo que uma prolongada desmobilização desacredite a ameaça da rua.
Uma ala esquerda da “geringonça” poderá instar o Governo a repor o poder de compra da classe trabalhadora, aumentar salários e pensões, travar a liquidação em preços de saldo do património público – enfim, opor-se à conspiração entre Bruxelas e Lisboa contra o povo. Mas, no dia em que o esforço para exercer essa pressão tenha passado a depender apenas da aritmética parlamentar, o Governo Costa não terá dúvidas em colar-se às exigências de Bruxelas e em tornar-se o seu mais convicto paladino.
É certo que nem BE nem PCP podem fabricar uma vaga de lutas. Um partido revolucionário também não poderia fazê-lo. Mas as forças parlamentares poderiam repetir incansavelmente que o factor decisivo está fora do parlamento e que a força decisiva é a que se tenha na luta.
Quanto ao Orçamento do Estado, o BE já praticamente indicou que está a reclamar alterações negociáveis e que irá, de qualquer modo, votar a favor. O PCP não indicou o seu sentido de voto, porque quer manter até ao último instante um suspense favorável a conseguir do Governo algumas concessões menores. Mas o Governo sabe perfeitamente que pode contar com o voto favorável do PCP.
O problema nem é tanto o de BE e PCP terem colaborado com o PS para torpedear a solução Passos-Portas, e nem sequer o de terem viabilizado o Governo Costa e continuarem a viabilizá-lo na aprovação anual de cada Orçamento. O problema é muito mais o de formularem uma equação exclusivamente parlamentar e não agitarem as suas propostas na sociedade, para fazerem delas o centro da batalha agitativa que deveria preceder a aprovação do Orçamento.
Mas, para concluir, entremos por um instante no terreno da contrafactualidade, imperdoável para a ciência social e indispensável para a luta política. Um movimento de massas despertado para o debate orçamental, interventivo e actuante, seria meio caminho andado para começar a tomar corpo uma alternativa política libertada da obsessão parlamentar. Se a direita, com as suas fantasias de regresso ao poder, encontrasse agora pela frente uma alternativa de luta, ela certamente daria um golpe de rins e chamaria a si a viabilização do Governo Costa, para impedi-lo de negociar à esquerda.
Lutar mais e melhor, lutar onde devemos e com quem devemos, não significa que estejamos a reabrir o caminho à direita.