O feminismo comunitário parte do princípio de não enfrentar e nem construir a partir dos direitos individuais, mas, sim, coletivos; a partir dessa comunidade que é lugar de identidade comum, de memória ancestral, de conjuntura particular e que compara com um corpo que tem sua parte homem, sua parte mulher e sua parte transgênero. O patriarcado faz com que esse corpo-comunidade caminhe desequilibrado, precário e aleijado e deve ser autônomo. “A partir do feminismo comunitário, estamos dizendo que se as outras revoluções fracassaram, que se o sistema patriarcal voltou, foi porque não se levou em conta a metade de cada povo, que somos nós, mulheres. Os atores das revoluções eram os homens, não a comunidade. Por isso, nunca houve essa mudança”. Partindo deste delineamento, as feministas comunitárias recompõem conceitos como patriarcado, território, corpo e violência estrutural.
O feminismo comunitário constitui hoje um movimento de construção, teórico-prático permanente, sobretudo pela mão de mulheres indígenas, e se estende por toda a América Latina. O feminismo comunitário se constrói a partir das ruas, não a partir de partidos, porque, segundo Julieta, “não deixaremos nossos sonhos nas mãos de nenhum político”.
Julieta visitou o Estado espanhol em outubro do ano passado, por meio da organização Perifèries, oferecendo oficinas e palestras em vários lugares. O objetivo desta viagem foi o de aproximar dos movimentos sociais este feminismo construído a partir dos povos do Sul, muito em sintonia com o paradigma do Bem Viver indígena, facilitando também um diálogo com os feminismos de ruptura do Norte global.
Entrevistei-a em Alicante, em uma manhã de descanso e passeios pela praia, sem muito pensar e com o ânimo de poder registrar algumas das coisas que havia dito em suas oficinas e palestras e que me tocaram por dentro, considerando que poderia ser interessante difundi-las. Aqui, vão algumas de suas reflexões.
A entrevista é de Patricia Dopazo Gallego, publicada por Rebelión, 18-05-2016. A tradução é do Cepat.
Eis a entrevista.
O que o feminismo comunitário contribui aos feminismos?
Em geral, ao feminismo não interessou, nem no Norte e nem no Sul, os setores populares ou empobrecidos, menos ainda os setores campesinos, e em nada os indígenas. Movimentou-se historicamente no elitismo, na intelectualidade, nas universidades... com os estudantes, esses setores, classe média ou classe média alta; que também são mulheres. Uniu algumas classes, mas, com algumas exceções, não se pode dizer que tenha se centrado na classe operária, nem em setores populares. Esse salto qualitativo está sendo dado pelo feminismo comunitário, porque ganha sentido exatamente nas comunidades indígenas, camponesas, bairros populares ou juntas de vizinhos. Surge a partir ‘do outro lado’, mas não é unicamente para ‘esse lado’. A partir daí, estamos revolucionando teórica, política e conceitualmente, e também em nossas práticas e no esboço da aspiração que temos: revolucionar o mundo a partir das mulheres, de nós com nós. Não é apoiar aos companheiros homens em sua revolução e lhes dar papeizinhos com nossas demandas para que as incluam. Nós montamos a plataforma de luta onde estão compreendidos os companheiros homens e as pessoas intersexuais. Isso é o que está mudando a base de construção política prática e de proposta do mundo, essa é a diferença do feminismo comunitário, que nasce na Bolívia, a partir da memória de nossas comunidades indígenas campesinas e a partir do processo de mudança.
Quando você vai às comunidades e aos bairros, quando fala, ali, do feminismo comunitário, como delineia o discurso? O que é o mais importante?
A primeira coisa que apresentamos é que o próprio processo, o caminho, é o objetivo. E nesse caminho não se pode combater a violência com violência, não se pode combater a corrupção com métodos corruptos. Como dizia a afro-lésbica feminista Audre Lorde: “Não iremos destruir a casa do amo com as ferramentas do amo”. Deve ser um caminho para construir, para pensar, para conhecer. É fundamental inventar novas formas de comunicação para chegar a nossas companheiras, para apresentar o gênero como algo politizado, não despolitizado; a comunidade, o entroncamento patriarcal, tudo com ferramentas inspiradas na educação popular, com cores, etc., fundamentalmente com símbolos presentes na lida cotidiano das companheiras. No entanto, esta forma de comunicação vai além da educação popular, tem uma visão feminista, usamos o corpo, o teatro, o mímico, a música, pinturas, simbologias, técnicas como as da respiração, musicoterapia, regressões... Tudo o que nos sirva para fazer compreender conceitos que podem parecer difíceis, mas que conseguimos explicar. Também usamos as letras e os livros, é claro, conseguimos desmistificá-los, que é algo muito importante.
Por que a criatividade lhe parece importante?
Ela nos faz bem, nos dá muita energia, mas socialmente nos permite não estar ao alcance do sistema. O que o sistema faz é localizar permanentemente o que estamos fazendo. Sempre estão se ocupando disso, do que fazemos e do que pensamos, controlando, informando-se de como nos movemos para despolitizar os movimentos, diluir a energia. A criatividade permite que a cada minuto estejamos saindo. A criatividade, além disso, emite um impulso constante, uma energia constante, e é um prazer.
Tem a ver com ter a mente sempre desperta, alerta.
Sim, mas precisa se plasmar, não tem só que ser possibilidade; a criatividade tem que ser realização. Todo mundo tem a capacidade de criar. É saber olhar de maneira distinta, emprestar o ouvido ao que antes você não prestava atenção, construir com as pessoas e seres vivos que você não se fixa. Para ter elementos criativos não é preciso ser uma gênia, a genialidade é saber reunir de uma maneira diferente o que está, o que há, confluir.
Uma das coisas que nós olhamos com muito carinho e gozo é a criatividade cotidiana das mulheres: a partir de como se organizar para que as wawitas (meninas e meninos) comam seu papa, todos os dias estão inventando como sustentar a vida, como se divertir em meio a tanta violência, como gerir os meios. A capacidade criativa das mulheres é alucinante e como feministas comunitárias estamos sempre ajuntando isso. E outra coisa é a Natureza, que não fala nossa linguagem, mas vai comunicando... agora, por exemplo, olhando estas ondas... é uma delícia.
A criatividade é individualista?
Não, não pode haver criatividade individualista. É tarefa de cada uma porque este corpo nos permite interagir com a vida, com o mundo, com a história, com a cotidianidade que também é história. Interagir de uma maneira concreta, porque cada uma de nós é irrepetível, cada uma de nós se relaciona com tudo isso de uma maneira única e isso é um fato individual. Você olha a partir de sua própria realidade, mas é necessariamente coletiva: nos recursos que você utiliza, na inspiração que tem, na ação e fruto que irá tirar. É coletiva, vem coletivamente e retorna coletivamente. Vem do coletivo, da comunidade e volta à comunidade. É preciso exercer esta autoconsciência de todo esse processo político-histórico de inter-relação de maneira distinta, para responder a esta conjuntura, ao desespero deste momento. É preciso atuar a partir da comunidade. O feminismo comunitário é uma reivindicação, uma convocação, um chamado, um convite, uma provocação, uma sedução também para todas nós que o tornamos possível, para que não nos distanciemos, porque gostamos de estar nisto. E é verdade, porque até agora ninguém se foi (risos).
Os afetos são imprescindíveis para os movimentos sociais?
Claro! O amor é político! Uma das coisas que sempre dizemos é que nós fazemos política como um profundo ato de amor, amamos a nosso povo, e o que nos move é isso, somos apaixonadas por nosso povo: as pessoas, a natureza, a paisagem... e por amor inventamos todas as metodologias e a facilitação que utilizamos, procuramos explicar ao nosso povo como lhe amamos, como queremos que seja amanhã, como gostaríamos de viver... E essa é a ação política: expressar nossos desejos e esperanças. Estamos apaixonadas pelo processo de mudança que se vive atualmente. Então, inventamo-nos em tudo para poder acompanhar, explicar, apaixonar, gozar, seduzir, comer, alimentar... O fluir da vida e da esperança é isso. E assim entendemos a política. Algo que seja sem sentimentos, sem paixão, não é para nós a revolução. É grave que pessoas dos movimentos sociais sejam capazes de ser frias ou de praticar a objetividade, a neutralidade política, como uma espécie de assepsia, como a dos cientistas. Essa divisão entre o subjetivo e o objetivo não existe.
Em Alcoi, você falou da palavra “utopia”. É preciso transformá-la?
Nós queremos revolucionar tudo e não ficaremos aguardando para que todo o mundo passe por uma revolução para gozar o que queremos... É agora mesmo, quando estivermos na Bolívia, que realizaremos nossa utopia em espaços comunitários, a cada dia e a cada instante. Diz-se que é a utopia que nos impele a ir avançando, mas eu quero desfrutar agora, quero gozar agora, quer ver a minhas companheiras e o meu povo desfrutar, comer e dormir bem. A utopia deve ser agora.
E qual é o seu sonho?
Eu gostaria de um dia dormir, acordar, e que não existissem as fronteiras, que não precisasse de chamá-la de valenciana, nem de catalã, nem boliviana, nem lésbica, nem aimará, nem branca, nem negra... Um mundo no qual tivéssemos continuidade com a Natureza, sem distinções entre racional e natureza. Seríamos o que seríamos, com toda a força, mas sem a necessidade de nos rotular frente a qualquer normatividade. Teríamos nossas culturas, preferências, a diversidade, a multiculturalidade e multissexualidade, sem relações de poder, sem precisar que estas relações sejam mediadas pelos heteros, sem ter modelos, nem parâmetros. Amar-nos, proteger-nos, compartilhar. E que desapareça o dinheiro. Que o cuidado da vida seja responsabilidade de todos, que não haja violência, que não haja estados e nem governo, só a comunidade, que o mundo seja uma comunidade de comunidades. Essa é nossa proposta, a partir da comunidade, que é uma proposta de continuidade com nossas avós, a partir da memória dos povos originários, indígenas camponeses. A partir da memória, mas a partir da utopia também, porque a queremos viver.