Quando falamos em crise ecológica global é comum a análise científica limitar-se à perda de biodiversidade e aos efeitos climáticos. Há um predomínio do pensamento parcelar, que desconsidera aquilo que o mexicano Enrique Leff cunhou pelo termo “complexidade ambiental”. Apesar de todas as provas em contrário que os problemas ambientais nos ofereceram nos últimos anos, a humanidade continua dirigindo o seu pensamento com base na lógica cartesiana pela qual somos separados do mundo. Entretanto, a verdade é que a destruição do ambiente leva consigo todo um acervo de conhecimentos, chamados pela literatura de “tradicionais”, os quais dependem, especialmente, da integração entre os seres humanos e a natureza.
Por questões de opção estilística, vou o utilizar a terminologia “conhecimento tradicional” adotada pela Convenção da Biodiversidade de 1992, como sinônimo de “conhecimento popular”.
Epistemicídio é um termo normalmente utilizado por Boaventura de Sousa Santos desde o seu “Pela Mão de Alice” até as obras que se seguiram. Contudo, também tem sido muito utilizado por todos os autores e autoras que analisam a influência da colonização europeia (branca) e do imperialismo capitalista sobre os processos de produção e reprodução da vida. O epistemicídio é, em essência, a destruição de conhecimentos, de saberes, e de culturas não assimiladas pela cultura branca/ocidental.
É um subproduto do colonialismo instaurado pelo avanço imperialista europeu sobre os povos da Ásia, da África e das Américas. Das Grandes Navegações à globalização da cultura ocidental, tal fenômeno cresceu apenas em grau de intensidade. Aliás, o surgimento do capitalismo e a sua necessidade sistêmica de insumos de produção material e energético contribuiu de forma decisiva para a perda ou descaracterização do conhecimento popular/tradicional.
Pois não é apenas na construção do vocabulário, da música e da culinária que sofremos a influência das chamadas culturas tradicionais. Há toda uma dinâmica incorporada aos processos produtivos agrícolas, à produção de alimentos específicos, tratamento médico, além dos aspectos religiosos. A produção agrícola em terraços em curvas de nível só foi conhecida pelos europeus, por exemplo, quando tiveram contato com os Incas. Os povos pré-colombianos também são responsáveis por duas das culturas agrícolas mais difundidas no mundo, a do milho e da batata, e por centenas de espécies que compõem a dieta contemporânea da humanidade. As estradas Incas eram pavimentadas, e o domínio da irrigação permitiu levar água a lugares impossíveis para os imperialistas europeus.
Nunca podemos esquecer que a dominação europeia na América destruiu patrimônios culturais com ciências e linguagem avançadas, que dominavam a escrita e possuíam obras literárias, isto sem contar a escravidão. Também foram responsáveis pela escravização de povos africanos que também possuíam avançados sistemas de organização social, alfabetizados, e com conhecimentos de alto grau nos campos da agricultura e da medicina. É importante ressaltar que os hauças e os malês, por exemplo, eram alfabetizados pela cultura árabe e detinham conhecimento médicos-cirúrgicos não conhecidos em nenhum lugar da Europa Ocidental na época em que foram escravizados. Incas, Astecas, Maias e outros povos nativo-americanos também dominavam áreas de medicina, inclusive cirúrgica, desconhecidas pelos europeus.
Hoje todo o brasileiro sabe que o chá de boldo contribui, efetivamente, para as funções digestivas, é antitóxico e combate a prisão de ventre, que a alfavaca é um ótimo antigripal, que a casca de barmitão é anti-hemorrágica e anti-inflamatória, e que a guaraná é um estimulante, dentre outras informações. Tudo isto é conhecimento indígena que foi assimilado na construção dos nossos saberes populares.
Pensem no volumoso grau de informações que estão sendo perdidas pelas sociedades com a inundação de milhões de hectares quadrados para a construção de grandes hidroelétricas na Amazônia, obras estas que visam atender à indústria de transformação mineral. Pensem, também, nos efeitos da perda destes conhecimentos para o futuro da humanidade.
Aliás, ao longo dos anos, a dominância branco-europeia/capitalista se deu com a adoção de, pelo menos, três grandes tipologias de estratégias:
- a assimilação – quando o conhecimento popular/tradicional é incorporado pelo sistema dominante, como ocorre, por exemplo, pela incorporação de palavras ao dicionário como jacaré, abacaxi, dentre outras, além da produção de culturas agrícolas comerciais, como milho e batata;
- a “invisibilização” (tornar invisível) – ocorre quando o sistema dominante estabelece a invisibilidade às formas de resistência do conhecimento popular. É, como faz hoje, grande parte da medicina alopático/científica em relação à métodos de tratamento não patenteados pelos grandes laboratórios ou, ainda, às crenças religiosas de matriz africana e indígena.
- a destruição – é um processo que, por mais incrível que pareça, é muito comum, e vai além da “invisibilização”, pois elimina completamente a possibilidade de resistência dos conhecimentos/saberes pela extinção dos seus mecanismos de produção e reprodução. Temos, como exemplo mais dramático, a extinção de milhares de troncos linguísticos nas Américas pela incorporação cultural às línguas oficiais ou pelo genocídio em escala.
Pois tais fenômenos cruéis de desconstrução cultural ainda encontram mecanismos fortes de resistência em diversos locais. Henrique Leff destaca que os processos solidários e participativos de organização das comunidades indígenas no México e no Peru permitem a sobrevivência de métodos produtivos integrados ao ambiente e que sustentam a resistência ao modelo imposto pela revolução verde. Aliás, a economia solidária e democracia participativa são estratégias de organização produtiva e social incorporadas por várias comunidades e que permitem a defesa de patrimônios culturais populares da desconstrução pelo modelo hegemônico.
Desta forma, a violência do epistemicídio, sobretudo em razão da industrialização do campo, da urbanização forçada e da destruição do meio ambiente e da biodiversidade, continua batendo violentamente às portas de comunidades populares como indígenas, quilombolas, mateiros, pescadores tradicionais, extrativistas, dentre outros. É preciso resistir, mas somente mudando a forma como nos relacionamos com o mundo e com a diferença de pensar e de agir é que poderemos efetivamente enfrentar tal violência.
*Sandro Ari Andrade de Miranda, advogado, mestre em ciências sociais.