Há precisamente 60 anos, Miles Davis, John Coltrane, Julian 'Cannonball' Adderley, Bill Evans, Paul Chambers, Winton Kelly e Jimy Cobb entravam no estúdio da Columbia, na histórica 30th Street, em New York, para gravar um conjunto de peças que mais tarde acabariam por dar forma a "Kind of Blue", o mais referido e exaltado álbum em toda a trajetória mundial do jazz.
Rezam as lendas que as primeiras peças a serem gravadas na primeira sessão terão sido "So What e Blue in Green", entre as 14:30 e as 17:30, e que, depois de uma pausa para descanso e jantar, Miles telefonou a Wynton Kelly para vir para ao estúdio, afim de gravarem "Freddie Freeloader", na sessão das 19:00 às 22:00. Depois, dias mais tarde, na segunda sessão de gravação, seriam registadas ainda duas outras peças esplendorosas, "Flamenco Sketches" e "All Blues", assim se completando o line up de "Kind of Blue".
O fato é que, há exatos 60 anos, "Kind of Blue" foi uma revolução silenciosa na música internacional . Se até Charlie Parker teve um tempo de maturação para estabelecer o padrão de seu bebop, Miles Davis inventou o novo jazz numa tacada só. Parece exagero, desde que teve contato com o conceito musical do pianista George Russell (que defendia a improvisação sobre a tonalidade da música e livrava os instrumentistas da preocupação com rápidas e complexas mudanças de acordes) Davis começou a experimentar a nova forma que ganhou, no jargão jazzístico, o nome de modal.
Ele tentou aqui e ali, nos álbuns de 1958, "Milestonese 1958 Miles", colocar um pouco daquela simplificação do jazz. Mas em "Kind of Blue", foi além, como conta Bill Evans nas notas de contracapa do LP original. Miles Davis nos trouxe esboços que eram esquisitos em sua simplicidade, mas que continham tudo que é necessário para estimular a performance dos músicos parceiros, e Miles fez isso apenas algumas horas antes das sessões de gravação. Quer dizer, aqueles sete músicos do mais grosso calibre de sua época se viram no estúdio, prontos para gravar com o temperamental e perfeccionista Miles Davis, sem a mínima referência a que estavam acostumados, uma situação de gelar os ossos.
Miles Davis conseguiu extrair o máximo da noção melódica daqueles músicos, trouxe à tona seus medos, angústias, alegrias e traumas. Escancarou aquelas sete almas em dois dias de estúdio. E mais, criou um novo caminho para o jazz que, no fim dos anos 50, patinava sobre formas cada vez mais complexas e se encerrava nos ouvidos treinados dos músicos. Recolocou no eixo popular um gênero musical que havia ficado técnico e barroco demais para o público plebeu.
Miles criou uma porta de entrada para um novo jazz, por isso 60 anos depois, um modesto crítico musical pode dizer: "Se você não gosta de 'Kind of Blue', não gosta de jazz". Porém o tremendo retrocesso cultural contemporâneo das artes impôs uma nova barreira entre o jazz e as camadas populares, "bombardeadas" com a chamada "cultura de massas", levando para elite social o restrito privilégio de "desfrutar" a melhor produção musical que a humanidade já produziu.