Embora boa parte das forças políticas que se articula para dar sustentação ao governo de transição de Michel Temer, do PMDB, tenha participado intensamente do governo Dilma Rousseff, do PT, a nova composição formada no processo de impeachment, reforçada com PSDB, DEM, PPS e outras siglas, cria uma situação nova para a oposição de esquerda, já que o novo bloco de poder, com forte conteúdo conservador e neoliberal, tende a agredir direitos e conquistas dos trabalhadores, a reduzir ainda mais o papel moderador do Estado e a impor medidas imediatas para agradar os interesses gerais do mercado e do capital.
Nas gestões de Lula e Dilma os partidos de centro e de direita integraram a ampla coalizão concebida pelo PT, que incluiu no campo partidário desde o PCdoB até o PP de Paulo Maluf e o PRB do bispo Edir Macedo. Essa esdrúxula coalizão conseguiu colocar no mesmo balaio – durante anos – o MST e a representante do latifúndio e do agronegócio Kátia Abreu; a CUT e a FIESP de Paulo Skaf; o MTST e o ministro das Cidades, Gilberto Kassab, do PSD; os movimentos católicos remanescentes da Teologia da Libertação e os representantes do fundamentalismo evangélico abrigados no PR e no PSC; enfim, o país engoliu uma enorme babel de gregos e troianos preocupada exclusivamente com a própria sustentabilidade do governo federal.
Agora o quadro é outro: a não ser que ocorram dissensões de última hora, o bloco de poder unifica praticamente todos os partidos de centro e de direita, reúne os vários setores do empresariado e a grande maioria das classes médias, além de segmentos populares representados pelos partidos e organizações dominados por grupos cristãos e igrejas evangélicas. O PT e o PCdoB, depois de 13 anos e cinco meses de acomodação na máquina federal e de convivência com a direita, foram atirados à planície da oposição, junto com desgarrados do PDT e do PSB, e onde estão o decano PSOL, o novato REDE e os partidos da esquerda socialista sem representação no Congresso Nacional, entre os quais PSTU, PCB e PCO.
Além de ter unificado o bloco partidário conservador de centro-direita, o processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff unificou majoritariamente também as forças do capital, em especial o empresariado industrial, agronegócio, mineração, transportes, construção civil e o setor financeiro. A dúvida fica por conta dos bancos, grandes empreiteiras e concessionárias de serviços públicos, que até o começo do presente ano ainda estavam apostando mais no resgate do governo Dilma Rousseff do que na aventura de um novo governo com o vice Michel Temer. Não porque tenham diferenças nas medidas defendidas pelo capital, mas na forma de aplicação do ajuste econômico com mais, ou menos, legitimidade e garantia de controle das ruas.
O que acontece
No entanto, a situação do governo Dilma desandou de tal maneira que o processo de impeachment se tornou uma saída emergencial para recuperar o mínimo de governabilidade e de estabilidade política e econômica. O processo foi vitaminado pela rebeldia da base aliada no Congresso Nacional, pelas investigações da Operação Lava Jato e pela grande mídia comprometida com interesses dos empresários e das classes médias. Todos esses atores operaram na única direção e jogaram pesado no “fora Dilma”, de quebra no “fora Lula” e “fora PT”, mesmo sem ter base sólida e convincente para o afastamento constitucional da presidente. Essa questão ficou em segundo plano depois do amplo consenso por um novo governo.
O PT, que durante muitos anos abandonou os movimentos sociais à própria sorte, teve de se socorrer do MST e do MTST para criar, nas ruas, a possibilidade de reação perdida no Congresso Nacional e nas alianças com o empresariado. Vale lembrar que nos governos Lula e Dilma, a CUT e outras centrais e sindicatos foram deliberadamente domesticados para evitar confrontos com os patrões e aplaudir, sem qualquer senso crítico, as ações e obras do governo, inclusive os bilhões gastos na Copa do Mundo de Futebol – um evento privado e faturado pela FIFA. Os únicos movimentos sociais de abrangência nacional que conseguiram manter alguma autonomia e combatividade, MST e MTST, foram convocados pelo lulismo para dar ao governo Dilma o gesto derradeiro de resistência ao golpe.
Agora, a se confirmar o exílio de 180 dias da presidente Dilma, com o novo bloco de poder capitaneado por Michel Temer no Palácio do Planalto, MST e MTST terão de definir se jogam suas energias no retorno de Dilma, no desgaste do governo de transição de Michel Temer e se miram ou não o novo horizonte que se abre com a articulação de uma grande frente das esquerdas e a construção de uma proposta inovadora para as eleições gerais de 2018. A não ser que a correlação de forças resulte na explosão da luta de massas, nas ruas, semelhante ao que aconteceu em 2000, na Argentina, capaz de derrubar Teme, Cunha, Renan e exigir eleições diretas já, o que se apresenta no calendário da legalidade democrática institucional é a disputa eleitoral de 2018.
O que fazer
Dificilmente Dilma Rousseff reassumirá a Presidência da República. Tudo indica que será cassada ao final do processo, a não ser que antes venha a renunciar. O PT e o lulismo tendem a perder boa parte de suas forças, estarão sob impacto do desgaste do impeachment e das denúncias da Operação Lava Jato. Lula corre sério risco de ser condenado e ficar impedido de se candidatar devido ao envolvimento com as empreiteiras Odebrecht, Andrade Gutierrez, Camargo Corrêa e OAS, que assaltaram a Petrobras. Restará aos petistas e aos militantes do MST, do MTST e demais movimentos sociais da área de influência do lulismo estabelecer nova estratégia de enfrentamento das classes dominantes, seja o repeteco de alianças com a direita ou fazer novo alinhamento no campo da esquerda – com partidos e organizações sociais declaradamente socialistas.
A principal questão é saber se interessa ao PT refazer o rumo com outra proposta de disputa do poder e se consegue retomar a prática de fazer oposição pela esquerda com programa autenticamente transformador. Já que não fez, até hoje, qualquer autocrítica do rumo tomado desde a Carta do Povo Brasileiro, em 2002, e muito menos a avaliação crítica do processo que levou o governo Dilma a sofrer impeachment, tudo indica que o PT tende mesmo a manter prioridade nas alianças com os partidos e forças de centro e de direita, inclusive nas eleições municipais de 2016 – sem levar em conta as forças da esquerda socialista. A essas forças aparece a oportunidade de constituir, desde já e nos próximos anos, uma grande e sólida frente popular, democrática e anticapitalista não só para combater o governo de transição de Michel Temer, atrair as classes trabalhadoras e a juventude para a militância, mas também para disputar as eleições gerais de 2018 contra o novo bloco de poder marcadamente neoliberal e conservador.
A crise do impeachment abriu espaço para novo rearranjo político e nova correlação de forças no cenário nacional. O processo dialético movimenta a história. As contradições do novo bloco de poder vão aparecer rapidamente. Os trabalhadores e a população que mais demanda a ação do Estado e os serviços públicos vão perceber que o discurso da “salvação nacional” é pura engabelação. Os movimentos sociais populares e partidos de esquerda serão importantes ferramentas para a defesa da grande maioria do povo. A articulação dessa frente de oposição de esquerda depende agora da visão e decisão da militância. O Brasil inaugura nova etapa da luta de classes.
Hamilton Octavio de Souza é jornalista e professor.