Por três gerações da família Gouveia, às vítimas sofreram todo tipo violência: primeiro por Terezinha Ferreira Gouveia e pelo falecido Celestino Gouveia, donos da fazenda. E depois por filho Waldemar Ferreira Gouveia e pelo filho dele André (nos processos não constam o seu sobrenome).
Segundo consta nos autos, no dia em que foi encontrado Domingos estava fazendo cerca de arame farpado. O calor era intenso. Sua aparência maltrapilha e o corpo lesionado figuravam a crueldade que sofria. Suas mãos e umas das orelhas estavam sangrando. Todos os seus dedos estavam machucados. Sinais do espancamento que sofreu na noite que antecedeu o seu resgate:
“… seus dedos das duas mãos estão esmagados e sempre sangram, porque quando já não tem mais força para ordenhar mais rezes o André e o Waldemar pegam uma marreta e esmagam os seus dedos para que não pare e então por causa da dor e do medo continua tirando mais leite e labutano nas cerca, curral e tudo mais”– Trecho do Processo.
Domingos carrega em seu corpo as marcas de anos de violência. Cicatrizes. Sua história encarna os tempos do Brasil Colonial. Segundo o Procurador do Trabalho Alpiniano do Prado Lopes, o homem ainda apanhava no tronco. O Procurador ainda diz que ver as costas de Domingos foi uma cena que ele nunca imaginaria presenciar fora das telas do cinema, fazendo referência à história da escravidão no país. Para Alpiniano, este foi um dos piores casos de trabalho escravo que ele já viu e que não tem como tratar tal situação como algo análogo à escravidão. Na explicação do Procurador, a violência vivenciada por Domingos e pelas três mulheres não cabe dentro do conceito atual de trabalho escravo.
Abaixo, Domingos relata um pouco do que ele viveu:
https://www.youtube.com/watch?v=yfIogmyh7UY
Ao ser resgatado, Domingos exigiu que pegassem na fazenda sua pedra de amolar faca e o seu facão. Objetos de trabalho com os quais ele cresceu. Uma espécie de memorial que o faz transitar entre o passado e o presente. E que afirma o que ele sempre foi: trabalhador.
Onde está a dignidade?
Iracema tinha aproximadamente 76 anos quando foi encontrada com as roupas rasgadas e sujas, descalça e com os pés rachados, trancada dentro de uma casa que era conhecida como “sede da fazenda”. ‘Cema’, como é chamada, era responsável pelos serviços domésticos. Inclusive, era incumbida de limpar o quarto de Domingos, com apenas uma cama e uma caixa onde ele guardava as poucas roupas que possuía, além de um cofre improvisado com cerca de 3 reais, que ele afirmava ser todo o seu dinheiro e acreditava ser muito.
Temerosa devido às constantes surras que levava, tentava impedir que Domingos falasse com a Juíza Ana Cláudia Veloso Magalhães e os policiais que a acompanhavam no dia do resgate, enquanto ele afirmava “que ela fazia isso porque tinha medo de morrê”.
“Na explicação do Procurador, a violência vivenciada por Domingos e pelas três mulheres não cabe dentro do conceito atual de trabalho escravo”
Edi e sua filha Eliane ficavam em uma cidade a cerca de 30 minutos de Guaraíta, chamada Itapuranga. Ali, eram responsáveis pelos afazeres domésticos da casa de Terezinha. Devido a um retardo mental em decorrência da esquizofrenia, Eliane era tratada com menos severidade, já sua mãe não tinha a mesma “sorte”:
“Na casa residencial onde moravam as agravantes Edi e Eliane, descreveu-se que Edi, idosa de aproximadamente 84 (oitenta e quatro) anos, trajava roupas sujas e rasgadas, dormia em aposentos sem iluminação, com colchões completamente destruídos e amplamente sujos, tendo sido encontrada de joelhos na cozinha lavando as partes inferiores de um armário e esfregando o chão, mesmo com problemas na coluna, e suas mãos pareciam de escravos, com unhas completamente doentes e putreficadas” – Trecho do Processo.
Edir, Domingos e Iracema chegaram à fazenda quando eram crianças. Segundo lembram, seus pais os entregaram a Terezinha por não terem condições de cuidar deles. Todos cresceram sem certidão de nascimento, não existiam para o Estado “e para muitos da região em que moravam e eram explorados”, segundo o Procurador do Trabalho.
Os registros deles foram feitos apenas na velhice com intuito de que os exploradores pudessem dar entrada na aposentadoria e se beneficiassem do dinheiro. Todos os documentos ficavam sob a posse de Waldemar. Além disso, os Gouveias entraram com um pedido de interdição alegando que os quatro trabalhadores eram seus familiares e que todos não tinham capacidade mental e necessitavam de um curador para administrar o recurso – que por um bom tempo nenhuma das vítimas não viram sequer o rastro.
Diferente dos três, Eliane ‘nasceu escrava’ e por 16 anos viveu nessa condição. Conforme o depoimento de Maria Uilma do Nascimento, filha de Terezinha, nascida em seu segundo casamento, Eliane é filha de Celestino, que abusava constantemente de Edi e de outra “criada” da fazenda:
“… passaram por vários tipos de abusos sexuais por parte de Celestino Gouveia, ex-esposo de Terezinha Ferreira Gouveia, com conhecimento e anuência desta; que tanto esta como seu ex-cônjuge espancavam as interditandas, tendo em vista que Terezinha espancava por “ciúmes” e por saberque seu esposo abusava sexualmente de suas criadas, ao passo que Celestino com intenção de”força-las a consentirem com as relações sexuais” às vezes ocorridas altas horas da noite em seus quartos; que diante de tantas violações sexuais uma das interditandas Edi Maria Da Silva e outra ‘criada’ do casal de nome Joaquina Cardoso Neta, falecida recentemente,engravidaram dando à luz à Eliane do Nascimento Silva e José Maria Cardoso” – Trecho do Processo.
*Procurado, José Maria não quis se pronunciar sobre o caso. Embora Iracema e Edir tenham concordado com a entrevista, não quiseram se pronunciar sobre o passado e apenas afirmaram que atualmente estão bem, assim como Eliane.
Continua…
A segunda parte irá abordar sobre as condições do local onde as vítimas estavam e como toda história veio à tona. Não deixe de ler.