É uma injustiça apontar a proclamação da República elitista como origem de nossa minoração nacional, já que a roda da história não se deteve em 1889. Nações republicanas nasceram do ímpeto popular, como a França, em 1789; o Paraguai, em 1814; o México, em 1910; a Rússia, em 1917; a Itália, em 1945. Monarquias absolutistas adaptaram-se ao empuxe plebeu para sobreviver, como a Inglaterra em 1640. Ali onde fracassou o impulso popular, classes dominantes fundaram nações republicanas e monarquistas constitucionais, como os USA, em 1776; a Itália e a Alemanha, em 1870 e 1871.
O parto republicano plebeu ou a fórceps impregnou as raízes das respectivas nações. Em contextos históricos diversos, aqueles movimentos conformaram nacionalidades tendencialmente autônomas, mais ou menos fortemente determinadas pelos segmentos populares ou dominantes. É otimista a tradicional definição de “república” como “governo” em que o povo soberano rege o Estado através de seus “representantes”.
Ela encobre as contradição profundas, internas e externas, de Estados-nação que se pretendem dirigidos pelo povo.
No Brasil, a república nasceu da dissolução da ordem escravista. Em 1822, para sua defesa, o escravismo impusera a unificação das províncias luso-brasileiras em Estado pré-nacional monárquico, centralista, autoritário e escravista. A abolição da escravatura, em 1888, ensejou, no ano seguinte, o gabinete liberal reformista de Ouro Preto, que se negou, porém, a conceder o federalismo provincial. Agora sem a necessidade de defender a escravidão, o Partido Conservador, expressão dos grandes proprietários provinciais, optou por uma república oligárquica, elitista e sobretudo federalista.
Com o fim da guerra contra o Paraguai, em 1870, o Exército voltou à sua minúscula dimensão e a Guarda Nacional, sob domínio oligárquico, seguiu sendo a grande força militar do país. Em 15 de novembro, o golpe de Deodoro da Fonseca, que nem republicano era, foi abençoado pelas oligarquias. Sem esse apoio, a quartelada republicana seria hoje nota de rodapé de manuais de história. O historiador Robert Conrad propôs o 15 de Novembro como contra-revolução federalista que abortou o reformismo abolicionista, primeiro movimento pluriclassista, nacional, democrático e modernizador do país. O Estado republicano mostrou seu DNA anti-popular massacrando República Sertaneja de Belo Monte, em 1897.
Em 1889, o Brasil acertava o passo, atrasado, com a América Hispânica, republicana a partir de 1810. A revolução abolicionista pôs fim ao escravismo e unificou a classe trabalhadora, mas a República manteve o caráter de Estado semi-colonial e de nação inconclusa do Império. As chamadas elites seguiram mandando na política interna, sob o domínio econômico das grandes nações. O país seguiu como latifúndio feitorizado por rústicos estancieiros em proveito de senhores externos.
A Revolução de 1930 desequilibrou essa situação. Fração capitalista industrial emergente do RJ e de SP subordinou através do getulismo o mundo agrário e manteve os trabalhadores através da força e do populismo. Por primeira vez, recuou a dependência semi-colonial e cresceu a autonomia nacional. Nos anos 1950, Vargas queria um Brasil grande e armado com a bomba atômica. O nacional-desenvolvimentismo burguês avançou as forças produtivas materiais e as classes trabalhadoras.
Muito logo, o capital industrial abandonou a direção da construção da autonomia nacional, mesmo em seu favor, temendo o avanço do mundo do trabalho, que não alcançou a substituí-lo naquela tarefa. Em 1964, o capital industrial nacional apoiou o golpe de Estado, que entronizou os militares castelistas pró-liberais e pró-imperialistas. Então, o país desandou como maionese malfeita. Em 1967, sob a impulsão do capital paulista, militares desenvolvimentistas promoveram golpe no golpe e a volta do industrialismo getulista burguês, agora calçando coturnos.
Na nova ordem ditatorial, o populismo getulista deu lugar à repressão; o crescimento apoiado em capitais nacionais e no mercado interno foi substituído pela ênfase nas exportações e nos empréstimos externos.
Outra vez, recuou o caráter semi-colonial do país. Abriu-se poço para explodir a bomba atômica tupiniquim. Fortaleceram-se a industrialização e uma aguerrida classe operária. Em meados dos anos 1970, a crise mundial fez tropeçar a corrida brasileira feita com as pernas dos outros.
O mundo do trabalho avançou a luta pela redemocratização, conquistando, por primeira e única vez, autonomia político-ideológica mesmo relativa e ensaiando-se como direção alternativa da luta pela emancipação nacional. Porém, o movimento foi embolsado pelas classes dominantes, sob a direção do grande capital. Após 1985, sem exceção, todos os governos federais favoreceram a integração-subordinada do país à globalização. Sob a exigência dos USA, apoiada por esquerda inconsequente, a Constituição proibiu a bomba atômica e fechou-se o poço agora inútil. Ignorou-se que apenas ela faz os grandes respeitem os pitocos, como lembra o gorducho coreano.
Desde 1985, o pais viveu ininterrupto processo de internacionalização, desnacionalização e desindustrialização, festejado pela grande mídia e pelos governos que favoreceram o deslizar lomba abaixo da nação. O avanço quantitativo da situação semi-colonial ensejou salto de qualidade, com o golpe de 2016, sob as benções dos generais neo-castelistas, agora hegemônicos. Iniciou, então, verdadeira reversão da frágil ordem republicana. O país adentrou espécie de status “neo-colonial globalizado”, onde as classes dominantes nacionais perdem também as rédeas políticas da nação para o grande capital mundial, no que diz respeito às grandes decisões.
Para tal, iniciou-se a destruição de grande parte do pouco capital monopólico público e privado do país - mega-empreiteiras, Petrobras, BR, BB, CEF, Embraer, etc. Avançou-se na metamorfose autoritário das instituições, despindo-as de conteúdo republicano, e na instituição de espécie de escravidão assalariada, quanto às relações trabalho-capital. Organiza-se abertura comercial que aplainará a industria brasileiras já rastejante. Ao contrário do golpe militar pós 1967, o atual recua e destrói as forças produtivas e as classes trabalhadoras nacionais.
A subjunção radical do capital nacional levou a que esse processo avance sem resistência do capital industrial nacional, agora incapaz de inspirar defesa castrense. Os partidos da oposição parlamentar aceitam o papel de oposição consentida, como o do MDB depois do golpe. Como no Chile, após o massacre de 1973, o objetivo final é uma nação produtora de manufaturados de baixo valor agregado, de grãos e de minérios, sob o mando geral do grande capital globalizado, que se esforça para enquadrar a essa realidade as nações periféricas. Devido a sua dimensão, população e riqueza, o Brasil não merecia sucumbir a tal destino triste, com tamanha facilidade. Sequer esperneamos.
Em 15 de novembro, o capitão Jair Bolsonaro, metáfora perfeita do Brasil atual, falará à nação sobre o transcurso. Haverá desfiles militares e escolares. Ouvir-se-ão o soar dos clarins e as tradicionais saudações à bandeira. A mídia comentará a efemérida. Festejaremos uma jovem nação republicana em decrepitude, que viveu aos tropeções, sem sequer alcançar a maturidade relativa, antes de entrar em agonia.
* O presente artigo foi pedido para ser publicado no Caderno de Sábado do Correio do Povo, de 16 de novembro. Foi censurado pela direção da redação do jornal.